Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Prosa de alta radioatividade

Existe racismo na obra de Monteiro Lobato? A resposta, definitivamente, é sim. Leia-se, por exemplo, o que ele escreveu num artigo de jornal, reproduzido em Ideias de Jeca Tatu sem mudanças, nas diversas edições que o livro teve ao longo da vida do autor.

‘Enquanto colônia, o Brasil era uma espécie de ilha de Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento antissocial punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrasse no eito, para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível.’

Mesmo para os padrões da época (o artigo foi escrito no começo do século 20), não deixa de soar chocante e incomum esse ‘pretalhada inextinguível’.

Certo que portugueses, índios, italianos e alemães não recebem tratamento muito melhor. O afrancesamento das elites, Lobato repetiu o tema várias vezes, era coisa de ‘macacos’.

Mas o ‘pretalhada inextinguível’ não se apaga facilmente da memória, quaisquer que fossem as intenções caricaturais e polêmicas do escritor.

Isso está na obra para adultos de Monteiro Lobato, hoje bem menos levada a sério do que sua literatura infantil.

Negra como pronome

Passo às Caçadas de Pedrinho, que não é o único livro a fazer de Tia Nastácia uma personagem caricatural, insistindo em descrever seus traços africanos.

A todo momento, o leitor é lembrado de que a cozinheira é ‘preta’. Ela arregala os olhos como ‘duas xícaras de chá’; resmunga, ‘pendurando o beiço’; apavorada ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão, e o narrador comenta: ‘desmaio de negra velha é dos mais rijos’.

Mais do que isso, a referência à cor serve o tempo todo como uma espécie de pronome, substituindo ‘Nastácia’, para evitar a repetição do nome próprio: ‘a negra aproximou-se’, ‘a pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó’, ‘a pobre negra se convenceu’ etc. etc.

Nenhum livro hoje em dia, para crianças ou para adultos, usaria esse tipo de vocabulário, e por mais que se ironize a ideia do ‘politicamente correto’, há inegável progresso em evitar esse tipo de caracterização.

Discuto mais adiante o teor do famigerado parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre Caçadas de Pedrinho, que antes de mais nada notou o que é visível a olho nu: um palavreado como o de Lobato não se admite mais atualmente.

Observo apenas, no recenseamento desses termos, que um trecho do livro não é tão racista quanto parece. Nastácia é comparada a uma ‘macaca de carvão’ quando, em desespero, sobe rapidamente num mastro de são Pedro para escapar das feras da floresta. O macaco de carvão, ou mono-carvoeiro (Brachyteles arachnoides), tem pelo claro, quase loiro.

A velha, o alemão

Dito isso, o tal uso ‘pronominal’ do termo ‘negra’ para substituir ‘Nastácia’ tem equivalentes em outros personagens do livro. Dona Benta é por vezes chamada de ‘a velha’, e o dono de um circo, o sr. Fritz, recebe imediatamente o tratamento de ‘o alemão’. Por sua vez, Emília, sendo interesseira e boa comerciante, é chamada de ‘ciganinha’.

Um exemplo mais recente, que não é de Lobato. Reportagem policial publicada na Folha em julho de 1969 referia-se à testemunha de um assassinato como ‘a negra Angelina Maria de Jesus (…) gorda e baixa, de nariz achatado e grande’. A reportagem sempre usa o termo ‘negra’ ao referir-se a ela.

Ruim, sem dúvida, que no ano de 1969 ainda se escrevesse assim. O caso talvez nos advirta para ver com mais estranheza, por exemplo, alguma notícia nos dias de hoje que fale de um ‘coreano’ ou um ‘boliviano’ assaltado no centro da cidade, em vez de mencionar apenas sua condição, digamos, de comerciante ou de turista.

Voltando a Tia Nastácia, vale notar que sua cor também acaba introduzindo um certo componente ‘estrangeiro’ ao conjunto dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo.

Enquanto Dona Benta é uma velhota assustada, que acaba propiciando as condições para as aventuras dos netos, Tia Nastácia assume um papel mais rico e contraditório. É ela quem toma distância do mundo fantástico do Sítio; crédula no que diz respeito a sinais da cruz, é bem mais cética do que Dona Benta quanto estão em jogo as invencionices de Emília e as aventuras de Pedrinho.

Para Tia Nastácia, o marquês de Rabicó é, antes de tudo, um leitão. Ela corresponde a um ‘mundo adulto’, mais realista, que Dona Benta encarna apenas imperfeitamente.

Quando Emília propõe a Tia Nastácia que compre o rinoceronte, a cozinheira responde sem paciência nenhuma: ‘Era só o que faltava (…) Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando’.

Por fim, quando todos perdem o medo do rinoceronte e o atrelam a um carrinho para passear, ela é a última a aceitar a novidade. É assim que termina o livro, numa frase ‘antirracista’: ‘Tenha paciência’, diz Nastácia, ou melhor, ‘a boa criatura’, expulsando Dona Benta de seu posto no carrinho. ‘Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá…’

Racista afinal?

Para resumir. Existiria, para usar o clichê, um ‘conteúdo racista’ em Caçadas de Pedrinho? Conteúdo, propriamente, não, porque o livro não diz que os negros seriam uma ‘raça inferior’ etc. etc. Mas há ‘formas de expressão’ racistas ao longo de todo o texto, mesmo quando, no último parágrafo, os direitos de Nastácia à igualdade são reivindicados (e atendidos).

Seria essa incômoda e deseducativa presença de vocabulário racista o suficiente para banir Caçadas de Pedrinho das escolas brasileiras?

Certamente não. Mas o recente parecer do Conselho Nacional de Educação nunca propôs isso. O relatório, escrito pela professora Nilma Lino Gomes, merece ser lido na íntegra, e procura resolver com equilíbrio uma situação burocrática e legal das mais complexas.

Trata-se de responder à reclamação de um funcionário da secretaria de Educação do Distrito Federal, que notou a seguinte ambiguidade. Uma edição recente do livro, publicada em 2009, vinha com adaptações às novas normas ortográficas e com uma nota explicando que Lobato, ao fazer Pedrinho matar uma onça, vivia numa época em que os cuidados com o ambiente não eram tão intensos como hoje.

O ‘ecologicamente correto’, até que bastante injusto com Lobato, um dos primeiros a denunciar queimadas no Brasil, impôs notas e advertências na nova edição de ‘Caçadas de Pedrinho’.

Notas demais

Por que não colocar o mesmo tipo de coisa no tocante ao vocabulário racista?

É isso o que sugere o relatório do CNE, sem deixar de enfatizar o caráter clássico da obra. Pode-se discordar, talvez, de tantos cuidados pedagógicos com notas e contextualizações, como se professores e alunos fossem incapazes de tocar com as próprias mãos num texto carregado de radioatividade política.

Pode-se imaginar que, no futuro, notas e explicações sobre ‘ciganinhas’, ‘alemães’, ‘velhas’ ou o que quer que seja terminem sobrecarregando o livro com a seriedade do politicamente correto.

Será o momento em que as aventuras de Pedrinho, Narizinho e Emília deixarão, em definitivo, de divertir os seus leitores e tratá-los com inteligência, para tornarem-se apenas uma ‘maçaroca’ e uma ‘caceteação’, como diria Lobato, a serem enfiadas pela goela das crianças.