Há algumas semanas, a TV Cultura de São Paulo anunciou que, a partir de janeiro de 2009, vai suprimir da sua faixa de programação infantil, de 11 horas diárias, todos os anúncios comerciais. A notícia é mais importante do que a repercussão que obteve. Passou praticamente sem ser notada, mas indica um movimento de grande significado. Por dois motivos distintos.
O primeiro é deixar claro que, na visão da direção da emissora, as crianças têm o direito de ser protegidas do assédio da mercadoria. A Cultura passa a reconhecer, na prática, que os comerciais de TV podem não ser exatamente benéficos ou educativos para seus telespectadores mirins. Só por isso, seu gesto faria jus a um debate bem mais amplo. Só por isso, poderia servir de inspiração para que outros meios revissem suas políticas internas de publicidade para crianças.
O segundo motivo é que, agora, a emissora da Fundação Padre Anchieta impõe um claro limite ao espaço dos anúncios. Com isso inverte a tendência de expansão que eles vinham tendo em sua grade, uma tendência tão marcante que em alguns horários, como no final da noite, os intervalos da Cultura às vezes se parecem com intervalos de um canal comercial comum. Ao agir para reverter o quadro, a direção da emissora acerta mais do que alguns imaginam. A iniciativa será vital para preservar nada menos que a saúde da própria identidade da TV Cultura, que corria o risco de ser obscurecida pela luminescência dos comerciais barulhentos.
Prática deturpadora
O aumento do número de anúncios não é simplesmente um fenômeno quantitativo de filmetes que vão pipocando ao longo do dia. Se muito numerosos e muito ‘espaçosos’, os anúncios modificam a própria qualidade da programação. Eles promovem profundas alterações de ordem estética, porque tendem a ditar ao conteúdo editorial os parâmetros do discurso publicitário. Isso, que ninguém duvide, afeta a imagem da identidade da instituição. É isso que, por vezes, causa no telespectador a sensação de que a tela da Cultura tem lá suas semelhanças com a tela da Record ou do SBT. O andamento dos comerciais determina a própria pulsação do que vai ao ar. É terrível, mas é assim (ninguém veicula publicidade impunemente), e tanto é assim que, do ponto de vista estético, as propagandas em excesso concorrem para esmaecer, aos olhos do público, a própria razão de ser da Cultura.
Do ponto de vista ético, também há problemas sérios. Quando uma emissora se converte em veículo publicitário, sua mercadoria não é o seu tempo, como alguns supõem. O que ela vende ao anunciante não são seus minutos e seus segundos, mas a atenção do seu telespectador. Quando um canal público se submete a mercadejar com o olhar de sua audiência, ingressa numa trilha cujos pedágios são altos. Começa a ter de prestar contas ao mercado, ou seja, além de levar em conta critérios de qualidade ou de relevância cultural, vê-se pressionado a pôr no ar um conteúdo capaz de dar retorno comercial ao mercado. É inevitável que isso contamine, ainda que lateralmente, as balizas de condução de uma emissora pública. Portanto, também no plano ético há embaraços que devem ser considerados.
E não é só. Ao lado das razões estéticas e éticas, existe outra ordem de fatores para que as instituições que recebem verbas públicas se afastem do ramo de vender espaço publicitário. São fatores, por assim dizer, concorrenciais. Como contam com receitas do Estado, essas instituições têm claras vantagens em relação às empresas privadas, que não gozam do mesmo benefício e, em regra, dependem exclusivamente da venda de anúncios para se sustentarem. Essas vantagens dão às primeiras uma folga respeitável na competição por anunciantes. Com seus custos parcialmente pagos pelos cofres estatais, elas têm, ao menos em tese, a possibilidade de oferecer aos clientes descontos que as outras não têm. Também por isso, enfim, não é recomendável que emissoras públicas se dediquem à veiculação de anúncios. Se levada ao extremo, essa prática viciaria o mercado e deturparia o próprio sentido democrático da publicidade.
De onde brota a qualidade
Por tudo isso, a iniciativa da atual direção da TV Cultura de se afastar – ao menos em parte – do mercado anunciante vem em boa hora. A decisão abre as portas para uma caminhada na direção justa, ao longo da qual será possível reduzir gradativamente o peso dos comerciais nas receitas, na estratégia e na programação da casa. Nessa caminhada, a emissora poderá concentrar-se ainda mais no veio principal de sua razão de ser. Sua vocação não é ser uma boa pechincha para os anunciantes, longe disso. Sua vocação tem que ver com independência e mais independência. É da independência – em relação ao poder e em relação ao mercado – que pode nascer sua qualidade.
Não há outro caminho para a televisão pública. Para formar cidadãos críticos, promover o acesso de todos à cultura e informar com objetividade ela precisa guardar sua independência. Se aderir ao governo, cairá na armadilha do proselitismo político, da chapa-branca, e se tornará ferramenta a serviço do poder – portanto, um desserviço à sociedade. De outro lado, se se entregar à lógica publicitária, de olho no dinheiro que ela oferece, passará, na verdade, a depender do mercado – não apenas financeiramente, mas ideologicamente também. Com isso uma de suas principais funções, de oferecer à sociedade uma alternativa à comunicação comercial, termina por se perder inteiramente.
Não é da publicidade que brota a qualidade da televisão pública. Que essa ilusão não paire mais sobre os destinos da TV Cultura.
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Jornalista, professor da ECA-USP, integrante do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo)