Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Puro hindsight

A palavra vai assim mesmo, em inglês, pois não se encontra sua tradução nem mesmo no Dicionário Brasileiro da Britânica. É pena, conhecer o conceito faz falta a nós todos na população e também à imprensa, como estamos assistindo neste episódio da aftosa – a bomba da semana. As manchetes na capa do Estado de S.Paulo juntam os bois mato-grossenses aos morcegos dos valeriodutos como forma de selar a apregoada inépcia do governo federal, para dizer o mínimo.

Hindsight, segundo o Merriam Webster, significa a percepção da natureza e demandas de um acontecimento depois que ele ocorreu. Trata-se – acredito concordarão comigo os juízes – de uma distinção fundamental que deve ser observada em toda avaliação de valor, sob pena de se cometer injustiça. Repare o leitor na tendência de se confundir o calendário dos eventos. Manipulando datas, os falaciosos tentam atribuir nova importância a algo que era apenas uma parte do todo. Espero tornar-me mais claro mais adiante nesta exposição.

Não é à toa ter sido o termo hindsight gerado num país em que a idéia de justiça faz parte do tecido social, das instituições e do relacionamento entre os indivíduos, como a Inglaterra. Eis a principal tese de Joaquim Nabuco, nosso principal abolicionista, na obra Minha formação.

Aplicar o princípio geral aos casos particulares: a esmagadora maioria dos brasileiros votou pelo combate sem trégua à inflação desde a década de 90. O governo Lula, de que se temia imprudências com o orçamento federal, ungiu um ministro da Fazenda ainda mais conservador do que o tucano que lá esteve. Pode-se discordar da política de juros e câmbio, mas de poucos anos para cá a nação orgulha-se de não violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, de não se gastar sem ter. Podar gastos, evitar desperdícios, comprar melhor etc. são objetivos de consenso, verdades evidentes, afinal realidade de que todos têm experiência doméstica e cotidiana.

Olhar incoerente

Aí surge em Mato Grosso do Sul um novo foco de febre aftosa. A notícia em si é de fato um desastre, o país perde 60% de suas exportações de carne. Mas o incidente habilita o raciocínio de que a culpa é da Fazenda que travara o programa sanitário para o rebanho nacional.

Onde está o coro daqueles que torceram pelo governo enfrentar o dragão da inflação? Faz menos de um ano, caíam de pancada em cima do governo federal por conta de 19 mil cargos de confiança com os quais o Brasil estaria jogando $$ fora. Pois entre esses 19 mil estavam técnicos para órgãos de saúde animal, auditores da Receita, fiscais do Ibama etc. O mais criterioso corte de verbas acaba inevitavelmente afetando programas importantes para o país, mas a questão foi escolher, nos idos de 2003, quando Palocci tomou posse, o mal menor numa economia que caminhava para 60% na relação dívida-PIB.

Olhar para trás neste ponto e proclamar o escândalo da economia de alguns milhões de reais à luz do acidente de centenas de milhões de dólares de exportação de carne é puro hindsight.

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Dirigente de ONG, Salvador