Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Qual liberdade?!

Em outubro de 1998, às vésperas do segundo turno para a eleição do governo paulista, a Folha de S. Paulo vetou a publicação do artigo ‘Coisas do passado’ do articulista Alberto Dines. Embora o autor, contratado justamente para escrever textos opinativos, tenha decidido pela publicação do material, os diretores do jornal consideraram as opiniões ali apresentadas ‘partidárias’, inadequadas à postura da Folha na cobertura das eleições estaduais. Em um trecho do artigo, Dines fazia duras críticas ao então – e eterno – candidato Paulo Maluf. O dado que interessa, porém, é a constatação de que entre o exame livre e autônomo do jornalista e o julgamento também livre e autônomo dos diretores do jornal sobre a oportunidade da publicação, prevaleceu o destes últimos.

Rede Globo e afiliadas

Também a partir de 1998, se a memória não me falha, a Rede Globo de Televisão adotou a postura de indicar ‘interventores’ nas suas afiliadas espalhadas Brasil afora, sobretudo na região Nordeste. Preocupada com o uso político do jornalismo, uma vez que o controle tanto de TVs como de rádios e jornais costuma estar concentrado nas mãos de tradicionais grupos políticos dessas regiões, a emissora carioca se auto-atribuiu o dever de zelar pela boa prática da profissão. Onde o braço da Globo pudesse atingir, estariam então resguardados os nobres princípios da profissão. O mesmo não aconteceria, obviamente, nos veículos fora do raio de sua influência. Assim, entre a autonomia e a liberdade editorial de grupos regionais e a autonomia e a liberdade editorial do principal conglomerado de comunicação do país, o que tem prevalecido é a tutela deste sobre aqueles no campo do jornalismo.

Em 2001, uma edição do programa Observatório da Imprensa na TV foi cancelada. No dia, seria exibida uma entrevista com o jornalista João Carlos Teixeira Gomes, autor do livro Memória das Trevas: uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães. Suspeita de pressões políticas oriundas de Brasília teriam levado o editor do programa, Alberto Dines, a suspender a entrevista para preservar o recém-empossado diretor da TVE, Fernando Barbosa Lima, de maiores constrangimentos. Emissora pública depende, afinal, de acordos políticos para receber verbas. Entre a decisão livre e autônoma do editor em escolher o entrevistado e a ameaça não se sabe de quem vinda não se sabe de onde, sabemos todos o que prevaleceu.

Em meados de 2001, o jornalista Ricardo Boechat é despedido do jornal O Globo sob a acusação de ter praticado uma conduta inaceitável para os padrões éticos da profissão. Foi flagrado num grampo telefônico acertando os ponteiros de uma matéria com a fonte. Disputas de interesses à parte que supostamente teriam levado ao grampo delator, o fato é que o jornalista saiu sequer sem direito à defesa. Entre, portanto, o julgamento livre e autônomo do jornalista sobre a correção do procedimento por ele adotado para fazer a matéria e o julgamento também livre e autônomo de seus chefes, prevaleceu o destes últimos.

No final de 2003, o jornalista Joelmir Beting vê suspensa a publicação de sua coluna pelo jornal O Globo também sob a acusação de desrespeitar padrões éticos do jornalismo ao fazer um anúncio publicitário para um banco privado. Fato este agravado por ter o referido jornalista construído sua reputação ao longo de 30 anos justamente na cobertura da área econômica. Entre o exame livre e autônomo de Beting sobre a compatibilidade de estrelar a peça publicitária e manter intacta sua credibilidade profissional e o exame livre e autônomo dos diretores de O Globo, que concluíram exatamente o contrário, prevaleceu o discernimento destes últimos.

A razão do mais forte, sempre

Em cada caso, como se pretendeu mostrar, as partes apresentaram interpretações diferentes para o problema. Para um mesmo fato, uma mesma situação, interpretações opostas e conflitantes. Quem tem ou teria tido razão? Essa resposta, contudo, não interessa muito para os objetivos deste texto. O que interessa é a seguinte constatação: a ‘razão’ prevalecente sempre foi a da parte mais forte.

Isso em polêmicas envolvendo estrelas do jornalismo. E nos inúmeros outros casos que sequer chegam ao conhecimento público protagonizados por profissionais ‘comuns’ ou pessoas e fontes sem muito fôlego para repercutirem seus dramas?

Tal constatação me leva a refletir sobre a saraivada de críticas a que foi submetida a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo. Principalmente aquelas que apontam o risco de volta à censura, de cassação da liberdade de expressão e autonomia dos jornalistas. Pergunto eu: qual liberdade de expressão, qual autonomia para o exercício da profissão se está querendo preservar ou proteger de um eventual conselho profissional?

Sem entrar propriamente no mérito da proposta do CFJ – cuja discussão precisa ser mais amadurecida em função de haver críticas de fato contundentes ao projeto, sobretudo no que diz respeito à empolgação governista em vê-lo aprovado e à ameaça de patrulhas ideológicas na sua implementação – pretende-se aqui analisar simplesmente a idéia de um ‘conselho’ e a sua eventual contribuição para o fortalecimento tanto das liberdades caras ao jornalismo quanto do direito à informação que todo cidadão deve ter garantido em sociedades democráticas.

Os casos citados acima foram objeto de inúmeros artigos publicados neste Observatório. As teses em defesa de A ou de B alimentaram um rico debate. Contudo, a riqueza dos argumentos apresentados – ora pelas próprias partes ora pelos diversos colaboradores – careciam e carecem de um problema ‘de método’. Nenhuma das teses foram confrontadas umas com as outras, de modo rigoroso, sistemático, num processo em que as dúvidas e incertezas pudessem ir sendo dirimidas, e os melhores juízos fossem se acumulando para enfim se obter uma conclusão definitiva sobre o caso. ‘Definitiva’, explica-se, até que algum dado novo permitisse reabrir a questão. E sempre considerando, obviamente, a possibilidade de recurso.

Se as partes tivessem a oportunidade – ou a obrigação – de apresentar suas teses e confrontar suas pretensões de validade entre si, teríamos a possibilidade de, exauridos os esforços argumentativos, conhecer o ‘vencedor’ e também o procedimento ou a decisão mais corretos para o caso analisado. E uma referência de conduta para todos os profissionais quando envolvidos em situação semelhante.

Onde a boa prática?

O que temos hoje são posições diferentes, antagônicas, que se bastam por si. Mas, quem de fato agiu de modo a preservar a boa prática do jornalismo? Dines ou os diretores da Folha? Boechat ou os diretores do Globo? Teria Joelmir Beting justificativa aceitável para participar de uma peça publicitária? A preservação de um diretor recém-empossado de uma emissora pública respeitável justificaria a suspensão de um programa polêmico? A Rede Globo tem autoridade para impor um ‘interventor’ a suas afiliadas, sob a justificativa de evitar ingerências políticas no noticiário? E por que não se pode fazer o mesmo com outros veículos que padecem do mesmo problema?

A existência de um conselho seria a possibilidade de constituir um fórum no qual as diferentes interpretações sobre o bom e o mau exercício da profissão pudessem ser avaliadas, testadas, provadas ou refutadas. O princípio a nortear tal conceito seria o do aperfeiçoamento da prática profissional. Em busca disso, então, haveria casos em que o mau exercício da profissão pudesse ser punido com graus de intensidade variáveis, obviamente, em função da gravidade da falta. A punição, portanto, resultaria como conseqüência dos princípios defendidos pelo conselho, e não a sua razão de ser.

Princípios claros e consensuais

O ponto de partida fundamental para o bom funcionamento de um conselho seria a existência de princípios claros e consensuais sobre os valores que deveriam reger a prática jornalística. Reconhecida, então, uma tábua de princípios a nortear os profissionais, o que se exigiria dos membros responsáveis pelos julgamentos seria o pleno domínio de tais princípios e de suas aplicações possíveis nos mais diversos casos em que eles possam vir a ser questionados. A notabilidade dos seus membros não seria, portanto, por causa de sua ‘genialidade’ em ter o domínio privado do discernimento entre o certo e o errado. Mas a capacidade para interpretar corretamente parâmetros públicos de aferição do bom jornalismo. A idéia de um conselho representa, portanto, a abertura de um espaço democrático para a resolução de conflitos típicos da prática profissional.

Conselhos de jornalismo não são novidade, ademais. Jean Claude Bertrand, no livro O arsenal da democracia (Edusc: 2002, 514 pp.), relata diferentes experiências, sobretudo européias, do que chama ‘sistemas de responsabilização de mídia’, órgãos não governamentais voltados ao acompanhamento e fiscalização do trabalho dos meios de comunicação. Estruturas bastante flexíveis e diversificadas, ora funcionam como mecanismos de auto-regulamentação – como o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, Conar, uma experiência brasileira – ora como órgãos respaldados inclusive por lei. Há casos em que sua composição é formada apenas por profissionais, e há casos em que empresários e representantes da sociedade civil também participam.

Passada a exasperação que tomou conta das posições nessas primeiras semanas, o que se espera é que os bons argumentos contra a proposta do Conselho Federal de Jornalismo possam aperfeiçoar a idéia. Abatê-la sem tentar considerar os méritos que têm pode ser um grande desserviço ao jornalismo brasileiro. Se, no final das contas, a discussão apontar para o sepultamento da proposta, espera-se que outros mecanismos democráticos de aperfeiçoamento do trabalho jornalístico tenham sido sugeridos. Afinal, um consenso existe: precisamos melhorar.

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Jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe