Quando o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) ofendeu sua colega Maria do Rosário (PT-RS) dizendo que não a estuprava porque ela não merecia, os protestos indignados foram imediatos. As pessoas exigiam respeito e queriam que o parlamentar fosse processado por falta de decoro.
Quando a apresentadora Rachel Sheherazade, do SBT, aplaudiu a violência de um bando de justiceiros de classe média contra o “marginalzinho” negro despido e preso a um poste, a reação também foi veemente.
Agora, muitas dessas mesmas pessoas exaltam a atitude do jornalista Ricardo Boechat, que, na sexta-feira (19/6), em seu programa na BandNews FM, respondeu a acusações do pastor Silas Malafaia mandando-o “procurar uma rola”. E não parecem ver nenhuma contradição nisso.
Parlamentares, como jornalistas, têm uma função pública e por isso mesmo deveriam respeitar certas regras de comportamento. No caso de jornalistas, especialmente quando trabalham numa concessão pública, como são rádios e TVs. Precisam zelar por esse espaço, não podem dizer ali o que diriam se estivessem em casa ou no botequim.
Combater o preconceito
Mas, além desses impedimentos éticos, há razões de ordem pragmática que levariam a reprovar a atitude do âncora da Band. Uma delas é básica e própria do senso comum: não devemos responder a uma ofensa com outra, porque não devemos nos rebaixar. Outra razão é de cunho político e tem a ver com a eficácia do discurso: a campanha que certas lideranças evangélicas vêm fazendo contra homossexuais, contra a legalização do aborto, contra praticantes de outras religiões, enfim, a pregação do ódio contra o “diferente”, precisa ser combatida com todo vigor, mas não há de ser com insultos e com a reprodução de preconceitos que se obterá algum sucesso.
Jornalistas deveriam saber que têm um papel pedagógico. Por isso, se o objetivo é elevar o nível do debate – ou, pelo menos, estabelecer um ambiente minimamente favorável a ele, longe das ofensas pessoais – como forma de deter a espiral de violência em que vivemos, a atitude teria de ser outra.
A não ser que o objetivo seja apenas a busca de audiência, que se pauta exatamente pela incitação à violência, porque, como se sabe, alegria de pobre é ver o circo pegar fogo.
O petardo e a repercussão
A intervenção de Boechat foi uma resposta a ofensas e ao “desafio” de Malafaia, via Twitter, para um debate ao vivo. “Avisa ao jornalista Boechat que ele está falando asneira dizendo que os pastores incitam os fiéis a praticarem a intolerância. Verdadeiro idiota. Desafio Boechat para um debate ao vivo. Falar asneira no programa de rádio sozinho é mole. Deixa de ser falastrão. Não incite o ódio”, diziam as mensagens.
Boechat devolveu na mesma moeda (ver aqui):
“Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me encha o saco. Você é um idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia e agora vai querer me processar. Você gosta muito é de palanque, eu não vou te dar palanque porque tu é um otário, tu é um paspalhão. O que eu falei e repito, e não vou partir pra debate com você que eu não vou te dar confiança, é que é no âmbito de igrejas pentecostais que estão acontecendo atos de incitação à intolerância religiosa, mais do que em outros ambientes. (…) Você é homofóbico, você é uma figura execrável, horrorosa, e que toma dinheiro das pessoas a partir da fé (…). Tenho medo de você, não, seu otário. Vai procurar uma rola, repetindo, em português bem claro”.
Quem solta um petardo desses numa rádio sabe que a repercussão será enorme. Nas mídias sociais, não deu outra: multiplicaram-se os comentários e os memes que ridicularizavam o pastor. Todos, claro, em torno da “rola”, com a qual o jornalista abriu e fechou sua intervenção.
Não se trata apenas de apontar o caráter evidentemente homofóbico dessa fala, curiosamente aplaudida por gente que, explicitamente, se declara a favor dos direitos dos homossexuais. Nem mesmo de demonstrar a incongruência de se reiterar um preconceito a pretexto de combatê-lo. O problema maior, na verdade, são dois: primeiro, a possibilidade de radicalização de uma polarização perigosa nesse ambiente já tão envenenado, pois tudo o que os malafaias desejam é posar de vítimas, e sabem como convencer seus seguidores; segundo, o desserviço prestado pelo jornalista, que deveria simplesmente ignorar a ofensa – já que o silêncio é a melhor resposta quando se diz que não se pretende “dar palanque” ao agressor – ou reagir com serenidade, mostrando que contundência não é sinônimo de grosseria.
Jornalismo de botinadas
Mas é esse o estilo de programas populares, que raramente merecem a atenção da crítica de mídia e, menos ainda, da academia. Como se, dependendo do público a que se dirige, o jornalista estivesse desobrigado de respeitar limites. Pelo contrário, como se a atitude correta fosse o escracho, o responder na lata, o “bateu, levou”, próprios dos programas policiais. E o jornalista, de quebra, ganha popularidade e prestígio como aquele que – supostamente – fala o que pensa, não leva desaforo para casa, abre o verbo e nos lava a alma.
Não por acaso tantos desses têm sucesso na carreira política.
No caso específico, a repercussão favorável à atitude de Boechat teve também outro efeito equívoco: o de, subitamente, apagar a presença de todos aqueles que vêm há muito tempo, nos mais variados fóruns, combatendo o obscurantismo desses exploradores da fé. O comentário de um jornalista, por sinal, foi bem claro nesse sentido: acusou o “silêncio cúmplice de tantos” que seria o motivo da “revolta” do âncora, comparado a um zagueiro argentino que “partiu pra cima do adversário”.
(Não seria demais lembrar que zagueiros bons de briga em geral carecem de técnica. De qualquer forma, pensar no jornalismo como uma arena para distribuição de botinadas não é muito coerente com os argumentos que deploram a transformação da política num Fla x Flu.)
Os arrepios diante da ética
Na internet, as críticas à atitude de Boechat foram rechaçadas com comentários debochados e desqualificadores que acusavam a “patrulha vocabular”, os “progressistas moralistas” que “não conseguem ouvir falar de pinto”, a “escolinha de ética jornalística”, tudo embrulhado na pecha do “politicamente correto”.
Para o jornalismo, o sistemático desdém em relação às questões éticas é o que prejudica, quando não inviabiliza completamente, qualquer debate. O próprio Boechat o expressou quando foi demitido do Globo, em 2001, num episódio em que foi acusado de negociar uma reportagem a favor do então dono do Jornal do Brasil, Nelson Tanure, numa disputa com o empresário Daniel Dantas na área de telecomunicações (ver aqui). Ao publicar sua versão do ocorrido no próprio JB, onde passou a trabalhar (ver aqui), citou “os neotalibãs da mídia e alguns analistas da ética jornalística”, os “teóricos de mãos limpas” que “ganham a vida longe da apuração de notícias”, os “autoproclamados impolutos guardiões da ética”.
A simples menção a essa singela palavra, “ética”, parece estar acoplada a um disparador que provoca arrepios de rejeição automática e cancela a oportunidade de argumentar.
A lei da selva
Na disputa por audiência, de acordo com o registro da coluna “Radar on-line”, no site da Veja (ver aqui), até a manhã de segunda-feira (22/6) Boechat estava ganhando de goleada, com 4,3 milhões de visualizações no YouTube contra 1,3 milhão da resposta que Malafaia divulgou.
“Vai procurar uma rola.” No “popular”, como se sabe, o verbo seria outro: afinal, o âncora até que teve algum pudor.
Vai procurar uma rola, seu idiota, paspalhão, otário, pilantra, tomador de grana de fiel.
Não custa lembrar que, também “no popular”, o pau que bate em Chico bate em Francisco. Sem dúvida, Boechat falou o que muita gente queria dizer. Sheherazade e Bolsonaro também.
Lei da selva é isso aí.
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O jornalista e o pastor – Nelson Hoineff
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)