Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a imprensa deve silenciar?

A imprensa deve colaborar com as autoridades em caso de ameaça terrorista, não noticiando nada; ou, ao contrário, deve alertar a população sobre os riscos potenciais?

Essa questão básica do exercício do jornalismo nos dias de hoje esteve no centro dos debates da imprensa francesa na semana passada. Tudo começou na terça-feira (2/3), quando todos os jornais franceses receberam um comunicado do Ministério do Interior que terminava dizendo :

‘Por evidentes razões de segurança, seria preferível que nenhuma informação fosse dada sobre o desenrolar do caso’.

O ‘caso’ era a ameaça de um grupo terrorista denominado AZF, que se autodefinia como ‘grupo de pressão de caráter terrorista criado no seio de uma confraria leiga’. O grupo acusava o Estado de exercer ‘um ensino redutor’ e se beneficiar de um ‘aparelho midiático cúmplice’. A primeira carta ameaçadora foi vista como trote ou coisa de malucos, como dezenas de outras que chegam diariamente aos órgãos de segurança do governo. Até que começaram a chegar telefonemas e outras cartas.

Publicação solitária

As três letras do nome do grupo terrorista são conhecidas do público francês. No dia 21 de setembro de 2001, a fábrica de produtos químicos AZF, de Toulouse, explodiu fazendo 31 vítimas fatais e muitos feridos. As investigações sobre explosão concluíram que se tratou de um acidente, e não um ato terrorista.

Na nota aos jornais, o ministério dizia estar tentando fazer contatos com o grupo terrorista, com a preocupação de preservar ao máximo a segurança das pessoas.

O AZF já fazia contatos com o governo francês desde 11 de dezembro de 2003, quando chegou ao Ministério do Interior a primeira carta apresentando o grupo e ameaçando fazer explodir trens em toda a França. Depois, telefonemas e novas cartas. Em 13 de fevereiro, uma delas indicava que havia várias bombas colocadas na rede ferroviária francesa, que tem mais de 32 mil quilômetros de extensão. A carta descrevia em detalhes como funcionariam as bombas programadas para explodir e indicava com precisão o local de uma delas. As autoridades francesas encontraram efetivamente uma bomba no local indicado, entre Paris e Toulouse, e confirmaram que o detonador tinha um sistema complexo, eficaz e que estava funcionando.

Para não explodir as várias bombas, os terroristas pediam 4 milhões de dólares e 1 milhão de euros, e indicavam um local onde o dinheiro deveria ser entregue. Primeiramente, sugeriram o heliporto da Torre de Montparnasse, em Paris. Depois, por sugestão da polícia, o local foi mudado para evitar aglomerações urbanas.

No início de março, vários jornalistas já estavam a par do assunto e fazendo investigações independentes. Ao procurarem o Ministério do Interior, receberam a sugestão de não publicarem a notícia para proteger a investigação policial. Devido à insistência dos jornalistas, o ministério resolveu enviar uma nota às redações, em 2 de março. Nela, o ministério fazia um apelo ‘ao senso de responsabilidade’ dos jornalistas, terminava informando que ‘o procurador da República abrira um inquérito junto aos juízes antiterroristas’ e prometia que logo que possível a imprensa seria informada do que se passava.

A maioria dos veículos obedeceu, menos o jornal La Dépêche du Midi, de Toulouse. Na edição de 3 de março, o jornal publicou sozinho a notícia das ameaças do grupo AZF e as negociações mantidas com as autoridades até aquele dia.

Perigo potencial

O ‘furo’ custou muitas críticas ao jornal. As autoridades e muitos jornalistas julgaram inoportuna a publicação da história depois do pedido das autoridades, que só visava a proteção da população. La Dépêche du Midi se justificou num longo editorial assinado por seu diretor Jean-Michel Baylet, no qual está dito:

‘Nós fizemos métier de informação. Nosso métier. Era preciso que tornássemos pública essa informação para que os usuários do trem e os ferroviários soubessem, com espanto, que há várias semanas eles corriam um possível risco, que o poder público tinha conhecimento disso e não tinha, contudo, informado nada. Compreendemos que algumas investigações necessitem de discrição. Não essa. Dizem que ‘paralisamos’ a investigação. Teríamos provocado riscos… Mas se, por infelicidade, um atentado tivesse acontecido quando tínhamos conhecimento, o que teriam pensado nossos concidadãos, sabendo que a imprensa estava a par e não tinha dito nada sobre os perigos potenciais?’

No mesmo 3 de março, quando o La Dépêche du Midi publicou sua matéria revelando a ameaça dos terroristas do grupo AZF, os outros jornais fecharam suas edições e, no dia seguinte, todos davam a suíte do caso em primeira página. O Libération saiu com a manchete ‘Chantagem nos trilhos’. O Le Monde deu ‘Chantagem de terrorismo: todas as polícias em alerta’. L’Humanité saiu com o título ‘O estranho caso AZF’. O Dépêche, por sua vez, publicou o editorial justificando sua escolha de não fazer autocensura.

O Libération contava como os policiais fizeram contato com o jornal para responder aos terroristas por meio de anúncios classificados. No editorial, o Libé justificou sua escolha pelo silêncio até aquele dia:

Libération não divulgou os boatos da chantagem terrorista não apenas para não atrapalhar a investigação policial como pedira anteontem, de maneira pouco habitual, o Ministério do Interior, mas sobretudo porque os elementos de que dispúnhamos eram insuficientes para merecerem publicação – e tudo o que se refere ao terrorismo deve ser tratado com prudência’.

No dia seguinte, L’Humanité entrevistou Isabelle Gardin-Marrou, especialista em tratamento midiático do terrorismo e professora de Ciência da Informação e da Comunicação na Faculdade de Ciências Políticas de Lyon. Ela explicou a decisão do jornal de Toulouse de romper o silêncio dizendo que, para os responsáveis pela publicação, era impossível não falar de algo que potencialmente atingiria seu público leitor – referindo-se à bomba encontrada dias antes nos trilhos da estrada de ferro Paris-Toulouse. Quanto às críticas da mídia ao Dépêche, Isabelle disse que elas revelam a persistência de uma visão infantilizante da opinião pública. Para essa visão, quanto menos se falar, melhor se negocia.

A única vítima

Até a revelação do caso pelo jornal de Toulouse, a comunicação entre a polícia e o grupo terrorista teve momentos de romance policial de segunda classe. As respostas do governo eram dadas através do Libération, nos classificados de anúncios pessoais. Os terroristas eram tratados de ‘mon gros loup’ (‘meu lobão’) e as autoridades policiais assinavam ‘Susy’.

Houve quem perguntasse se não seriam a inicial e as duas últimas letras do sobrenome do ministro do interior Nicolas Sarkosy. O ministro teria ficado irritadíssimo com o ‘furo’ de um jornal ‘de província’. Aliás, a matéria do jornal de Toulouse foi assinada com um pseudônimo Claude Nicolas. Claude é o nome do chefe de gabinete de Sarkosy e Nicolas é o nome do próprio ministro. Os autores de romances policiais populares não precisam se esforçar muito para criar situações mais originais…

A polícia não conseguiu pagar a soma exigida. O helicóptero com os sacos de dólares e euros saiu para ir jogar o dinheiro sobre o lugar pedido pelos terroristas, mas não encontrou sobre a relva o tal lenço azul que eles haviam indicado. Voltou com o dinheiro. E publicou um anúncio dizendo ao ‘gros loup’ que não encontrara o lenço azul.

Desde então, autoridades e jornalistas aguardam notícias do AZF, que ameaçou com explosões e silêncio de 15 dias em caso de trapaça por parte das autoridades.

Por enquanto, a única vítima do caso foi Michel Debacq, de 53 anos, chefe da seção antiterrorista do Ministério Público. O juiz foi acusado por seus superiores de reter informações importantes sem repassá-las. O Le Monde, contudo, informa que o caso foi um mero pretexto pois Debacq era considerado uma pessoa de esquerda, tendo exercido importantes funções no governo de Lionel Jospin.



Baguettes

** A publicidade francesa inova: desde o dia 3 de março, os viajantes franceses passaram a sentir o cheiro dos painéis publicitários. Nas grandes estações de trem parisienses, quem passa sente o cheiro de alecrim que emana do anúncio que convida o leitor a pegar um trem para a região Languedoc-Roussillon.

** O jornal comunista L’Humanité lançou uma petição para arrecadar assinaturas no sentido de preservar o ‘pluralismo da imprensa escrita’ que na França passa por dificuldades enormes. A própria existência do L’Humanité, que este ano comemora 100 anos, está ameaçada. O texto defende o pluralismo da imprensa escrita e o acesso a informações e análises diversificadas como pilares do exercício de uma real cidadania. A petição defende, ainda, a manutenção das tarifas postais atuais para a imprensa e a melhor distribuição e entrega matinal da correspondência. Além disso, pede o aumento da ajuda pública aos diários de informação geral, sobretudo os que têm pequena receita publicitária.

Para permitir a leitura de jornais por todos os estudantes, sugere ao governo criar verbas especiais para assinatura de jornais por escolas, liceus e faculdades. Enfim, a petição defende a criação de um dispositivo de ajuda às pessoas que assinam jornais diários, além da dedução fiscal das quantias doadas por leitores para ajudar a equilibrar o orçamento desses jornais. Registre-se que, ao lançar campanhas de apoio financeiro, L’Humanité recebe milhares de cheques vindos de todo o país.