Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando faltam a razão e o direito

A estréia do jornalista Ricardo Noblat, com seu blog político, no Estado de S. Paulo, traz uma lição inestimável para a compreensão do momento que vive nossa imprensa. Traz também uma mensagem claríssima aos jovens profissionais que sonham um dia escrever no outrora vetusto diário paulista.

A constatação é clara: engajada na luta partidária, a tradicional imprensa brasileira, bem representada pelo Estadão, perdeu os últimos pruridos e não se acanha em abrigar um panfleto em suas páginas, desde que venha a reforçar seus propósitos com relação ao atual governo. A mensagem aos jovens também não poderia ser mais explícita: se quiserem ser bem-sucedidos num grande jornal, aprendam a nadar de acordo com a corrente. Se possível, sejam radicalmente a favor de tudo que pensa o patrão. Substituam a ética pela moral do dia, e boa carreira.

Estranhos os tempos em que vivemos. No momento em que, decepcionados com as instituições políticas – depois de outras desolações cívicas, como a revelação de que grupos criminosos vinham dominando setores importantes do Judiciário –, precisamos de uma imprensa que nos ajude a recompor nosso contrato social, o que temos é uma instituição ‘aparelhada’ e tão partidarizada que se pode colocar em dúvida suas chances de, em futuro próximo, vir a reconquistar algum equilíbrio.

O momento exige ponderação e um olhar cuidadoso na História. Quando as instituições parecem mergulhadas na insanidade – o governo em sua patética incapacidade de dar uma explicação direta à opinião pública, o Congresso em sua calculada autoflagelação, da qual não brotarão as mudanças de que a nação carece –, precisávamos de uma imprensa grandiosa. Sempre esperamos que a imprensa seja maior do que as instituições públicas, uma espécie de foro no qual a consciência nacional se referencia e se renova. Mas ela se apresenta para o jogo não como árbitro ou como intérprete, mas como parte da torcida.

À falta dessa imprensa idealizada, que deveria estar perseguindo a verdade, como esperamos que o direito esteja sempre perseguindo a justiça, o cidadão consciente é transportado ao cenário que o historiador inglês Hugh Thomas descreve num dos capítulos de seu relato sobre a Guerra Civil Espanhola. É dele a descrição mais dramática e detalhada do episódio em que o filósofo basco Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, enfrentou um dos mais sanguinários seguidores do ditador Francisco Franco, o general fascista José Millán Astray.

Falsas virgindades

Era uma solenidade na universidade. Estavam presentes o bispo de Salamanca, o governador civil e a mulher do ditador.

‘Depois das formalidades iniciais’, relata Thomas, ‘Millán Astray atacou violentamente a Catalunha e as províncias bascas, descrevendo-as como cânceres no corpo da nação. O fascismo, que vai curar a Espanha, saberá como exterminá-los, cortando na carne viva, como um decidido cirurgião livre de falsos sentimentalismos, afirmou. Do fundo do auditório, uma voz gritou o lema de Millán Astray: Viva a morte! (…)’.

Desencadeou-se uma histeria de gritos fascistas, detalhada por Hugh Thomas. Foi quando Unamuno tomou a palavra, e aqui nos interessa a atualidade dessa história.

‘Todos os olhos estavam fixos em Unamuno, que se levantou e disse: ‘Estais esperando minhas palavras. Vós me conheceis bem, e sabeis que sou incapaz de permanecer em silêncio. Às vezes, ficar calado equivale a mentir. Porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. Quero fazer alguns comentários ao discurso – para chamá-lo de algum modo – do general Millán Astray, que se encontra entre nós. Deixarei de lado a ofensa pessoal que supõe sua repentina explosão contra bascos e catalães. Eu mesmo, como sabeis, nasci em Bilbao (País Basco). O bispo – e aqui Unamuno apontou o trêmulo prelado que se encontrava ao seu lado –, queira ou não queira, é catalão, nascido em Barcelona’. Fez uma pausa. Na sala se havia estendido um temeroso silêncio. ‘Mas agora acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito, Viva a Morte. E eu, que passei a vida compondo paradoxos que excitavam a ira de alguns que não os compreendiam, devo dizer-vos, como especialista da matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. O general Millán Astray é um inválido. Não é preciso que digamos isto com um tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Mas desgraçadamente na Espanha há atualmente demasiado mutilados. E, se Deus não nos ajuda, logo haverá muitíssimos mais. Me atormenta pensar que o general Millán Astray possa ditar as normas da psicologia da massa. Um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes é de se esperar que encontre um terrível alívio vendo como se multiplicam os mutilados ao seu redor.’ Nesse momento, Millán Astray não se conteve e gritou: ‘Abaixo a inteligência! Viva a morte!’, no que foi apupado pelos falangistas. Mas Unamuno continuou: ‘Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo-sacerdote. Estais profanando seu sagrado recinto. Vencereis porque tendes força bruta de sobra. Mas não convencereis. Para convencer é preciso persuadir. E para persuadir necessitareis de algo que vos falta: razão e direito na luta. Me parece inútil pedir-vos que penseis na Espanha. Tenho dito.’ Foi a última aula de Unamuno.’

Estamos, de fato, diante de um punhado de mutilados morais a nos dizer que, de fato, somos todos mutilados, que o jogo político se faz à base de doações ilegais, mas que nem toda ilegalidade deve ser investigada.

Na falta de uma disposição ampla e geral para buscar a recomposição ética das instituições, propõe-nos um remendo moral aqui e ali, de preferência aproveitando para eliminar do corpo político os desafetos que mais ameaçam as forças hegemônicas de sempre.

Falta-nos um Unamuno. A imprensa deveria ser, em uníssono, a voz do pensador basco, a expor nossos paradoxos e trazer à consciência pública os elementos que lhe permitam entender esses paradoxos e exigir as correções necessárias nas práticas da política e dos negócios públicos.

Aos que gritam diante das câmeras de TV, ansiosos para exibir suas falsas virgindades, a imprensa deveria responder com a inteligência da investigação, com a memória do que já foi apurado e engavetado em tempos recentes. Amplamente, sem guarida a apaniguados, sem seleções calculistas entre vilões. Mas parece que lhe falta razão e direito.

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Jornalista