‘O jornal tem, entre os seus compromissos editoriais, o pluralismo, assim justificado: ‘Numa sociedade complexa, todo fato se presta a interpretações múltiplas, quando não antagônicas. O leitor da Folha deve ter assegurado seu direito de acesso a todas elas. Todas as tendências ideológicas expressivas da sociedade devem estar representadas no jornal.’’ Assim escreve Marcelo Beraba em sua coluna neste domingo, 11/03, mas o jornal não tem cumprido com esse compromisso como podemos claramente comprovar no caderno ‘Ilustrada’ de sábado, 10/03.
O caderno estampou em sua capa a manchete ‘Que esquerda é essa?’ apontando para o processo de transformação que a esquerda tem sofrido devido, entre outros motivos, à queda das utopias e ao engajamento na sociedade de consumo. Apoiando sua argumentação no livro What’s left, do inglês Nick Cohen, a matéria transformou-se em degenerativa, subjetiva, preconceituosa e ridicularizadora.
Ironia e preconceito
Primeiramente, antes de traçarmos uma comparação na qual a conclusão aponta para uma desestruturação, como aponta a matéria da Folha, é preciso que se estabeleçam os princípios e valores que nortearam – no caso em questão, a esquerda – desde sua fundação. Através de uma ‘inserção histórica’ e da explanação de toda a ‘ética’ pela qual se orientava o movimento, o jornal poderia traçar as mudanças e contradições ideológicas que ocorreram com o tempo, para daí, então, perguntar: ‘Que esquerda é essa?’ É impossível fazer uma comparação sem antes esboçar o ponto pelo qual ela se vai nortear.
Foi usado um pseudo-teste, no qual todas as alternativas ridicularizam a esquerda, por virem carregadas de ironia e preconceito: ‘Quando vai à Livraria da Vila, você a-) Pergunta pelos novos livros do Chomsky e do Negri, mas evita o último Saramago, que anda criticando injustamente a repressão em Cuba; b-) Pergunta pela área de CDs e compra Manu Chao e o que acha de world music; c-) Compra o último García Márquez mas também um Vargas Llosa, para garantir a boa literatura; d-) Só freqüenta livraria de shopping ou compra pela Amazon.’ Fica claro o tom irônico, sarcástico e burlesco usado pelo jornal na matéria em questão.
Sátira chula
Um jornal que seja ‘a serviço do Brasil’ não pode tratar um acontecimento pelo viés da comédia pastelão. Representantes da esquerda não foram ouvidos sobre essa ‘transformação da esquerda’, nem tampouco se procurou verificar a situação da direita no país, mostrando como o jornal foi hipócrita utilizando uma página inteira (E4, 10/03) para menosprezar uma determinada orientação política, alternativas que devem ser tratadas com respeito para a construção de uma sociedade.
É fato que a esquerda sofreu diversas transformações no decorrer dos anos, assim como a sociedade, e desta forma uma análise critica é extremamente necessária afim de promover um debate sobre os novos rumos a serem tomados em um mundo que é mais descartável volúvel e quente. Matérias como a da Folha, desqualificando um movimento que foi extremamente importante na história mundial e teve papel fundamental na construção da sociedade moderna, não prestam serviço algum à população, nem mesmo servem de argumento a opositores da esquerda, devido a seu tom totalmente subjetivo e moldado pela sátira chula, desprovida de qualquer inteligência.
Desqualificando a credibilidade
O jornal poderia ter feito a brincadeira com a esquerda, mesmo porque através de Moliére vemos toda a hipocrisia dos valores burgueses em tempos remotos, porém como sua função não é o teatro, o jornal deveria ter equilibrado a editoria realizando matéria sobre a direita que assiste a filmes de Almodóvar e visita ‘instalações’ achando que estas representam o máximo da arte na sociedade. A direita que admira Romero Britto e compra suas futilidades na Daslu. Da mesma forma que a esquerda, que critica o consumismo, mas paga 80 reais por uma camiseta com a estampa do Che e nunca leu O Capital.
A apropriação de opiniões por um segmento do mercado é um fenômeno que há muito o marketing tem realizado. Esse fenômeno é uma das causa das transformações da esquerda e da alienação da direita e mesmo da transformação da sociedade descartável, volúvel e alienável. Fenômeno extremamente importante que o jornal transformou em chiste, desqualificando tanto o movimento de esquerda quanto a qualidade e a credibilidade da Folha que, nesta matéria, foi panfletária e subjetiva.
Compromissos desrespeitados
A Folha e a ‘Ilustrada’ devem explicações à sociedade, a seus leitores e assinantes pelo ocorrido. Ao jornal cabe criticar a quem bem aprouver, é seu direito em uma sociedade livre na qual a informação deve circular favorecendo o debate entre seus membros. Ao adotar a comédia para fazer uma crítica, o jornal perde em credibilidade e imparcialidade; desprovendo essa comédia de uma argumentação coerente e sem preconceitos, o jornal torna-se panfletário.
A reflexão também passa pela comédia. Desenhos de Adão Iturrusgarai, assim como os de Laerte, Angeli, entre outros, ilustram muito bem o papel da sátira, mas como nem toda piada faz rir, o que a Folha fez foi, na melhor das hipóteses, infantil e burlesco.
Devido aos compromissos adotados pela Folha de S. Paulo, espera-se muito mais do jornal, ainda mais quando este condena em seus editoriais a infantilidade e a arruaça.
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Coordenador de Comunicação, Jundiaí, SP