Poucas críticas foram desferidas pela imprensa brasileira contra a severa repressão imposta pelo governo de David Cameron aos manifestantes envolvidos nos recentes movimentos que eclodiram no Reino Unido, postura endossada por várias autoridades britânicas. Além de prender e julgar sumariamente centenas de pessoas acusadas pelo envolvimento direto nos conflitos, o governo chegou a punir até familiares de acusados e o próprio premiê teria afirmado pretender controlar o Facebook, o Twitter e o serviço de mensagens do Blackberry para que não fossem usados para organizar manifestações.
Não se viu indignação na cobertura jornalística dos grandes veículos. No rádio, na televisão e em grandes periódicos, o foco foi a prévia condenação dos manifestantes como meros ladrões, salvo, neste ponto, o artigo do cineasta Henrique Goldman na Folha de S.Paulo (“A Europa se abrasileira, e Londres tem até arrastão”). Por outro lado, fora do circuito das grandes redes, a tônica foi de ojeriza à repressão inglesa, como em Gianni Carta (“Tolerância Zero leva à cadeia os primeiros `ladrões de galinhas´”, CartaCapital), Marcelo Justo (“Justiça britânica endurece e criminaliza protestos”, Carta Maior) e Sílvio Mieli (“Londres Chamando”, Brasil de Fato).
A grande imprensa, desde o princípio dos distúrbios, divulgou a visão de que os protestos e saques ocorridos na Inglaterra seriam fruto de um bando de jovens desordeiros alienados. Não faltaram aqueles que os chamassem de terroristas ou criminosos comuns, abordagem que justificaria, na mentalidade conservadora, qualquer natureza de repressão (pelo menos até a vítima ser seu ente querido). Tony Wood, entretanto, em artigo para o jornal Le Monde (“O movimento social britânico sai da letargia”), mostra o quanto a sociedade civil do Reino Unido já vinha se articulando nos últimos tempos em torno da insatisfação com o desmantelamento do Estado de bem-estar social, processo iniciado com as políticas liberalizantes de Thatcher, continuadas em Blair e sacramentadas com as medidas de austeridade em Cameron.
Países autoritários
Com o nítido fracasso do modelo liberalizante de Estado mínimo ameaçando preciosas conquistas sociais, afetando diretamente a vida de milhões de ingleses, aliado ao momento internacional virtuoso em movimentações de massa onde predominam bandeiras políticas democráticas, há motivos de sobra para manifestações. Parece que houve, sim, desorganização nos protestos, falta de unidade de propósitos, abusos, saques, vandalismo e tudo dirigido contra as próprias comunidades pobres dos manifestantes. Mas um Estado de direito não pode perder as estribeiras da racionalidade. A natureza violenta e autoritária da repressão governamental é um sintoma grave de crise das instituições democráticas. Como Gianni Carta adverte, o programa de “Tolerância Zero” de Cameron não resolverá a conjuntura atual, de modo que manifestações como essas serão “inelutáveis e cíclicas”.
A punição de familiares de acusados com a retirada de benefícios sociais, como o direito à moradia, segue coerentemente a linha política de descaso com os programas sociais para os mais pobres. Mas vai muito além; parece constituir um crime contra a dignidade humana tão grave que, ao menos em tese, essas autoridades inglesas poderiam responder perante organismos internacionais de direitos humanos, como o Tribunal Penal de Haia. Isso, se entendermos que o caso se enquadra na descrição típica de “delito contra a humanidade”, do Estatuto de Roma, na medida em que se vislumbra um ataque sistemático de perseguição a um grupo identificado por motivo político e com privação intencional e grave de direitos fundamentais, em violação do direito internacional (art. 7º, alínea h).
Chama atenção o fato de isso ocorrer em pleno século 21, na Europa Ocidental, em um Estado “democrático” com uma rica história política, como a Inglaterra. Nas últimas décadas, só se tem notícia de penas dessa natureza em países extremamente autoritários, como o caso da Coreia do Norte ou alguns países da África. Principalmente por se tratarem economias de pequena significância, não costumam atrair a devida atenção da imprensa e reprovação da comunidade internacional.
Tratamento desigual
Atos dessa natureza violam alguns dos mais caros princípios liberais conquistados historicamente na luta contra regimes autoritários. Se na esfera econômica o liberalismo beneficia sobretudo interesses dos poderosos, nas esferas política e civil há algumas contribuições liberais importantíssimas para a garantia das instituições democráticas. Mais especificamente na esfera penal, há conquistas fundamentais que deveriam servir para a defesa de todas as pessoas, inclusive aquelas economicamente desfavorecidas, ante o arbítrio do onipotente Estado-Leviatã. Um dos princípios frontalmente violados nesse episódio é o da personalidade da pena ou da imputação pessoal, o qual preconiza que a pena não pode passar nunca da pessoa acusada de praticar o ato ilícito. Somente a autora, e mais ninguém, pode responder por seus delitos. Outro é o da responsabilidade pelo ato, que impõe que a pessoa só pode responder penalmente por alguma conduta criminosa que tenha efetivamente praticado; mas nunca pelo fato de ela ter determinada orientação política ou por ser de alguma minoria cultural, racial ou étnica, o que poderia representar alguma periculosidade social. Pois os familiares daqueles acusados estão sendo punidos não apenas por atos de outras pessoas, mas também por motivos políticos, ao servirem instrumentalmente como símbolos contra atividades de contestação e oposição.
O fato de centenas de julgamentos terem ocorrido de maneira sumária, a toque de caixa, de uma forma a praticamente inviabilizar a oportunidade de ampla defesa aos acusados, atenta contra o “devido processo legal”.
E o que dizer da vontade manifesta das lideranças inglesas de censurar as redes sociais? Qualquer discussão dessa natureza costuma servir como um prato cheio para o voraz apetite da grande mídia contra governos ligados à esquerda política. O que facilmente estamparia as manchetes principais dos periódicos e seria destaque nos telejornais. Porém, quando é proveniente de um governo conservador identificado com a direita política, é relegado a pequenas notas de rodapé ou nem sequer aparece.
Longe de apoiar medidas autoritárias deste ou daquele lado, o intuito aqui é a denúncia ao tratamento desigual e tendencioso na cobertura dos mesmos fatos, a depender de onde ocorram e de quem os pratica, ou, mais precisamente, de quais bandeiras políticas essa liderança hasteia. Porque se quem protagonizasse tais medidas fosse Correa, Dilma, Morales ou mesmo Kirchner, a repercussão na grande imprensa conservadora seria, sem dúvida, muito diferente.
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[Otávio Dias de Souza Ferreira é advogado, São Paulo, SP]