Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando o crítico de mídia
também erra – e feio

Cometi um grave erro como jornalista num recente artigo que escrevi para Exame. Em 39 anos de profissão, nunca tinha me acontecido algo parecido, e não encontrei outra forma de ficar bem comigo mesmo senão me afastando voluntariamente do quadro de colaboradores da revista, do qual fazia parte há três anos como titular da coluna ‘De olho no poder’.

O artigo, ‘A farra dos vereadores’, não disponível na internet, faz parte do número 821 da revista, ainda nas bancas mas prestes a ser substituída pela edição seguinte. Nele, cometi o pecado da arrogância e da presunção: para abordar um assunto ‘quente’, comentei como se já tivesse ocorrido algo que tinha 99% de chances de acontecer, mas não aconteceu. Trata-se do projeto de emenda constitucional disciplinando a composição das Câmaras Municipais e estabelecendo o número de vereadores que elas deveriam ter, de acordo com a população.

O projeto fora aprovado em dois turnos, por imensa maioria, na Câmara, e também passara folgadamente pelo primeiro turno no Senado. Mas a pressa de senadores interessados em aprová-lo a tempo de vigorar nas eleições deste ano fez com que o segundo turno fosse votado com apenas 52 dos 81 senadores no plenário. Ele teve grande maioria de votos – 41 contra 11 –, mas para ser finalmente aprovado precisaria ter alcançado 49 ‘sim’ (três quintos dos senadores, conforme dita a Constituição). A emenda morreu.

Quando isso se deu, o artigo, que partia do pressuposto de que a emenda passara, não somente já tinha sido escrito, como a revista já fora impressa. O resultado prejudicou os leitores, a revista e, claro, a credibilidade do autor. Aproveito o infortúnio para concretizar algo que imaginava há algum tempo para este Observatório: sendo um crítico de mídia bissexto – e, como os demais do métier, não raro carregando o estigma de ter o dedo em riste de ‘j’accuse’ diante de tropeços e erros alheios –, escrever sobre tropeços e erros próprios.

Não se trata de um gesto de contrição. Tampouco de busca de legitimidade: todos nós, jornalistas, temos o direito e o dever de ser críticos com o produto do trabalho da ‘indústria’ na qual estamos envolvidos. É apenas uma forma adicional de lembrar que a possibilidade de erro nos espreita a cada curva do caminho. E talvez tenha, para colegas, algum efeito didático.

Uma longa carreira, por cuidadoso que seja o jornalista, significa inevitavelmente uma extensa relação de tropeços. Para este artigo se conter dentro de limites razoáveis de tamanho, no entanto, narrarei, além deste de Exame, dois outros entre os não poucos de que não posso me esquecer – um ocorrido nos verdes anos de jovem repórter em início da carreira, outro com o jornalista experiente, no comando de uma grande equipe, num grande jornal.

Mudo diante do marechal

O segundo presidente biônico do ciclo militar, marechal Arthur da Costa e Silva, assumiu em 15 de março de 1967. Havia, claro, a importância intrínseca do evento, mas a posse representava adicionalmente a passagem do poder das mãos do cabeça da ala considerada ‘intelectual’ das Forças Armadas, o marechal Castello Branco, para um nome afinado com a chamada ‘linha dura’ do regime e em muitos sentidos um antípoda do antecessor: seu ex-ministro da Guerra (nome naquele tempo do hoje extinto Ministério do Exército).

Eu era então um jovem jornalista com meros dois anos de prática, integrado à sucursal de O Estado de S. Paulo em Brasília. Para a cobertura do evento, o chefe da sucursal, M. Vilela de Magalhães, espalhou repórteres e, em menor número, fotógrafos nos diversos cenários em que a solenidade transcorreria.

Como cortesia a Costa, Castello, que voltaria a morar no Rio, se mudara na véspera do Palácio da Alvorada para a suíte presidencial do Hotel Nacional. De lá, seguindo o protocolo, ele iria a horas tantas para o Palácio do Planalto, onde transmitiria o cargo e a faixa presidencial a Costa e Silva, àquela altura já empossado pelo Congresso. Ao jovem repórter coube, como uma das tarefas do dia, ir ao hotel, alojando-se no posto de observação possível diante da férrea segurança presidencial.

À chegada, dei-me com um quadro inesperado: o dispositivo de segurança no lobby parecia pequeno e discreto, apesar do inevitável burburinho, inclusive de repórteres e fotógrafos. Sem maiores problemas, marchei rumo aos elevadores e apertei o botão do andar da suíte presidencial, disposto a seguir enquanto não fosse barrado. Novamente não imaginava o que vi: nos corredores do andar havia um único segurança, de terno e gravata, e ele não reagiu à minha presença. Fiquei por ali, no saguão dos elevadores, aguardando alguém me forçar a ir embora.

Reação bisonha

A certa altura, e de repente, surge, dirigindo-se aos elevadores, lépido, à frente de um pequeno grupo de auxiliares, o próprio presidente Castello, com aquele ar de quem acaba de barbear-se e tomar banho. Como nunca imaginou na vida que fosse cruzar num corredor de hotel com Castello, sozinho e sem ser importunado, num dia importante para a biografia do presidente e para o próprio país, o jovem repórter deixara de fazer a elementar lição de casa: preparar previamente perguntas para o caso de essa eventualidade remota concretizar-se.

Qualquer resposta a uma boa pergunta poderia, no dia seguinte, ser manchete. Costa e Silva havia prometido ‘humanizar’ a política econômica de Castello desde sua primeira entrevista como ‘candidato’ à eleição indireta. Por que não perguntar a Castello, por exemplo, mesmo naquela correria da saída da suíte, qual sua opinião a respeito? A ‘revolução’ de 1964 mudaria os rumos da economia com o novo general-presidente? Haveria um gordo cardápio de outras potenciais perguntas – sobre política, sobre relações exteriores, sobre direitos humanos, sobre os próprios planos do marechal para o futuro.

Mas não. Minha reação de repórter foi a mais bisonha possível: perplexo com esse quase encontrão com o presidente, que me encarou entre surpreso e contrafeito, não consegui perguntar nada. Dos lábios do jovem repórter saiu a bobagem óbvia e rasteira: ‘O senhor está indo para o Palácio do Planalto, não é, presidente?’ Ele apenas me olhou e, claro, nem respondeu. A porta do elevador se fechou, e tive vontade de me enfiar debaixo do sofá que havia no saguão.

O primeiro turno

A primeira escolha direta do presidente desde o golpe militar de 1964 talvez tenha sido, pela carga simbólica envolvida, a mais importante eleição da história da República até então. Na época, 1989, cabia-me dirigir a sucursal em São Paulo do Jornal do Brasil, desde 1985 comandado brilhantemente por Marcos Sá Corrêa e numa fase de grande prestígio.

Era uma grande sucursal, com 30 repórteres e cinco fotógrafos, fora pessoal de apoio (chefe de produção, secretárias, office-boys, teletipistas – eles seriam progressivamente dispensados nesse mesmo ano, com a informatização do JB –, motoristas), que abastecia o jornal com pelo menos um quarto, em média, de todo o seu conteúdo não estrangeiro, quando não mais do que isso. Além de enviar material para todas as editorias propriamente ditas, colaborávamos intensamente com a coluna de Zózimo Barrozo do Amaral, com o Informe JB, então tocado por Ancelmo Góis, com a revista Domingo e os suplementos Viagem, Idéias e Casa & Decoração. Eu próprio escrevia um artigo semanal para a página de Opinião, realizava bissextamente reportagens e, vez por outra, perpetrava editoriais.

A certa altura, passaram a ser produzidos em São Paulo quase todo o caderno Carro & Moto, em boa parte pelo repórter Carlos Augusto Pereira de Souza, e o Informe Econômico, a cargo de Carlos Alberto Sardenberg. O time suava duramente a camisa para dar conta disso tudo na cobertura do colosso político, cultural e econômico que é São Paulo (capital e interior, constantemente percorrido por nossos repórteres). Além do mais, o estado tinha nada menos de cinco candidatos à Presidência.

Com tudo isso, tínhamos orgulho de dar furo sobre furo em diferentes áreas. O principal deles, naquele ano, foi a descoberta, pelo repórter Luiz Maklouf Carvalho, de que o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, era pai de uma filha de cuja existência ninguém, fora da família, tinha conhecimento. A reportagem, jornalística e eticamente irretocável, publicada no dia 29 de abril de 1989 (confira em http://prof.reporter.sites.uol.com.br/jblurian.htm), seria posteriormente a fonte onde beberia a campanha de Fernando Collor (PRN) para utilizar de maneira sórdida, contra Lula, um depoimento da mãe de Lurian.

Em meados de setembro – o primeiro turno se daria no dia 15 de novembro –, em reunião no Rio, depois de ressalvar as muitas boas reportagens do jornal, como a sobre Lurian, Marcos foi ao ponto: a cobertura das eleições pelo JB, embora correta, vinha sendo corriqueira, óbvia. Sim, os outros jornais não brilhavam tampouco. Mas o JB, pregou ele, precisava se diferenciar, fazer mais, e fazer melhor. Pediu idéias e sugestões.

O início do trabalho

De minha parte, no dia seguinte enviei uma proposta de cobertura grandemente baseada em sugestões do excelente repórter Marcos Emílio Gomes, hoje editor executivo de Veja. Sá Corrêa gostou muito, mas, por razões operacionais e de orçamento, não pôde implementá-la. Em vez disso, e inspirado em parte no que havíamos sugerido, preferiu deslocar de suas atividades cotidianas quatro quadros experientes do jornal para cobrir a reta final do primeiro turno dos quatro candidatos situados à frente nas pesquisas de intenção de voto: Collor, Leonel Brizola (PDT), Lula e Mário Covas (PSDB).

Covas ficaria com Wilson Coutinho, crítico do Caderno B e do caderno literário Idéias; Lula, com Zuenir Ventura, na ocasião editor do B e de sua edição de domingo, o BEspecial; Brizola, a cargo de Etevaldo Dias, na época à frente da sucursal de Brasília; e Collor, disse-me por fim Marcos, ‘vai ser responsabilidade sua’.

Poucas vezes trabalhei tanto, e tão freneticamente. Collor, àquela altura o favorito absoluto para levar o primeiro turno, também era considerado páreo duríssimo para qualquer candidato no segundo. Objeto de muitas coberturas negativas e hostilizado pessoalmente por não poucos repórteres em seu dia-a-dia de candidato, ele estava muito tenso, ressabiado com a imprensa e praticamente inacessível, embora tivéssemos tido inúmeros contatos desde sua posse como governador de Alagoas, dois anos antes.

Comecei o trabalho em São Paulo mesmo. Xeretei interminavelmente seu comitê e tive longas conversas com o irmão, Leopoldo, chefe da vital operação de Collor no estado. Falei com outras pessoas de sua família. Consegui vencer as barreiras, funcionais e de timidez, de sua discreta e quase desconhecida assessora econômica, Zélia Cardoso de Mello, futura e todo-poderosa ministra da Economia. Ouvi gente conhecida e igualmente gente obscura, de segundo escalão, que trabalhava para o candidato.

Informante precioso

Fui para Brasília, deixando a sucursal nas mãos do chefe de Redação, Jaime Klintowitz – ele também, hoje, editor-executivo de Veja – e me pus a campo. Fiz demoradas entrevistas com o estado-maior de Collor. Entre outros, passei a conversar constantemente com seu assessor (e futuro secretário de Imprensa) Cláudio Humberto – que, justiça seja feita, revelou-se então e continuou sendo na Presidência um generoso e correto informante; o cunhado de Collor e futuro secretário-geral da Presidência, embaixador Marcos Coimbra; o então líder do PRN na Câmara dos Deputados, o hoje senador Renan Calheiros (PMDB-AL); seu então grande amigo de juventude e financiador Paulo Octavio Pereira, empresário e atual senador (PFL-DF). E por aí vai.

Da lista não escapou nem o falecido deputado José Carlos Martinez (PTB-PR), na época no PRN de Collor, muito ligado ao candidato e chefe de sua campanha no Paraná. De Brasília, falava sempre por telefone com o diretor do instituto Vox Populi, sediado em Belo Horizonte, Marcos Antonio Coimbra (que me propiciaria inclusive acesso a reuniões de pesquisa qualitativa com grupos de eleitores, em São Paulo). Estive com Belisa Ribeiro, responsável por seu programa de TV, com o jornalista Sebastião Nery, seu assessor, com técnicos envolvidos na montagem de seu programa de governo em São Paulo e com dezenas de pessoas pouco conhecidas, mas cruciais para a operação do candidato, além de serem boas fontes, como, entre outros, os cameramen que o seguiam Brasil afora fazendo imagens para o horário eleitoral na TV.

Acima de tudo, consegui um informante precioso, cujo nome ainda guardo em sigilo 15 anos depois, capaz de me dar detalhes da intimidade de Collor em sua residência em Brasília, a Casa da Dinda, de seus hábitos pessoais, de seus desabafos, de como transcorriam as viagens no imponente jato Challenger de campanha, que tinha até aeromoça e no qual jornalista não conseguia sequer pisar.

Dói até hoje

Se não voei no Challenger, consegui acompanhar, em outro aparelho, deslocamentos do candidato pelo interior do Brasil. Registrei o delírio coletivo (hoje completamente esmaecido pela tragédia em que seu governo se transformaria) que Collor, tal qual uma estrela de rock, provocava em multidões, freqüentei seus palanques e comi poeira em caminhadas e carreatas, assisti a encontros e reuniões, ouvi lideranças políticas estaduais, chefetes locais, eleitores de todo tipo. Vez por outra, em pequenas brechas, consegui curtas conversas com o próprio Collor.

O resultado começou a ser publicado numa imensa reportagem cujo texto tinha início na primeira página, continuando nas páginas internas do JB – recuperação de uma velha tradição de grandes jornais do mundo implementada por Roberto Pompeu de Toledo, então um dos editores-executivos de Marcos Sá Corrêa. Seu título: ‘Collor em campanha faz videoclip político’.

Por essa reportagem e pelas seguintes, até a véspera do primeiro turno, recebi elogios de meus superiores, de colegas, de políticos – e tive o gosto de causar perplexidade na equipe de Collor, por divulgar, com exatidão, informações que os assessores não sabiam como eu havia obtido.

Em toda essa cobertura, porém, faltou algo que na ocasião me pareceu só um detalhe: ir atrás de um personagem de que ouvira falar mas deixei para depois. Muito discreto, ele cuidava do caixa da campanha e se apresentava como empresário. Seu nome: Paulo César Cavalcanti de Farias. Sim, ele próprio, o PC Farias. O ‘depois’ nunca veio, e o ‘detalhe’ mais adiante se revelaria o elemento-chave para explicar a ascensão, os desmandos e a queda do presidente da República que governou o Brasil de 1990 a 1992.

Claro que só erra quem põe a mão na massa, mas – confesso – isso me dói até hoje.

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Jornalista