O ‘caso Tiririca’, fartamente discutido na mídia e em rodas de opinião, merece alguma reflexão, não apenas quanto à bizarrice dos comportamentos eleitorais, mas também sobre como raciocinam as elites, repercutidas em última análise pelo senso comum e pela imprensa.
Para começar, um comentário que nos aconteceu fazer em resposta à demanda de um repórter (O Globo, 26/9). É de hábito, nesse tipo de abordagem telefônica, que o entrevistado fale muito, na expectativa de uma plena explicação impressa do que disse. O publicado foi apenas uma pílula explicativa, mas fiel em sua curteza: aventamos a hipótese de um ativo lado estético nessa manifestação de preferência política chamada voto.
A rigor, o fenômeno estético começa desde as táticas propagandísticas dos candidatos a postos eletivos, na medida em que legitimam o seu pleito por marketing ou por interpelações afetivas. Nos dois casos se aciona o emprego racionalista do afeto por meio da retórica, isto é, pela arte da expressão e da persuasão empregada como técnica política, graças a seus efeitos de instrumentalização e controle dos discursos. A retórica serve para convencer, no sentido racionalista do termo, e para agradar ou adular, o que dá a medida de seu escopo afetivo ou irracional. Em linhas gerais, serve para comunicar ideias e emoções, produzindo sensações.
Baixaria e trivialidade
A retórica e, portanto, a estética, sempre esteve presente no âmago do fenômeno político, embora em graus diversos de intensidade. Não raro, a distância temporal permite-nos ver que usuários da retórica política no passado, tidos como sujeitos de ‘extraordinários’ dotes oratórios, parecem-nos hoje simplesmente grotescos. Hitler, por exemplo: nada de realmente excepcional em seus discursos, hoje analisados em filmes e gravações, exceto o fato de que o orador constituía uma espécie de ‘canal sinergético’ para as massas alemãs ávidas por um líder que as resgatasse das históricas humilhações militares e econômicas. Ao modo de um pregador religioso fanático, o führer dizia o que a multidão queria escutar.
Ou então, ao modo (soft) da mídia. É justamente um filósofo alemão, Peter Sloterdijk, quem enxerga na identificação do público alemão com o führer algo semelhante à da audiência com a sua mídia, a tal ponto que um termo entra em curto-circuito com o outro, bloqueando quaisquer funções críticas. Diz ele: ‘O segredo do führer de antes e dos astros de hoje consiste no fato de que são semelhantes a seus mais apáticos admiradores. (…) Ele possuía, quando desejava, a ordem imperativa da baixaria. Não entrou em campo em função de algo extraordinário, e sim, por sua inequívoca grossura e pela manifestação de sua trivialidade.’
É óbvio que a conjuntura histórica da Alemanha hitlerista não tem nada a ver com o funcionamento das tecno-democracias de hoje, seja na Europa ou nas Américas, mesmo nos casos de conhecidas tentações caudilhescas. Mas a baixaria e a trivialidade continuam exercendo papéis centrais na semiose (processo geral de comunicação) midiática, assim como em outros processos de multidão acionados pela retórica, como acontece em campanhas eleitorais.
O desvio da normalização político-eleitoral
Faz-se cada vez mais presente o grotesco, entendido como categoria estética que dá conta do riso nos fenômenos de fronteira entre o que consensualmente se define como o ‘normalizado’ e o desregramento civilizatório, ou então entre o humano e inumano. Ao repórter do Globo, referimo-nos à oposição entre a estética ‘da cintura para cima’ – que caracteriza os comportamentos normalizados e potencialmente sublimes – e a estética ‘da cintura para baixo’, relativa ao humus da terra, portanto, ao humilde, ao popularesco ou ao que se presta ao fácil entendimento.
A principal figura de retórica pertinente a essa estética é o bathos, que implica o rebaixamento de uma estrutura qualquer com vistas à sua maior comunicabilidade. Não se trata de um preconceito culturalista, como se a ‘alta cultura’ estivesse olhando de cima para baixo a cultura popular. O rebaixamento é a figura retórica da facilitação. Cujo exagero constituiu um recurso importante na formação do público de massa da televisão brasileira e continua a funcionar, aqui e no exterior, como fator de aglutinação de audiências. Um público enorme é inequivocamente parceiro desse bathos de duvidosas intenções.
Mas há uma grande dose de hipocrisia no interesse da mídia e de grandes frações de público pela figura do candidato Tiririca. Em princípio, o riso contrafeito resultaria dos tiques grotescos do personagem detectáveis em atitudes e frases (do tipo ‘Tiririca, pior do que está não fica’). O riso dos ‘cultos’ seria uma espécie de auto-vacina contra o presumido desvio da normalização político-eleitoral.
O riso do grotesco
O grotesco é quase sempre, porém, um ‘arranhão’ na crosta dos protocolos sociais, é uma visão incômoda do abismo das aparências superficiais. De fato, pode ser muito incômodo tomar consciência de que, em zonas de sombra do que vimos chamando de ‘espaço público’, o máximo de ‘democracia’ pode ser aquilatado pelo mínimo de qualificação humana, como tem demonstrado o Big Brother Brasil: o indivíduo sem nenhuma qualidade social é a estrela do show, é como se a palavra boçalidade precisasse de três ‘bês’ (BBB) para ser grafada.
Não raro, a poesia expõe esse tipo de incômodo melhor do que a prosa de argumentos, a exemplo do excelente poeta mineiro Ricardo Aleixo, que indaga: ‘O que faz de um humano, humano? (…) Os sonhos dos políticos são da mesma matéria de que são feitos os sonhos dos humanos?’
Por isso se observa uma difusa tensão, nada engraçada, decorrente da suspeita, não claramente enunciada, de que se possam contar às centenas os casos tipificados como ‘grotescos’ no panorama eleitoral. Age-se como se Tiririca fosse único, como se fosse um grande ‘outro’. No entanto, à frente (na televisão), nos lados (nos cartazes de rua), no corpo-a-corpo de candidatos, o grotesco espreita, apenas travestido de uma retórica escolarizada, com sujeito, verbo e predicado – equivalentes gramaticais do paletó e gravata.
Aqui, com todo o rigor desse traje, o cara-de-pau ainda embaraçado nas malhas da Justiça anuncia-se como ‘ficha limpa’; ali, o candidato a deputado expõe o seu programa: ‘Nós é jeca, mas é jóia’; acolá, a candidata ao governo se atrapalha: ‘Temos que defender essa corrupção’.
O riso do grotesco é sempre nervoso. O risco é nos darmos conta, como agora, de que Tiririca é legião.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro