Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Que tipo de imprensa Chávez quer cercear?

Mary Clentícia Stelling de Macareño, nome verdadeiro de Maryclen Stelling, citada como ‘fonte independente’ pelo Estado de S.Paulo de quinta-feira (14/4), na reportagem ‘Chávez instala sua força de reserva’, escreveu recentemente no site Red Voltaire, dedicado à liberdade de expressão, que ‘o poder alcançado pelos meios de informação na área política é um fenômeno que se apresenta como inegável crise do sistema representativo venezuelano’.


Ela aparece na reportagem do Estado como autora de uma rara opinião neutra sobre a Venezuela de Hugo Chávez nos grandes jornais brasileiros. O jornal apresenta Mary Clentícia, professora de Sociologia Política, como ‘analista política independente’. Na verdade, ela integra o Observatório de Medios, organização não-governamental venezuelana que tem como ‘propósito fundamental exercer, por meio da análise rigorosa e responsável, a observação permanente da informação oferecida pelos meios de comunicação social venezuelanos’.


Em seus artigos, Mary Clentícia manifesta desaprovação ao tipo de jornalismo praticado em seu país, assim como a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos e poderosos grupos empresariais, e, sempre que pode, condena o uso político dos donos dos meios de informação venezuelanos, principais promotores do fracassado golpe de Estado contra Hugo Chávez, em abril de 2002. ‘A comunicação e a informação política foram transformadas em reféns desse espaço político capturado pelos meios de informação’, escreveu no artigo para a Red Voltaire.


Verdade sacrificada


No golpe fracassado contra Chávez, todos os jornais brasileiros trouxeram fotos de ‘chavistas’ de arma em punho atirando contra uma passeata de supostos manifestantes da oposição. A verdade era a ordem inversa. O desmonte da farsa está no documentário Chávez – o Filme, A Revolução Não Será Transmitida, dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, que recebeu 23 prêmios e menções honrosas nos Estados Unidos, Europa, África do Sul e América Latina. O documentário foi apresentado mais de uma vez no Brasil, pela TV Câmara, da Câmara dos Deputados. Mas, consciente ou inconscientemente, nenhum dos grandes jornais brasileiros destacou o documentário que comprova que foram enganados por seus pares venezuelanos. Quem teve a oportunidade de assistir, surpreendeu-se com revelações como essa – e que apenas reforçam a premissa de que se deve desconfiar de tudo que se lê ou vê nos meios de informação. Principalmente quando o tema é a Venezuela de Hugo Chávez.


Uma das passagens do filme traz Pedro Carmona, presidente da Fedecámaras, a Fiesp local, escolhido pelos golpistas para ocupar a Presidência da República, em entrevista por telefone à CNN. Ele conta, ‘ao vivo’, que a derrubada de Chávez fora um sucesso e que restavam apenas ‘alguns pontos isolados de resistência’. Era tudo mentira: Carmona já se encontrava na condição de fugitivo – ele reside hoje em Miami – e Chávez já havia sido reempossado.


O filme também mostra que, das três redes venezuelanas de televisão, apenas as duas privadas continuaram no ar. O sinal da rede pública havia sido derrubado e a sede da emissora ocupada pelos golpistas. Enquanto isso, as redes privadas informavam que Chávez já se refugiara em Cuba. O golpe fracassado da mídia revelou a falha estrutural do sistema de comunicação do governo venezuelano – e é justamente essa deficiência que explica o empenho de Hugo Chávez em apressar a inauguração da Telesur, a rede de TVs estatais do Brasil, Argentina, Uruguai e da própria Venezuela. O Estadão, também trata da rede, na mesma edição de 14/04/05, na reportagem ‘Jornalista é condenada a 6 meses por difamar’. O jornal trouxe que o propósito da Telesur ‘‘é romper com a conspiração das tevês’, segundo políticos chavistas’.


A propósito da condenação de Patrícia Poleo, filha de Rafael Poleo, dono do jornal El Nuevo País, tanto o Estadão quanto O Globo afirmam que sua condenação é uma nova ameaça à liberdade de imprensa. É verdade. O problema é que o jornal, como diz a observadora Mary Clentícia Stelling de Macareño, opera como parlamentar de oposição e sacrifica a verdade dos fatos em nome de seus objetivos políticos. Nem sempre foi assim.


Informações falsas


Patrícia ganhou o Premio Rey de España de 2001, com a série de reportagens que investigou a prisão de Vladimiro Montesinos, ex-assessor do ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori. Conforme ela comprovou, Montesinos contava com a proteção de Hugo Chávez em seu esconderijo venezuelano. Um ano depois, o engajamento político anti-Chávez já se refletia em seu trabalho. A seção ‘Entre Aspas’, do Observatório da Imprensa (12/6/2002), trouxe reportagem da Folha de S.Paulo do dia 6 daquele mês, na qual Patrícia se defendia da acusação de ter produzido um vídeo no qual seis ‘militares encapuzados’ ameaçavam novo golpe de Estado contra Chávez, seguindo o roteiro de várias quarteladas latino-americanas. Sua primeira versão foi de que o vídeo chegara às suas mãos por intermédio de ‘informantes militares’. Quando a farsa foi derrubada, Patrícia Poleo disse que se tratava ‘de uma peça de teatro que estava preparando’.


Sobre a condenação propriamente dita que os jornais brasileiros trouxeram dias 14 e 15 de abril passados, Patrícia Poleo foi condenada pela Justiça a seis meses de prisão pelo crime de difamação. Motivo: ela publicou em sua coluna, em novembro do ano passado, uma foto supostamente tirada em novembro de 1992, durante tentativa de golpe fracassado – desta vez liderado por Hugo Chávez –, na qual identifica o atual ministro do Interior e da Justiça, Jesse Chacón, como um homem que aparece, de cócoras, ao lado de dois cadáveres. Não era o ministro. Ele pediu correção e retratação, mas ela concordou apenas em reparar o erro. Chacón decidiu, então, processá-la porque a imagem, na sua opinião, afeta sua reputação.


Todos os movimentos de Chávez contra os meios de informação venezuelanos agridem a liberdade de imprensa, é verdade, mas há um oceano de diferença entre o jornalismo que se pratica na Venezuela e o que se exerce no Brasil – e é aí que mora o perigo. Ao não fazer essa distinção, os jornais brasileiros correm o risco de, novamente, passar informações falsas aos leitores, como aconteceu há três anos. Falta esclarecer que tipo de imprensa Chávez quer cercear.

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Jornalista, editor do blog Contrapauta