O mesmo político, no exercício do mandato eletivo, que declarou há menos de quatro anos:
‘A única atividade [de nossa família] em empresas é relativa à atividade [sic] política: jornal, rádio e televisão. Temos uma pequena televisão, uma das menores, talvez, da Rede Globo. E por motivos políticos. Se não fôssemos políticos não teríamos necessidade de ter meios de comunicação.’ (Carta Capital, nº 369, de 23/11/2005, pág. 40)
Afirmou agora:
‘A tecnologia levou os instrumentos de comunicação a tal nível que, hoje, a grande discussão que se trava é justamente esta: quem representa o povo? Diz a mídia: somos nós; e dizemos nós, representantes do povo: somos nós. É por essa contradição que existe hoje, um contra o outro, que, de certo modo, a mídia passou a ser uma inimiga das instituições representativas. Isso não se discute aqui; estou repetindo aquilo que, no mundo inteiro, hoje, se discute.’ (Discurso proferido pela passagem do Dia Internacional da Democracia, no Senado Federal, em 15/9/2009)
Além da contradição implícita de ser, ele próprio – como proprietário de jornal e concessionário do serviço público de radiodifusão – um ‘inimigo das instituições representativas’, o que deveria chamar a atenção do distinto público é a incrível diferença na reação da grande mídia e seus colunistas e analistas: em 2004, não se gastou uma linha sequer sobre a declaração do senador José Sarney; em 2009, ele está sendo incluído na relação daqueles ‘autoritários’ que querem restaurar a censura prévia na imprensa brasileira.
Mudou o nobre senador? Mudou a mídia? Ou mudaram os dois?
Distorções permanentes
No debate acadêmico sobre a prática profissional do jornalista, há décadas é discutida a contradição que envolve uma atividade que se pretende neutra e objetiva – profissional – e, ao mesmo tempo, atribui a si mesma a representação dos interesses públicos. Da mesma forma, o discurso dos grupos de mídia mistura profissionalismo jornalístico com defesa dos interesses da sociedade. Como conciliar essas ‘missões’ inconciliáveis?
Entre nós, os obstáculos para se fazer o debate democrático do papel da mídia que contemple o contraditório em igualdade de condições, são tão formidáveis que distorções permanentemente praticadas acabam se transformando – na agenda pública – em princípios e verdades incontestáveis.
Transformar a liberdade de expressão em liberdade de imprensa é uma dessas distorções (ver, neste Observatório, ‘Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa: O sentido das idéias‘). Confundir a instituição imprensa/mídia com o trabalho individual de jornalistas é outra. Igualar jornalistas editorialistas, colunistas ou articulistas – que escrevem matérias opinativas – com jornalistas repórteres, que escrevem notícias, em princípio, imparciais e equilibradas, é outra. E, escamotear a contradição entre profissionalismo e ‘missão’ de servir ao ‘interesse público’ é apenas mais uma.
‘Interesses que vão além do interesse coletivo’
Não há dúvida que as democracias representativas e, sobretudo, os processos eleitorais, enfrentam uma crise grave de legitimidade. Esse é um debate contemporâneo nas democracias eleitorais européias (ver este artigo de Éric Aeschimann, dado no Libération, 16/9)).
Não há dúvida também que os grupos de mídia, já há algum tempo, vêm gradativamente exercendo funções tradicionalmente atribuídas aos partidos políticos: construir a agenda pública, gerar e transmitir informações políticas, canalizar demandas da população, dentre várias outras.
Como disse um destoante convidado da Sociedad Interamericana de Prense (SIP) para o seu ‘Fórum de Emergência sobre Liberdade de Expressão’, realizado em Caracas, no último 18/9, outro político conservador, o ex-presidente boliviano Carlos Mesa (2003-2005):
‘Quando um meio, diante da falta de partidos políticos, tem de fazer o que os partidos não podem fazer, perde o equilíbrio e a objetividade. (…) A realidade é que os meios defendem interesses que vão além do interesse coletivo. Se não se reconhecer isso, estaremos enganando a nós mesmos (ver Folha de S.Paulo, 19/9/2009; ‘Perseguição à mídia pauta fórum em Caracas‘ e ‘Lógica não é a mesma de luta antiditaduras‘, para assinantes).
(Registre-se, que as posições de Carlos Mesa simplesmente não aparecem na cobertura oferecida por alguns dos jornalões brasileiros.)
Ninguém mudou
Na verdade, a mesmice interminável com que as questões relacionadas à mídia e a democracia liberal são tratadas publicamente no nosso país revela como os grupos dominantes no setor de comunicações – apesar de rusgas ocasionais e passageiras que dissimulam a identidade real de interesses – continuam a controlar, há décadas, sem resistências ou ameaças significativas, as políticas públicas do setor.
Não mudou Sarney, nem mudou a grande mídia: político e instituição continuam os mesmos, defendendo seus interesses com o discurso adequado às circunstâncias de momento.
Quem também não mudou foi o cidadão, sujeito único do direito à comunicação, que entra apenas de leitor/telespectador nessa falsa disputa que, apesar de feita em seu nome, o mantém, como sempre, excluído.
******
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)