Há várias maneiras de contar uma história. Difícil mesmo é depurar a verdade das versões fantasiosas que vão sendo disseminadas ao longo do tempo, de acordo com os interesses e a imaginação de cada um. Já se disse que a verdade é escrita pelos vencedores, que entre a verdade e a lenda geralmente prevalece a segunda, exatamente por já ter sido aplainada e adornada a gosto do freguês. Ainda mais quando existe uma predisposição de ordem cultural ou político-ideológica para comer enrolado, do que prestidigitadores como o professor Gilson Caroni Filho se aproveitam para produzir os brocados que sua claque tanto aprecia.
Nada que mereça ser levado muito a sério, partindo de um desses raros retro-ideólogos que ainda se dispõem a brandir um discurso que só encontra eco nas camadas mais retrógradas e radicais de nossa sociedade. E que, como se não bastasse, vem se notabilizando pela adulação incondicional ao governo e do que sobrou do conspurcado petismo, a quem ele reverencia com um fervor que até dá o que pensar.
Afinal, como Alberto Dines bem observou recentemente neste Observatório, se provavelmente nunca um governo contou com uma imprensa chapa-branca tão saliente e representativa como o atual, é lícito supor que o radicalismo exacerbado e a ferrenha pregação antimidiática de Caroni não sejam gratuitos. Seu grande objetivo, aliás, como já esboçado anteriormente, ficou ainda claro dessa vez, quando comenta que ‘a estrutura monopolista [da televisão] (…) clama por uma reforma política imediata e legislação [sic] que democratize o conteúdo dos meios de comunicação’, numa alusão ao término da concessão da Globo no próximo dia 5 de outubro [ver ‘Sobre organizações e seus crimes‘].
O feroz ataque à Globo tem sua razão de ser: o papel marcante da mídia na decisão do STF de indiciar os 40 acusados do escândalo do mensalão, com ampla receptividade junto à opinião pública. O mote foi a inoportuna divulgação de um inventário oficial, promovido com pompa e circunstância pelo governo, sobre as vítimas dos chamados anos de chumbo da ditadura. O que, muito mais do que uma satisfação à sociedade, soou como provocação desnecessária aos militares, além de remexer em feridas que a essa altura já deveriam estar cicatrizadas. Ainda mais com as indenizações que o governo lulista tem agilizado, incluindo os terroristas assassinos treinados nos moldes da guerrilha cubana.
Abordagem facciosa
Como se sabe, faz parte da recalcitrante retórica das esquerdas cavernais a estratégia de desacreditar e denegrir, de todas as formas possíveis, o desempenho da imprensa livre e independente, tradicionalmente refratária a idéias e regimes totalitários. Daí não serem novidade as elucubrações que se fazem sobre o papel da mídia durante a ditadura, algumas comprovadas e de conhecimento público, outras fruto da imaginação e tendenciosidade de narradores como o professor Caroni. O fogo centrado na Globo, por exemplo, além do revanchismo explícito, nada mais é do que retaliação à sua cobertura correta e equilibrada da apreciação do STF das denúncias aos 40 indiciados do esquema de propinas do mensalão.
O fato de chamar a organização de ‘braço jornalístico de oposição ao governo Lula’ não só confirma isso, como ancora a abordagem facciosa e leviana com que se tenta, concomitantemente, desqualificar e criar um clima desfavorável ao inimigo às vésperas do término de sua concessão de funcionamento. A rigor, só faltou o professor Caroni lembrar do ocorrido com a RCTV venezuelana, tirada do ar por não comungar do regime ditatorial de Chávez.
Tema recorrente das tertúlias esquerdistas, a possível cumplicidade da Globo com o regime militar quase sempre se baseou em suposições e ilações relacionadas à coincidência de o grupo ter crescido em meio a ditadura. Longe de mim garantir o contrário, ou seja, que a organização comandada por Roberto Marinho não tenha tirado proveito do tradicional escambo – prática tão corriqueira no meio político que seria ingenuidade imaginar que a Globo, como outros congêneres, não o fizesse. Por outro lado, é sabido que muita gente boa sujou as mãos e se for para levar a questão a ferro e fogo, não é justo que só a Globo fique com a fama. E muito menos que se ignore que a imprensa em geral, como a própria população, num primeiro momento reagiu com simpatia ao golpe militar, dada a baderna que tomava conta do país com um presidente, João Goulart, totalmente despreparado para o cargo.
Escarafunchar o passado
O fato é que só com o passar do tempo viu-se a cara feia do regime, o que a imprensa não tardou a descobrir e combater com as armas de que dispunha, em meio à censura e tudo mais. Como já disse, atrelar o crescimento e a expansão da Globo a um suposto comprometimento com a ditadura, mais do que nivelar a discussão por baixo, com o caráter difamatório do artigo de Caroni, é denegrir e subestimar a capacidade empreendedora de um jornalista que construiu uma das cinco maiores redes de comunicação do mundo e cujo padrão de qualidade não pode ser avaliado apenas sob o critério político-ideológico.
Ainda que no passado a Globo eventualmente tenha feito concessões aos militares e mesmo se beneficiado de ligações espúrias com políticos inescrupulosos como Antonio Carlos Magalhães e José Sarney, como afirmam categoricamente seus detratores, quem pode se arvorar a atirar a primeira pedra? Os despeitados e críticos oportunistas? Os mensaleiros e seus comensais? A escassa intelectualidade que se bandeou de mala e cuia para as hostes governistas? O zé-povinho, acostumado a ser tangido e manipulado por gurus de algibeira como Duda Mendonça e outros fiadores de um governo que, a exemplo dos demais, não se furtou a botar a mão no estrume para governar, como jocosamente definiu o ator Paulo Betti?
Não tenho procuração para defender a Globo e nem ela precisa disso, com a penca de profissionais de alto nível de que dispõe. Mas como observador descomprometido (e talvez por isso desempregado), me sinto compelido a reagir contra a campanha discricionária e discriminatória com que os governistas tentam neutralizar a atuação da imprensa. Independentemente de ter ou não culpa no cartório em tempos idos, em contrapartida ninguém com um mínimo de isenção pode ignorar a contribuição decisiva que os veículos dos Marinho vêm prestando à consolidação da democracia em nosso país. E o melhor exemplo disso é a própria chegada de um ex-pau-de-arara e metalúrgico precocemente aposentado à Presidência da República.
Nesse contexto, ao que se presta escarafunchar o passado e desvendar o que ainda existe nos porões, como sugere Caroni com seu discurso, senão a tumultuar ainda mais um ambiente contaminado pelo acirramento das diferenças políticas, em que já se ouve o ranger de dentes dos governistas diante do grito de independência dado pelo STF?
******
Jornalista, Santos, SP