Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Quem votou pela saída do Reino Unido da UE?

Um jornalista inglês, Eric Arthur Blair, escreveu:

“É inútil dizer que a classe média é ‘esnobe’ e deixar por isso mesmo. Você não passará daí se não perceber que o esnobismo está entrelaçado com uma espécie de idealismo. Isso provém do início do treinamento da criança de classe média, quando você aprende, quase simultaneamente, a lavar o pescoço, a estar pronto a morrer pela pátria e a desprezar as ‘classes inferiores’.

Tente sugerir a um homem bem nascido, do tipo que não pensa muito e que luta para manter as aparências com quatrocentas ou quinhentas libras por ano, que ele pertence a uma classe de parasitas exploradores – ele vai achar que você está louco. Com perfeita sinceridade, vai apontar uma dúzia de aspectos em que ele está pior de vida do que um operário. Aos seus olhos, os operários não são uma raça submersa de escravos; são uma maré sinistra, isso sim, que vai subindo sorrateiramente até engolir todos – a ele mesmo, seus amigos e sua família – e varrer do mapa toda cultura e toda decência. Daí vem essa estranha ansiedade, esse temor que a classe operária se torne muito próspera.

A ideia de que a classe operária vem sendo absurdamente mimada e desmoralizada pelos auxílios do governo, a aposentadoria para os velhos, educação gratuita etc. continua generalizada; foi apenas um pouquinho abalada, talvez, quando se reconheceu, recentemente, que o desemprego de fato existe. ”

O arrependimento tardio

Este trecho está em seu livro O Caminho de Wigan Pier. Parece bem atual, mas foi escrito em 1937 com o pseudônimo de George Orwell.

De lá para cá, o país responsável pelo Brexit mudou muito. Guerra Mundial, migrações, neoliberalismo, globalização, União Europeia. Mudou o perfil da classe operária inglesa, assim como parte da constituição de suas classes socioeconômicas. Um fenômeno mundial, obviamente.

Em uma análise superficial, poderíamos dizer que a “classe esnobe inglesa” retratada e criticada por Orwell em 1937 (média e alta por sua definição) é a mesma responsável pelos votos alinhados ao slogan “Nós queremos o nosso país de volta” — de Nigel Farage e do seu United Kingdom Independence Party (UKIP) para a campanha do referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia. Nada mais que senso-comum (aquela substância que tantas vezes nos leva ao engano), mas muitos acreditaram nisso e parcela significativa nem sequer foi à votação, talvez certos que o perfil de quem optaria pela saída da união europeia seria a minoria abastada descrita por George Orwell.

O jornal The Guardian fez um ótimo cruzamento entre dados e pesquisas sobre o perfil dos votantes do referendo (http://www.theguardian.com/politics/ng-interactive/2016/jun/23/eu-referendum-live-results-and-analysis). A partir dos números oferecidos pelo jornal inglês, é possível perceber que os mais jovens, os que possuem maior tempo de estudo, os pertencentes a classes sociais mais altas e aqueles nascidos no próprio Reino Unido optaram, majoritariamente, por permanecer na UE. Já o inverso – mais velhos, mais pobres, menores salários e não nascidos no Reino Unido – optaram, em sua maioria, pela saída. Outra evidência, decorrente dos dois perfis mencionados, é o fato das regiões mais pobres terem optado pela saída da UE. Portanto, não foi – ao que parece – a classe média preconceituosa a responsável pelo Brexit.

Com base em dados de algumas pesquisas de opinião anteriores ao referendo pela saída do Reino Unido da União Europeia, muitos afirmaram que essa possibilidade (a saída) não era real. Hoje real, o arrependimento de grande parte da população inglesa e os inúmeros artigos publicados nos jornais tentando entender o que aconteceu para que esse resultado ocorresse, merecem mais um apontamento: as tais pesquisas de opinião.

Legitimar o que se busca ser legitimado

Normalmente partimos do conceito geral de que todos têm opinião. Portanto, em teoria, se sairmos perguntando pelas ruas sobre qualquer assunto, logo teremos uma “opinião pública” a respeito. Claro que existem metodologias estatísticas a serem aplicadas, mas estas continuam a incluir o entendimento de que todos têm opinião. Ponto.

Uma coisa é responder uma pergunta. Outra, é se posicionar. A primeira é um ato de abstração. A segunda, um ato político.

Sobre algo que é diariamente exposto e retratado na mídia em geral, é de se esperar que as pessoas tenham opinião a respeito. Mas a pergunta poderá ter como resposta – em parcela significativa dos entrevistados – uma opinião qualquer, os quais levam em consideração não só seu conhecimento sobre o assunto (muitas vezes, nenhum ou muito pouco), mas também sua carga emocional histórica, preceitos morais carregados desde sua infância.

Mas se o indivíduo está imediatamente inserido no problema, sofrerá pressões e se posicionará politicamente. Seus interesses passam a ficar em constante conflito com interesses de outros. Nesse jogo, formará uma opinião que poderá ser, provavelmente, diferente (por complexidade ou posicionamento) de quem apenas abstraiu, repentinamente, sobre o tema. Aqui está um dos pulos do gato sobre as diferenças entre os resultados das pesquisas de intenção e o resultado após a apuração final dos votos.

Em um contexto tão amplo como a administração de um país, com todas as suas complexidades e nuances, avaliar que existe uma opinião pública a respeito, e querer dar isso como certo é também querer crer no inacreditável.

Por isso, caro leitor, é importante considerar que “tendencialmente” as pesquisas de opinião servem para legitimar o que se busca ser legitimado. É sempre bom desconfiar das certezas dadas a partir não só das inúmeras pesquisas de opinião publicadas nos jornais e publicizadas por diversas mídias por aí, mas também do nosso próprio senso-comum. Tarefa ingrata, mas necessária.

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Alexandre Marini é sociólogo e professor