Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Questionamentos ignorados pela mídia brasileira

Após 10 anos de espera mundial, os EUA anunciaram o desfecho da caça ao terrorista mais célebre do século, Osama bin Laden. Depois da comoção e festejo nacionais dos americanos, que imediatamente após a confirmação da morte do ex-líder da Al-Qaida ocuparam a frente da Casa Branca, não faltaram desencontros nas versões que descreviam como a missão havia sido cumprida.

Os próprios algozes do saudita chegaram a contar a mesma história com distintos desdobramentos. E mais uma vez podemos testemunhar outro deprimente espetáculo de subserviência da mídia brasileira, que volta a reverberar tudo que sai de Washington com pouco ou nenhum questionamento, transformando opiniões de agentes de governo e da CIA em manchetes definitivas – a Folha de S.Paulo (6/5) é exemplar disso.

Após o mundo se dar conta da produção de mentiras em escala industrial do governo Bush para invadir e saquear o Iraque, o que já significou cerca de 1 milhão de mortes, aqueles que praticam o jornalismo com a exigida ética da profissão não têm sequer o direito de reproduzir acriticamente o que diz o Departamento de Estado e o aparato militar estadunidenses. Mas, infelizmente, é esse o tipo de análise que continua a predominar nos principais e mais lidos jornais do país. Numa guerra ao terror empreendida por um governo belicista como poucos na história, repleta de obscuridades e ilegalidades que se revelaram ao longo do tempo (como as prisões clandestinas em Guantánamo e Abu Ghraib, locais em que o Direito Internacional passou ao largo), enormes interrogações do público permanecem longe de qualquer elucidação.

Parceiros e inimigos

Aliás, nossos monopólios midiáticos chegaram ao cúmulo de publicar que as informações do paradeiro de Bin Laden teriam sido obtidas em Guantánamo, uma (pouco) sutil justificação das brutalidades estadunidenses nessas intoleráveis masmorras. Mas o ponto fácil de atacar é outro e não faltam acusações de acobertamento do serviço de inteligência e setores do governo paquistanês a Bin Laden, algo evidente demais diante do fato de que o ex-líder da Al-Qaida estava instalado em uma toda peculiar fortaleza, a escassos 50 quilômetros da capital Islamabad e a menos de cinco de uma base militar.

Como os próprios americanos já acusam seus “parceiros” abertamente dessa traição, o país sul-asiático já é o alvo preferido, o que serve para justificar mais “combate ao terror” à moda e métodos americanos, além de operações que violam a soberania territorial dos países. Tal exemplo se verifica na Líbia, onde os ataques da Otan estão claramente indo além da orientação da resolução 1973 da ONU, que estabelece apenas uma zona de exclusão aérea, e não a licença para matar a esmo, atingindo, inclusive, objetivos não militares.

Basta olhar para a própria operação, que segundo os americanos não podia ser informada aos paquistaneses, pois estes tratariam de alertar Bin Laden, para já se ter ciência da rede de mentiras construída pelos ianques, que escolhem a dedo quem são os parceiros e inimigos na “guerra ao terror”, permitindo que regimes ultra-corruptos, como o paquistanês, mantenham tranquilamente seu arsenal nuclear e tentem vaga no Conselho de Segurança da ONU, enquanto outros, como o Irã, onde os grupos extremistas não são relevantes, não podem nem pensar nisso.

Desilusão com o mandatário

Há muitas outras perguntas que insistem em não calar a respeito do fim de Osama bin Laden. A mídia deliberadamente produtora de mentiras, capitaneada por Veja e Globo, não pensa assim, claro. Para eles, o que sai da boca da Casa Branca é palavra definitiva e não se questiona absolutamente nada, tanto em relação à legalidade da operação como às nada paranoicas teorias de que a existência do mentor do 11 de setembro chegava a ser conveniente. Fica difícil defender o Direito Internacional numa operação de caça a quem comandou um bárbaro atentado que vitimou 3 mil inocentes, basicamente trabalhadores comuns. No entanto, o mesmo tem ocorrido na Líbia, além de o serviço secreto israelense burlar a soberania de diversos países para praticar seu terrorismo de Estado, como se viu ano passado em Dubai, com o assassinato de um líder do Hamas perpetrado por agentes israelenses com passaportes falsos de outras nações.

E aí se encontra o primeiro nó. Estados Unidos e Israel são exatamente os dois únicos países de relevância internacional a não reconhecerem a legitimidade do Tribunal Penal Internacional, cuja incumbência principal é investigar, julgar e punir crimes de guerra, constante e inegavelmente praticados em profusão por ambos nas últimas décadas. Assim, continuam, e pelo jeito continuarão, violando livremente a soberania alheia, o que pode provocar injustiças gritantes – que o digam os massacrados palestinos, sob ocupação de cunho nazista. Além disso, beira o ridículo não emparedar os ianques a respeito da negação de imagens cabais, sob a risível desculpa de sepultamento marítimo em respeito à liturgia islâmica da morte. Fora o fato mencionado pela jornalista Elaine Tavares: a perigosíssima legalização do crime de vingança, de faroeste.

É evidente que Obama, farsesco Prêmio Nobel da paz em uma semana de mandato, busca capitalizar a façanha entre o público interno, visando às imprevisíveis eleições do ano que vem, quando os fundamentalistas de mercado do Partido Republicano e seus asseclas reacionários do Tea Party podem retomar o poder e voltar a espalhar o medo por todos os quadrantes com seus discursos raivosos. Mergulhada numa pobreza social que não se via desde a Grande Depressão, a maioria da população norte-americana já se encontra em estado de franca desilusão com o primeiro mandatário negro de Washington. Com o sucesso na captura e assassinato de Osama, a população carente de empregos e saúde, além de endividada, pode dar novo voto de confiança ao presidente, que após concluir a missão iniciada por Bush poderia canalizar recursos que têm servido às guerras para as necessidades internas.

Peso geoestratégico

E a partir disso fica impossível não fazer outra indagação, que se refere diretamente à prometida retirada das tropas do Afeganistão. A única justificativa contrária à retirada era encontrar o dono da montanha Tora Bora, localizada em Jalalabad, que, no entanto, foi finalmente abatido no “parceiro” Paquistão – ao que tudo indica, lar de Bin Laden há alguns anos. Dessa forma, iniciar-se-á a tão propalada volta para casa das tropas estadunidenses? Ou, como bem lembra o jornalista ocidental mais especializado em Oriente Médio e Ásia, Robert Fisk, “a morte de Bin Laden no Paquistão é irrelevante diante da primavera árabe de revoltas e lutas por democracia”? Afinal, é muito claro que os levantes desses países não ocorrem sob a égide do terrorismo ou fundamentalismo.

Será que os americanos não podem pensar exatamente o mesmo e começarem a preparar o terreno para novos empreendimentos militares? Já está claro que o complexo industrial-militar do maior império já constituído pela humanidade tem a guerra em sua agenda econômica e dela até dependem as contas nacionais. Estima-se que os gastos militares dos EUA já estejam na casa do trilhão de dólares anuais, o que evidencia a necessidade de muitos negócios e empreitadas militares para dar vazão a tamanha produção e estoque armamentistas.

No mais, sabe-se que o Afeganistão é um território instável, tribal, conflagrado, cujo governo tem níveis de confiabilidade similares ao paquistanês. Devastado e sem infraestrutura, não é exatamente o que se pode chamar de poço de riquezas a serem extraídas. Apesar da recente descoberta de reservas minerais prodigiosas, como de lítio e nióbio, sua exploração lucrativa demandaria no mínimo mais 10 anos de ocupação para que se desenvolva a inexistente capacidade de exploração de tais recursos.

Enquanto isso, uma onda de revoltas populares com potencial e encaminhamento imprevisíveis explode por todo o Oriente Médio, arrastando-se por um cordão que envolve mais de 20 países, uma região que tem um peso geoestratégico incomparavelmente superior ao afegão. Além de ser fonte da maior parte do petróleo consumido pelas grandes potências que, em troca, sustentam e financiam dezenas de ditaduras na região. Como se não bastasse, teme-se profundamente uma configuração política que isole Israel.

Perguntas que não calarão

Dessa forma, diante dos custos cada vez mais exorbitantes dos empreendimentos militares, não terão os americanos calculado que Bin Laden já não era mais uma muleta necessária? Que talvez agora seja mais conveniente começar a abandonar o Afeganistão sob desculpas de que “não foi possível implantar a democracia, pois são muito selvagens”, tal como rotulam o mundo islâmico desde sempre? E a partir disso, quem sabe, não será o caso de concentrar esforços nos países médio-orientais e norte-africanos em chamas? Não será também conveniente voltar a levantar a lebre do terrorismo e associá-lo às revoltas de alguns desses países?

São todas perguntas óbvias diante da dimensão global que a última década concedeu à doutrina Bush-Dick Cheney de “guerra ao terror” e também do ritmo incessante com que os Estados Unidos criam pré-condições de marginalização de governos inimigos, de modo a iniciar a justificação de sanções internacionais, nova ocupação e conflito armado. E são todas perguntas que o jornalismo brasileiro parece ter preguiça de fazer.

Mas isso já acontece na Líbia, onde as tropas da Otan estão em nova operação de suposta libertação de povo oprimido, quando na verdade sabemos, como destacou o jornalista Milton Temer, que “onde países como França, Inglaterra e EUA põem os pés, não se pode estar tramando uma revolução popular e realmente democrática”. Outros governos instáveis, de povos divididos, também estão cada vez mais na berlinda, por sinal, cometendo atrocidades muito maiores que os últimos integrantes da lista negra ianque, como, por exemplo, a intocável Arábia Saudita, o Bahrein, a Jordânia ou o Iêmen, todos beneficiários de bilionárias ajudas militares dos países centrais, tal como eram (são), aliás, Egito e Tunísia.

Não teria chegado a hora de se livrar de uma vez por todas de Bin Laden e escrever novos roteiros para a famigerada “guerra ao terror”? Por outro lado, nunca irá se questionar quem é mais terrorista e assassino?