É muito positivo o saldo do debate ‘ditabranda’ vs. ‘ditadura’ encerrado no domingo (8/3) [ver remissões abaixo]. Houve feridos, é certo, porém nenhum em estado grave. As conseqüências não se limitam à Folha de S.Paulo, protagonista do episódio, nem aos demais veículos de comunicação estranhamente impassíveis diante da refrega entre um jornal e parte ponderável do seu leitorado.
Todo debate é positivo, cada confronto de idéias produz avanços sobretudo se considerarmos que a agenda nacional nos últimos anos tem sido usurpada por questões magnificadas artificialmente ou simplesmente bizantinas.
Desta vez estão na berlinda, de um lado, a arrogância e o simplismo da imprensa e, do outro, o autoritarismo e a complacência que imperam em certas esferas acadêmicas.
Quantificação desumana
A questão central é o relativismo, o mal do século. A era da informação está se confundindo com a era do preconceito e nenhum desses setores de vanguarda está conseguindo montar uma escala de valores insofismável, inquestionável, capaz de oferecer respostas à perplexidade global.
O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. A um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável.
O golpe militar que no próximo dia 31 de março completa 45 anos rompeu uma estabilidade democrática que durava 19 anos (desde 1945): sobrevivera ao suicídio de um presidente (Getúlio Vargas), o impeachment de outro (seu vice, Café Filho), um contragolpe (o do marechal Lott) e à renúncia de um terceiro (Jânio Quadros).
Estes são dados concretos, absolutos. O Brasil entrou naquele momento para o bloco das quarteladas e dos regimes de exceção do qual só libertou-se 21 anos depois. As justificativas são irrelevantes, são elas que nos embrenham no pântano relativista. Assim também as estatísticas. A ‘guerra suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante, responsável em última análise pelo embate agora encerrado.
Sem disfarces
Outro dado concreto, absoluto: os jovens cubanos que em 1958 derrubaram o tirano Fulgêncio Batista não conseguiram ou não quiseram estabelecer uma democracia. As razões e justificativas para esse fracasso ou recusa também são irrelevantes. Sessenta anos depois, a despeito das magníficas intenções dos rebeldes, Cuba está longe de ser uma democracia e as recentes trocas de guarda colocam a ilha na contramão de um processo majoritário no continente.
Se a imprensa e a academia estão efetivamente interessadas em manter e aperfeiçoar o regime político previsto na Constituição é indispensável libertar-se dos disfarces, das atenuações e apegar-se aos valores absolutos. Este é o único radicalismo aceitável.
O pacifismo é incondicional ou é hipócrita.
A democracia é integral ou é uma farsa.
O Estado de Direito só existe em Estados rigorosamente laicos.
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