Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Racismo como terrorismo

Os hispânicos brancos formam a elite da maioria dos países hispânicos. Há sangue branco que merece ser salvo no Uruguai, na Argentina, no Chile e até no Brasil. (Trecho de manifesto atribuído ao autor do massacre na igreja em Charleston.)

Em abril de 2009, Janet Napolitano, a então secretária de Segurança Interna do recém-empossado Barack Obama, foi escorraçada pelo Partido Republicano por um relatório sobre terrorismo. Mas não foi para isto, prever, monitorar e combater o terrorismo que criaram o novo ministério logo após o 11 de setembro? O relatório que insultou a sensibilidade republicana tinha o seguinte título: “Extremismo de Direita: Clima econômico e político alimenta ressurgência em radicalização e recrutamento”. A gritaria foi de tal ordem, que até a Casa Branca se distanciou do relatório que levava em conta, entre vários fatores de radicalização, a eleição do primeiro presidente negro nos Estados Unidos.

Uma amiga carioca tomou um táxi dirigido por uma motorista negra em Washington e puxou conversa, curiosa em ouvir sua opinião sobre a era Obama. “Não vejo a hora de acabar”, disse ela, “para este homem ter sossego e dignidade.” O diálogo se passou antes do massacre na mais antiga igreja afro-americana do Sul. O comentário faz mais sentido se a gente reprisa o vídeo das declarações de Obama sobre Charleston na quinta-feira (18/6). O presidente, que é acusado de emocionalmente distante, falou mais devagar, fez pausas, como quem não quer trair a própria raiva. Nas horas da madrugada seguinte ao massacre, quando seu autor ainda não era conhecido, o prefeito e o comandante de polícia de Charleston começaram a usar a expressão “crime de ódio” para se referir ao que acontecera. Terrorismo, murmurei, insone, para a tela da TV. Logo o governo federal abriu duas investigações sobre a chacina como crime de ódio. Outra palavra – doente – começou a circular entre políticos e a mídia. Não sabemos se a saúde mental do homem de 21 anos que confessou a execução de nove negros a sangue frio foi examinada no passado.

Muito antes de ouvir especialistas médicos, é preciso admitir que o planejamento e os motivos do agressor, cuidadosamente explicados num manifesto online, em linguagem sofisticada para quem não concluiu o segundo grau, não existem num vácuo e sim na história de um determinado país. Os símbolos que o assassino costurou em sua jaqueta – a bandeira da África do Sul sob o apartheid e a bandeira da antiga Rodésia racista – estão em oferta para compra porque há procura.

Guerra racial

Não devemos esquecer que o racismo é a mais antiga forma de terrorismo nos Estados Unidos. E também a de maior longevidade. Neste ano de 2015, na sede do governo da Carolina do Sul, em Columbia, tremula a bandeira dos confederados, os Estados escravagistas derrotados na Guerra Civil. A bandeira foi poupada por lei de ficar a meio mastro como foram baixadas as duas outras, a nacional e a estadual, em memória das vítimas de Charleston. No Estado do Tennessee, há uma escola de segundo grau, um parque e um escritório de alistamento militar num câmpus universitário batizados com o nome do mesmo general, Nathan Bedford Forrest. Que vem a ser o fundador da Ku Klux Klan.

Meu colega Roberto Godoy lembrou que foi visitar um afável ex-membro de forças especiais militares americanas, veterano de combate ao terrorismo islâmico, que agora trabalha para uma empresa privada em São Paulo. O que ele trouxe na bagagem para decorar seu cantinho paulistano? Uma bandeira confederada. Ora, trata-se de um aficionado da história, é a explicação que ouço aqui, na boca exclusivamente de brancos.

No caso da Carolina do Sul, a bandeira confederada voltou à cena exatamente como reação à luta por direitos civis dos negros na década de 60. Não é preciso ter completado o segundo grau para compreender a mensagem. Mas vários, entre os numerosos candidatos republicanos para a presidência em 2016, continuaram a afirmar que a questão da bandeira é um assunto para o Estado resolver.

Pouca gente conhece uma fonte de inspiração do atentado que a história oficial registra como o pior praticado por um terrorista americano. Em 1995, quando detonou a bomba no prédio do governo federal em Oklahoma City e matou 168 pessoas, Timothy McVeigh havia se inspirado na trama de um romance apocalíptico que colocava o homem branco em oposição ao governo federal controlado por minoria. Quem lembra é o ensaísta Jelani Cobb, na revista New Yorker. Ele lembra também que é possível discordar da história oficial. No mesmo Estado de Oklahoma, em 1921, cerca de 300 negros foram massacrados por brancos armados, numa rebelião provocada pela suspeita de que um adolescente negro havia molestado uma mulher branca.

O homem cujo nome não repito, para não lhe conferir celebridade, queria provocar uma guerra racial. Se isto não é terrorismo, podemos aposentar a definição.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York