Não tenho procuração do professor Renato Janine Ribeiro para defendê-lo e imagino até que ele nem queira esticar mais o assunto. Entretanto, não posso deixar passar a oportunidade de me valer da polêmica em torno de seu artigo ‘Razão e sensibilidade’ (publicado na Folha de S. Paulo, 18/02) para discutir um pouco acerca da hipocrisia que, assim como a violência, vem ocupando cada vez mais espaço nos noticiários.
Sendo toda leitura uma co-autoria, quem dá a cara a tapa, tornando público o que pensa nos jornais, deve se acostumar a interpretações diversas da pretendida. Ainda assim, não pude deixar de me surpreender com a leitura completamente enviesada que o inteligente e erudito jornalista Elio Gaspari fez do artigo do prof. Janine (‘O professor acha que pena de morte é pouco’, Folha de S. Paulo e O Popular, 18/02). Admitindo que não haja nada por trás de sua interpretação e que se trate apenas de leitura apressada mesmo, Gaspari perdeu a oportunidade de saborear uma peça de rara beleza filosófica.
Precocidade no crime
‘Razão e sensibilidade’ não é uma defesa da pena de morte. Ou de torturas, ou de endurecimento das estratégias públicas para a segurança, ou de seja lá o que for. É, sim, a confissão angustiada de um intelectual chamado a opinar num caso inacreditavelmente monstruoso. Intelectuais, como lembra Janine, devem tomar posições. Espera-se deles que sejam sempre muito racionais. Mas como ser racional quando arrastam uma criança por quilômetros (e fazem manobras para soltá-la do carro, demonstrando que sabiam o que acontecia)? Nem é preciso ter filho da mesma idade (embora quem tenha, faça a transferência inevitável) para querer aplicar a lei de talião. Arrastaram o menino? Arrastem cada um dos desgraçados por vários quilômetros até que morram.
Tal é o que passa pela cabeça de todos nós, sem exceção e hipocrisia. Entretanto, entre confessar essa vontade e defendê-la há uma enorme distância. Como diz Janine: ‘Quer isso dizer que defenderei a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal? Não sei. Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas, embora isso fosse desejável.’ Até porque é preciso ser muito ingênuo pra acreditar que uma das mais famosas medidas de ‘endurecimento’, a diminuição da maioridade penal, resolverá o problema. Se hoje colocamos apenas maiores de 18 em escolas de tempo integral de bandidagem, amanhã colocamos os maiores de 16, depois 14, depois 10 e só conseguiremos é precocidade no aprendizado de malfeitorias profissionais.
Razão e emoção
O problema é tão maior do que isso, tão mais profundo, que dá desânimo pensar nele. Não me refiro ao argumento fácil das desigualdades sociais do país. Não que não seja válido, mas é fácil demais invocá-lo. Tão fácil que virou lugar-comum de político malandro (quase uma redundância, o ‘quase’ por conta de algumas honrosas exceções). Por outro lado, de tão difícil resolução que sua aparente inatingibilidade serve de eterna desculpa. Desculpa essa que encobre outra hipocrisia, já que os maiores bandidos do país, os mais nocivos, são ricos e acreditam piamente na Lei de Karamazov (adaptada aos seus interesses): se não existe punição, tudo é permitido.
Voltando a Janine. O equilíbrio entre razão e emoção, no momento, é impossível. Ele poderia ter se calado, esperar a poeira baixar, ruminar racionalmente à exaustão o problema, que seria, então, reduzido a uma fria questão filosófica. Fez bem em ter aberto o bico.
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Médico, doutor (UFMG) e postdoc fellow (Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFG) e doutorando (UFSCar) em Filosofia