Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

RCTV e o canto da sereia do capital

A mídia, comentando a mídia, noticia os protestos mundiais da mídia pela interrupção da concessão da RCTV pelo governo venezuelano… E observamos com que lágrimas os funcionários e espectadores daquela TV despedem-se da emissora, agora substituída por uma rede estatal.


A medida do presidente eleito, que foi objeto de um golpe militar para depô-lo com uma fortíssima contribuição daquela mídia, é criticada no mundo inteiro como estatista e populista. Não se valoriza, pois, o lado do Estado-nação, esmagado pelo 4º poder no mundo inteiro, sem que se o aponte inconstitucional e além até do peso da representação política.


De minha parte, temo que se confunda facilmente anarquia com democracia e o fortalecimento do Estado como fascismo.


Por quê? Porque anos a fio condicionados à mídia (hoje, uma telemática?), adquirimos a avaliação perversa das coisas e não se pensa que a substituição de uma TV pela outra possa ser um progresso. Também não se pensa na temporalidade da medida no que possa parecer ditatorial.


Cuba, o modelo


É que a globalização econômica, em concubinato com a técnica, tem a força do canto da sereia. Lembro-lhes, pois, do nostos de Ulisses na passagem pelo rochedo daqueles monstros, onde se acumulavam os despojos de viajantes afogados por eles ao seduzi-los com seu canto irresistível. Durante a passagem pelo local os navegadores ouviam-nas cantar e, perdendo a cabeça completamente, lançavam-se ao mar em sua busca indo encontrar a morte. De modo que o industrioso Ulisses, o mesmo que construiu o cavalo de Tróia e venceu a guerra para os gregos, mandou seus guerreiros colocarem cera nos ouvidos para não enlouquecerem no período em que a hipnose daquelas vozes se fazia. E ele, amarrado ao mastro da nave, debate-se, desesperado e indefeso, enquanto ouvia aquele canto. Como é perigoso o canto da sereia!


No momento em que os líderes de esquerda abandonam o secundário para priorizar o mais importante em países cujo sonho socialista tenta se impor, lá de fora soa, pela mídia, o canto da sereia do capital. E os heróis de Tróia, aqueles que entre nós elegeram o potencial generoso de um ideal de inclusão e justiça social, subestimam suas conquistas e se deixam levar por um apelo mentiroso.


O valor de Cuba como modelo dessa experiência faz lembrar as reformas agrária e urbana implementadas na ilha e, após elas, as conquistas no terreno da saúde e da educação.


A farsa neoliberal


Mas soa o canto da sereia, inclusive alegando o valor estético das imagens do capital, e aparecem os rebeldes para se opor ao regime porque querem aderir ao modern way of life da pátria do hedonismo, do consumo e… da exclusão social! De modo que hoje, para os EUA, a mais-valia e o proletariado são externos ao seu território, onde a política de fachada choca-se, mais e mais, com os interesses do capital global.


Eis, pois, homens e mulheres que se afogam num mar de lágrimas, por que a mídia do capital torna-se a perda do sonho americano que coexiste com a miséria e a guerra, das quais seus ‘ditadores populistas’ estão tentando salvá-los!


Nota-se que quanto menos desenvolvido e politizado é o país, mais intensa é a luta política. Mas a Latino-América já está preparada para a verdadeira democracia que prescreve a ampliação do Estado quando a anarquia de mercado deseja veladamente queimar a sua etapa histórica, usando-o pela farsa neoliberal apenas como títere de seus interesses.


Parcialidade com o capital


A reação de alguns venezuelanos denota imaturidade política em sua histeria coletiva. Nem pensam em assumir junto à nova emissora sua vocação bolivariana, seu patriotismo cidadão e sua solidariedade na aspiração pelo socialismo global, a ser construído a partir de cada nação democrática.


O Brasil, em outra etapa de desenvolvimento, ‘globaliza’ acima e abaixo, isto é, negocia com o capital transnacional e com seus irmãos do continente. A consciência social encontra entre nós o ponto ótimo para a democracia. Mas também aqui, há o mesmo problema. Apenas busca-se a alternativa da TV pública em luta política menos intensa.


Recordo-me que fui, pelo Conselho Nacional do Jornalismo, obstado como orgão de censura e opressão da liberdade de imprensa.


Mas a mídia (hoje, uma telemática?) caracteriza-se pela sua parcialidade com o capital, aderindo a ele nos momentos mais decisivos da história. Ela, enquanto privada, é mais poderosa porque desponta como propriedade dos meios de produção dos mais ricos.


Desconstrução dialética


A mídia parece não exercer seu valor positivo no que o grande brasileiro que é Alberto Dines diz ser formar e informar. Informa desinformando e forma de menos. Denuncia de forma sensacionalista, quando o jornalismo investigativo poderia levar o ‘furo’ à autoridade do Estado, antes de torná-lo às vezes uma ‘realidade’ injusta e passageira…


Mais! A mídia, em ruptura com o modelo capitalista da anarquia de mercado e de costumes, não deveria exibir uma parcialidade com necessidade social?


O esforço do nosso governo e de outros da América Latina não visa a afogar o povo em lágrimas ridículas, mas apontar-lhes um caminho que o proteja do canto da sereia do capital, cuja lógica e ética não são compatíveis com um sonho melhor que o sonho americano pelo valor positivo do socialismo global.


O que Chávez, Morales, Rafael Correa e todos nós intuímos é que a mídia deve ser uma poderosa aliada do Estado-nação em sua resistência contra a desmoralizante anarquia de mercado. Que pode fazer melhor e muitíssimo melhor!


Que cessem aos nossos ouvidos os apelos fantasiosos e que os recursos de sua técnica sejam usados não só para o lazer, o deslumbramento e a catarse, mas para o ensino, a informação equilibrada e o fortalecimento da democracia e da justiça social.


Não chorem, irmãos venezuelanos! Assumam a responsabilidade de refundar uma nova TV de acordo com o sonho bolivariano e socialista – uma vocação não somente para a liberdade, mas para a responsabilidade humana. A desconstrução dialética determinada por Chávez propõe tal desafio em sua nova TV: ela deve ser melhor que a anterior.


Não seria assim?

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Médico