Deixando de lado os fatores contingentes do momento e vendo as coisas em sua essência, para além da aparência, tanto em relação ao episódio das relações extra-maritais do presidente do Congresso, senador Renan Calheiros, mediadas, escandalosamente, por lobista de empreiteira que fatura obras públicas no ambiente de corrupção generalizada, como ao ataque do presidente Hugo Chávez ao Legislativo nacional – que criticou a decisão do governo venezuelano de não renovar a concessão da RCTV –, a mídia se comporta, até o momento, sem isenção suficiente para ver a questão do seu ponto de vista dialético, no plano histórico-social.
Estão sendo reivindicados, como defendem os exegetas, nos editoriais e comentários, no caso Renan, documentos que provem o que não precisa mais ser provado, ou seja, a relação exposta, espúria, de um político com um intermediador de negócios, entre empresa privada e Estado, em condições imorais e anti-éticas. Isso a Veja fez com competência e ponto final, independente da qualidade da revista, decadente relativamente ao seu passado. E quanto ao caso Chávez, opta-se por atacar o anti-democratismo chavista por ele ter punido quem tentou assassinar a democracia em seu país, isto é, a própria mídia, a RCTV, concessionária do Estado democrático, algo em que a Veja, como os demais grandes da imprensa, fazem com gosto de sangue nos dentes.
Voluntarismos perigosos
Pior, não se considera, ainda, que tal postura prepotente chavista foi e está sendo estimulada pela própria oposição venezuelana, que se negou a participar das eleições parlamentares em 2005. Praticou o haraquiri democrático, favorecendo o monopartidarismo atual no país, que estimula o espírito arrogante e autosuficiente chavista. São os oposicionistas da Venezuela, estimulados pela mídia golpista, ancorada na RCTV, ex-concessionária estatal e antidemocrática, que promovem, como reação, o avanço, sem freio, de Chávez aos pressupostos democráticos estabelecidos pela burguesia social-democrática ocidental ao longo dos últimos quarenta anos no mundo.
E como se dá esse avanço impulsivo que a mídia tem medo de analisar com profundidade? Simplesmente, aprofundando, contraditoriamente, modos democráticos, por meio de plebiscitos e referendos, isto é, democracia direta, como arma para vencer as resistências conservadoras centenárias que impedem a plena justiça social na América Latina. Tem voluntarismos perigosos nessa jogada. Não se trata de falta, mas talvez de excesso de procedimentos democráticos misturados com destemperadas atitudes de um ex-militar de personalidade cesarista-autoritária-latino-americana.
O estouro-estupro financeiro
Para se ter uma visão mais larga e serena da crítica intempestiva chavista ao Congresso brasileiro, vamos imaginar que a discussão sobre o momento atual esteja se dando em 2050, por exemplo, em análise retrospectiva sobre a realidade latino-americana em 2007, a partir de contexto político em que esteja funcionando plenamente o parlamento sul-americano, onde a América Latina se encontre suficientemente integrada economicamente, sob vigência de uma moeda sul-americana, tendo o Banco do Sul como emissor monetário de última instância, sob coordenação rotativa – como acontece, atualmente, na União Européia – e no qual decisões políticas colegiadas direcionam o desenvolvimento sustentável da América do Sul.
Em tal ambiente, os deputados do parlamento sul-americano se debruçariam para discutir, longe das paixões, o papel do Legislativo latino-americano – e do brasileiro em particular – na segunda metade do século 20 e início do século 21, período no qual as ordenações norte-americanas ditadas por Washington norteavam as ações do poder no subcontinente dominado por uma sub-raça de políticos subservientes.
Fixando-nos mais de perto na realidade neorepublicana a partir da década de 1980, o que aconteceu, realmente? A grande crise monetária desencadeada pelos Estados Unidos, ao elevarem de 5% para quase 17% a taxa de juros norte-americana em nome do combate à inflação, que ameaçava o dólar, depois de rompida sua paridade com o ouro em 1974 – diante do fiasco da guerra do Vietnã – jogou a economia latino-americana no abismo. Os Estados Unidos, diante do estouro-estupro financeiro latino-americano provocado de fora para dentro, por decisões monetárias desencadeadas pelo Banco Central norte-americano, criou o Consenso de Washington, para proteger as finanças dos banqueiros ameaçados de calote.
A palavra de ordem de Keynes
Tio Sam trabalhou para não permitir que se repetisse o que aconteceu na crise de 1929, quando mais de cinco mil bancos faliram nos Estados Unidos. A Casa Branca fixou regras monetárias e fiscais draconianas. Impôs, goela abaixo, aos governos e aos parlamentos sul-americanos a desestruturação da própria economia da América Latina, ao mesmo tempo em que implodiu estruturas políticas militares que até então dominavam a cena política continental sob orientação de Washington.
Em nome da democracia continental, a nova palavra de ordem de Tio Sam foi a abertura econômica (metas inflacionárias, câmbio flutuante, juros altos, desestatização, sobrevalorização cambial etc.) e democrática. A liberdade do capital se torna absoluta, para impulsionar a monopolização e a oligopolização completa do cenário econômico. Tal situação se expressa, no momento, pela corrupção que envolve 40 bilhões de dólares por ano em compra de influência no âmbito do governo para que possam disseminar suas mercadorias no falso livre-mercado mediante manipulação das licitações públicas. Já as micro, pequenas e médias empresas sucumbem à força do grande capital sob expansão das sociedades anônimas, impulsionadas pelos fantásticos fundos de pensão, organizados a partir dos países capitalistas cêntricos, a imporem sua vontade sobre os países capitalistas periféricos em geral.
A desvinculação do dólar do ouro, que levou à crise monetária da década de 1980, consolidou a moeda norte-americana como dominadora da cena internacional, sem lastro, enquanto as demais moedas, especialmente, as dos países subdesenvolvidos da América Latina, sucumbiram às desvalorizações cambiais – em um momento para se sobrevalorizarem, em outro para cumprirem as determinações do Consenso de Washington. Deu-se, na prática, conseqüência à palavra de ordem de Keynes, dita em Bretton Woods, em 1944, de que o poder de uma nação sobre a outra se dá sempre, e desde sempre, a partir do poder monetário, nas trocas cambais, quando os especuladores ganham nas arbitragens financeiras entre o juro alto interno e o juro baixo externo. Algo diferente da atualidade?
MPs, a base da corrupção
Nesse período, o único governante que dá o berro pra valer contra Washington, é Charles De Gaulle, cuja resistência à Casa Branca originou movimentos de protestos que acabaram culminando no maio de 1968. O que fizeram os parlamentos latino-americanos, em especial no Congresso brasileiro, nesses últimos 22 anos de Nova República? Renderam-se, completamente, aos ditames de Tio Sam. Este, sabendo que a democracia tem que ser exercida em nome do capital, e não em nome do povo, impôs, ao longo do período neorepublicano, via Consenso de Washington, uma política macroeconômica mecanicista-positivista – visão do mercado preponderante em relação à visão de governo – na qual os parlamentos passaram a ter apenas o papel de retórica vazia.
As decisões econômicas, ditadas pelos bancos centrais – obedientes ao FMI e ao sistema financeiro internacional – impuseram não o livre debate parlamentar, mas providências políticas aceleradas por meio de medidas provisórias, de modo a atender os pressupostos da acumulação capitalista, que se ampliou fantasticamente no compasso das sobrevalorizações cambiais em nome do combate à inflação e da abertura total da economia ao capital externo, produtivo e especulativo.
Os parlamentos, dominados pela sub-raça política latino-americana, disseram sim. O Congresso brasileiro, desde Sarney até Lula, passou, na Nova República, a ser governado por medidas provisórias. Estas se solidificaram na base da corrupção ao envolver os sub-políticos na Comissão Mista de Orçamento do Congresso. Não é à toa que explodiu a CPI do Orçamento em 1992. Ali, os políticos tupiniquins conseguiram obter o mando sobre 5% do orçamento da União para encaminhar emendas parlamentares ao orçamento. Direcionavam, assim, recursos às suas bases políticas.
A nuclearização do PSDB
O Executivo, responsável pela manipulação dos 95% restantes das verbas orçamentárias, descobriu, naturalmente, a forma ideal, corrupta, de dominar o Congresso. Somente libera as emendas parlamentares mediante apoio às medidas provisórias. Abastardou-se completamente o Legislativo nacional. Por que se irritar, quando Chávez chama o Congresso Nacional de papagaio de Washington, se isso ocorre por meio das MPs?
O papel constitucional dos congressistas, de legislarem e fiscalizarem o Executivo, foi para o espaço. A desmoralização completa da política imperou. A quem os congressistas serviram e continuam servindo? Ao povo, não, mas sim, aos interesses dos comandantes da política econômica, os bancos nacionais e internacionais, que financiam a dívida pública, impulsionada pelo câmbio sobrevalorizado – como mostra Luís Nassif, em Cabeças de Planilha –, submetido à conspiração do silêncio pela mídia. Fizeram, portanto, o jogo do Consenso de Washington, subordinando-se, como papagaios, ao instrumento de ação coordenadora das economias subservientes dos governos latino-americanos, conhecido pelas medidas provisórias, sempre supervisionadas pelo FMI.
Nos últimos cinco anos, diante da boa performance da economia mundial, da qual a economia brasileira usufrui benesses, Lula aproveitou para romper com o FMI. Mas é preciso destacar que, se por um lado o Brasil se desencarnou do FMI, o FMI ainda não se desencarnou do Brasil. Basta observar a política monetária e fiscal em curso, adequada aos ditamos do Fundo Monetário Internacional. FHC, que, no poder, abandonou o marxismo e abraçou o neoliberalismo, agora, na oposição, destaca que Lula mantém vivo e intacto o neoliberalismo. O ex-presidente neoliberal, subserviente a Bill Clinton, em brilhante pronunciamento, dia 29, no Kubistchek Plaza, com pouca repercussão da mídia, pregou o inverso do que praticou, isto é, a nuclearização partidária como forma básica para iniciar a reforma política no país. FHC passou a defender que o PSDB se reencarne no ex-PT, que, a partir da década de 1980, optou pelo fortalecimento dos núcleos partidários como forma gramsciana de organicidade entre a sociedade e os partidos, dando-lhes verdadeira autenticidade. No poder, naturalmente, os petistas deixaram os núcleos de lado, tornando-os mera abstração.
A humilhação de Furtado
Portanto, o Congresso Nacional, nas plagas de Eldorado, é isso mesmo: papagaio de Washington, e, pelo menos por enquanto – visto da distância retrospectiva de 2050 para analisar o ano de 2007 –, subserviente, apesar da irritação do presidente Lula falando sobre o assunto na Inglaterra, onde se encontrava nesses dias, para defender os congressistas atacados por Chávez.
Que moral tem o senador e ex-presidente José Sarney (PMDB-MA), para criticar Chávez, se ele, a despeito de ter sido financiador de documentário do genial Glauber Rocha sobre sua posse de governador do Maranhão, nos anos 1960, censurou, no seu governo, sob pressão do cardeal Dom Eugênio Salles, do Rio de Janeiro, o cineasta francês, Jean-Luc Godard, autor de Je Vous Salue Marie, condenado pelo Vaticano?
Na ocasião, o próprio ministro da Justiça, Fernando Lira, considerou Sarney a ‘vanguarda do atraso’. O ex-presidente comprometeu, inclusive, a honorabilidade do então ministro da Cultura, Celso Furtado, o intelectual mais ético que o jornalista Reali Junior – em seu livro Às margens do Sena, disse ter conhecido. Furtado foi obrigado a se submeter à humilhação de assinar, com Sarney, decreto de censura a Godard. Sujou a barra do grande intelectual brasileiro na Sorbonne, onde foi professor enquanto viveu no exílio. Para culminar, ao término do seu mandato, o ex-presidente fechou a Empresa Brasileira de Notícias (EBN), jogando na rua da amargura profissionais que tiveram dificuldades para sustentar suas famílias.
Pura hipocrisia
O jornalista Bartolomeu Rodrigues, o Bartô, então presidente do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, destacou, com razão, que durante o governo sarneyzista, a liberdade de imprensa vigorou, mas essas barbaridades cometidas pelo ex-presidente não podem ser esquecidas, agora que posa de vestal da democracia. Imagine o que faria ele hoje se o papa Bento 16 lhe pedisse que condenasse o aborto, como solicitou a Lula. Teria, talvez, como fez em relação ao cineasta francês, jogado o Estado laico no lixo para impor censura à liberdade de opção da mulher pela utilização do seu corpo, condenando, abertamente, o aborto.
Compreende-se, historicamente, a posição do senador maranhense, tão bem retratada em Sarney – o outro lado da história, de Oliveira Bastos, um presidente democrata sem voto, emergente no contexto da eleição indireta, como vice de Tancredo, submetido às ordens de Ulisses Guimarães. Originário das hostes udenistas-militares-golpistas e sem moral, portanto, para falar em democracia plena, Sarney é vulnerável em seu ataque a Chávez. As circunstâncias, sim, no seu tempo, eram outras. Ainda assim, não soa autêntico ele bombardear o anti-democratismo chavista por ter negado renovar concessão a uma mídia que conspirou abertamente contra a democracia na Venezuela.
Os deputados latino-americanos, no âmbito do parlamento sul-americano, depois dessa avaliação histórica passageira, dos momentos dramáticos que o continente viveu no final do século 20 e vive início do século 21, sairiam, em 2050, para uma rodada de cafezinho, finda a caracterização ligeira do mau-caratismo político predominante no ano de 2007. Concluiriam que os políticos latino-americanos, tipo Renan Calheiros, Romero Jucá – extraordinariamente retratado, na Veja, por Roberto Pompeu de Toledo, em ‘O arquiteto da fila’ – e Sarney, representam, como destacou o grande poeta russo Maiakovisk, relativamente ao comportamento da multidão, um fato solerte, furta-cor. Pura hipocrisia.
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Jornalista, Brasília, DF