‘A fascinante violência no Rio de Janeiro foi de novo um sucesso.’
A frase final de um artigo do editor de Destak (sexta-feira, 26/11), jornal carioca de distribuição gratuita nos sinais de trânsito, vale como sintoma do que foi a cobertura jornalística (imprensa escrita e televisão) do terrorismo delinquente nas ruas do Rio e da consequente reação das forças policiais. Em termos de modelagem ideológico-editorial, não há diferença entre a pequena e a grande imprensa.
Como preliminar, é preciso deixar claro que a operação policial, com o apoio logístico da Marinha e reforço posterior do Exército e da Polícia Federal, foi recebida com aplausos pela população, inclusive a maior parte dos moradores do complexo de favelas invadido, todos já psicologicamente saturados dos efeitos desgastantes do domínio dos bandos ilegalistas sobre os cidadãos de todas as classes sociais. Na sociedade e na web: uma ligeira vista de olhos pelas redes sociais permite localizar endereços de Facebook com caveiras (emblema do Bope) estampadas.
Por outro lado, se nas ruas do ‘asfalto’ o medo ronda pedestres e motoristas, nos morros, ou ‘comunidades periféricas’, registra-se o imenso alívio de moradores que, além do cerceamento do direito constitucional de ir e vir, eram ultimamente obrigados a servir comida a marginais desfalcados da renda costumeira do tráfico de drogas, em virtude da ação das ‘unidades pacificadoras’.
Jornalismo ‘técnico’
Mas não há nada de ‘fascinante’ nisso tudo, nem mesmo a ser ‘celebrado’, como frisou o secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame. A hora é de preocupação ou de pausa para a reflexão, bem ao contrário da espetacularização encenada pela mídia. Na verdade, é mesmo ocasião para alguma tristeza em face do número elevado de mortos e da convicção de que a situação a que agora se chegou é o resultado de desgovernos anteriores e da crescente mafialização da vida pública. Este fenômeno abrange a composição de partes significativas de câmaras legislativas, a corrupção policial, a fragilidade do Poder Judiciário, a disseminação das milícias (potencialmente mais perigosas do que o narcotráfico) e a escandalosa indiferença da própria sociedade ao consumo de drogas.
A mídia é aqui também objeto de preocupação.
É verdade que foi provavelmente uma imagem veiculada pela TV Globo (dezenas de bandidos armados e reunidos na Vila Cruzeiro, o bunker das ações terroristas nas ruas) a deflagradora da invasão e ocupação do local por tropas de elite da polícia, escudadas por veículos blindados da Marinha. Imagens de TV – mas também o risco de arranhão na imagem internacional da cidade que abrigará a Copa e as Olimpíadas – são claramente motivadoras da ação. Afinal, o poder constituído sabia desde muito tempo atrás do incremento exponencial de sua contrapartida nas favelas, o poder do ilegalismo.
Mas a cobertura jornalística dos acontecimentos, a televisiva principalmente, revelou o anacronismo cívico de um jornalismo puramente ‘técnico’, movido pelo espetáculo do fato e praticado nos moldes de uma presumida filmagem, ao vivo, da realidade. ‘Globocop’, nome do helicóptero da TV Globo, é a máquina equipada com quatro tripulantes e uma câmera capaz de girar em 360 graus e de captar imagens com precisão a um quilômetro de distância.
‘Como Copa do Mundo’
Evocativa de Robocop, conhecido personagem cinematográfico, a máquina televisiva associou-se à metáfora da ‘máquina de guerra’, usada pela mídia para caracterizar as ações policiais. Com ela, a cobertura converteu-se numa espécie de ‘Tropa de Elite 3‘, produzindo efeitos de identificação projetiva, segundo os quais estariam entrando em ação aqueles que o colunista Merval Pereira designou como ‘centenas de capitães Nascimento encarnados em cada um dos soldados do Bope’ (O Globo, 26/11/2010).
Como num filme ou numa telenovela, constrói-se uma polaridade (os bons contra os maus), da qual se alimenta a narrativa midiática. O texto de Destak é explícito: ‘Éramos nós atirando, acenando com bandeiras brancas sobre lajes e nos escondendo dos tiros dentro de casa, contra eles, que fugiam ou nos afrontavam. (…) A cidade se uniu diante da TV, tentando torcer por si’. Essa polaridade (‘nós’ contra ‘eles’) é tão falsa quanto a polaridade entre polícia e bandido, já que, na corrupção cotidiana, não raro um termo equivale ao outro.
Mas a lógica do espetáculo demanda uma oposição folhetinesca. Assim, as palavras em itálico (cena, torcida) são índices semióticos da espetacularização, confirmada na coluna de Merval Pereira: a cobertura seria de fato ‘um reality show em tempo real’. Seria algo como um game, encenação televisiva de um ‘show da vida’ ou uma partida de futebol, capaz de converter o cidadão em torcedor: ‘Uma sensação parecida com ver um jogo de Copa do Mundo. Em vez de um time representando o país, eram policiais. Em vez de gol, a vibração surgiu no momento em que dois traficantes em fuga a pé foram alvejados’ (Destak).
Razões da impunidade
Há algo de socialmente obsceno nesse transbordamento do espetáculo. É moralmente inadmissível essa assimilação de uma tragédia urbana, com mortes e sofrimento, a um show de TV. Nem faz justiça ao comportamento da polícia: o Bope sentiu-se prejudicado, em plena ação, pela cobertura televisiva; o secretário de Segurança enfatizou que ‘não há nada a celebrar’. O comedimento da polícia é uma crítica implícita à falta de consciência crítica dos jornalistas.
Como poderia manifestar-se essa consciência?
Antes de tudo, no questionamento desse modelo de jornalismo, que confunde a informação responsável do fato com a exposição obscena (em seu sentido radical, esta palavra de origem latina significa postar-se diante da cena – ob-scenum – sem as devidas mediações culturais) dos acontecimentos. Simplesmente mostrar não é informar. Pode ser, no limite, um modo de excitar a pulsão escopofílica do espectador.
Informar criticamente – o que se revela socialmente imprescindível no caso em pauta – seria comunicar os acontecimentos dentro do quadro explicativo de suas causas, aliás bastante evidentes para qualquer observador atento. Pode-se começar com os constituintes de 1988, que legislaram em matéria penal com a ditadura e o preso político em mente e, ao fundo, a doutrina liberal-individualista do direito pós-Revolução Francesa. Resultou daí uma legislação tíbia frente ao delinquente comum, com a impunidade no horizonte. Mata-se por dá cá essa palha.
Comedimento e responsabilidade
Em seguida, seria preciso colocar em pauta a corrupção avassaladora de governos, políticos, policiais etc. Não deixar também de indagar sobre a responsabilidade da sociedade civil (se é que esse conceito se aplica ao Brasil) no tocante às drogas e à mafialização generalizada, que vem pondo em segundo plano o problema do tráfico de drogas. Finalmente, tentar jogar alguma luz sobre as perspectivas de emprego para quem se dispõe a abandonar o crime.
Certo, o jornalista poderá responder a tudo isso com a alegação de que o imediato de sua condição profissional lança-o sob pressão sobre a superfície do fato, para dar conta a seu público das ocorrências em bruto. A notícia seria, assim, a pura e simples mercadoria de sua prática industrial. É o que se aprende, é o que se faz – e o que dá certo em termos de audiência e mercado publicitário.
Esse é, de fato, o modelo consagrado pelo jornalismo tal como o conhecemos e talvez não possa ser mudado sem mais nem menos. Mas é certamente um modelo sem amanhã cívico; portanto, algo a ser debatido e repensado.
Nesse meio tempo, seria oportuno um pouco mais de comedimento e responsabilidade social. A morte violenta do outro não pode converter-se em fantástico show da vida.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro