Após uma das campanhas eleitorais mais acirradas das últimas décadas, o Brasil escolheu no domingo (31/10) o próximo presidente da República. Em sua primeira eleição, Dilma Rousseff (PT) derrotou o candidato oposicionista José Serra (PSDB) com 56% dos votos. Marcada por escândalos, dossiês, trocas de acusação e ataques de todo tipo, a campanha eleitoral de 2010 entrará para a história como a que menos colocou em pauta as propostas dos candidatos para o Brasil. Temas como educação e segurança ficaram em segundo plano, sobretudo no segundo |
predominaram no cenário político. A mídia tradicional foi um ator importante
nesta conjuntura. Acusados de parcialidade tanto por petistas quanto por
tucanos, os jornais impressos contribuíram para elevar os ânimos nas semanas que
precederam ao pleito.
Já as mídias sociais, que chegaram a ser apontadas como uma ferramenta
revolucionária para a mobilização da população e na discussão de projetos dos
candidatos, na prática revelaram-se um ambiente propício para a circulação de
especulações e baixarias. Após a contagem dos votos, observam-se os movimentos
iniciais de aproximação entre as forças políticas dominantes. Em seu primeiro
discurso como presidente eleita, ainda no domingo à noite, Dilma Rousseff
estendeu a mão para a oposição. O Observatório da Imprensa exibido ao
vivo pela TV Brasil na terça-feira (2/11) discutiu o papel da mídia na
conciliação nacional que será necessária após a escolha do novo presidente.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o cientista social Renato
Lessa. Professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense
(UFF), Lessa é presidente do Instituto Ciência Hoje e pesquisador associado do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Em São Paulo,
participaram os filósofos Roberto Romano e Roseli Fischmann. Romano é graduado
em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e tem doutorado na Escola de
Altos Estudos de Paris. É professor titular da Unicamp na área de Ética e
Filosofia Política. Escreveu vários livros e artigos sobre ética e teoria do
Estado. Roseli Fischmann é doutora em Filosofia e História da Educação pela USP,
estuda a tolerância e o combate à discriminação, em particular religiosa, e o
racismo, sendo pesquisadora do CNPq para o tema do Estado laico. É professora da
USP e da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
Imprensa no palanque
Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines avaliou o papel da mídia no
período pré e pós-eleitoral. ‘A imprensa foi empurrada para o palanque e agora
precisará de algum tempo para desencarnar do papel de beligerante’, disse.
‘Ameaçada, viu-se forçada a revidar e ao revidar, perdeu o senso de equilíbrio e
esqueceu alguns de seus deveres. A presidente eleita, Dilma Rousseff, garantiu
na comemoração da vitória que não permitirá ameaças à liberdade de expressão.
Foi uma manifestação importante destinada a desarmar os espíritos.’ Para Dines,
a conciliação nacional após o pleito traz embutida a questão da coragem:
‘Conciliar exige coragem, boas intenções não são suficientes para unir um país
que nesta refrega eleitoral, ao contrário das anteriores, saiu dividido e
machucado’.
No debate no estúdio, Dines pediu que o filósofo Roberto Romano fizesse uma
reflexão sobre o exercício da conciliação. ‘Significa apenas uma boa palavra, um
sorriso, um tapinha nas costas ou abrir mão e reconhecer?’, perguntou. Na
perspectiva de Romano, é preciso redefinir novos espaços de diálogo verdadeiro
na política. O filósofo explicou que diálogo não é ‘aceitar tudo do outro’, é
exigir respeito e respeitar. ‘Se você não tem esta relação dupla, você não pode,
efetivamente, chegar à conciliação’, argumentou. A conciliação exige a verdade e
é necessário coragem para dizê-la. ‘O que nós estamos assistindo aqui é o
resultado da não verdade.’ Em ambos os lados da campanha, segundo ele, houve a
tentativa de transformar ‘o outro’ em um sujeito ‘inimigo’, ‘diabólico’ e
‘demoníaco’ – e este aspecto, para Romano, contribui para diminuir a dignidade
política.
Dines comentou que a imprensa assumiu-se como protagonista no cenário
eleitoral. Ao aceitar esta condição, deixou de cumprir o seu papel na sociedade
e perdeu a isenção. Renato Lessa sublinhou que a reduzida dimensão quantitativa
de jornais em circulação atualmente, sobretudo no Rio de Janeiro, faz com que a
imprensa não seja capaz de captar e dar voz às diversas opiniões e percepções da
sociedade brasileira. Lessa criticou o fato de os partidos políticos se
transformarem em ‘meras agências de captura de voto em temporadas eleitorais’.
Para o cientista social, os partidos não têm exercido a função de organização da
opinião e de informações fundamentais para que o eleitor possa se posicionar em
relação às grandes questões nacionais.
Mídia como parte do processo de polarização
‘A imprensa entra no vazio destes formadores desejáveis e tradicionais de
opinião’, afirmou Lessa. ‘E ela entra opinando, entra a partir de perspectivas
próprias que os veículos adotam – portanto, não é uma entrada inocente – e entra
também com uma auto-atribuição de uma espécie de ombudsman da nação. Como se a
imprensa, ao não participar do jogo político-partidário, estivesse em um patamar
moral que desse a ela uma legitimidade para julgar os políticos ordinários.
Ordinários tanto no sentido de normal, quanto no sentido de Nelson Rodrigues’,
avaliou o cientista social. Com o acirramento da campanha, o papel mais genérico
da imprensa acaba se politizando de forma equivocada.
Roseli Fischmann afirmou que a concordata firmada entre o governo brasileiro
e a Santa Sé em 2008 contribuiu para forma como a questão religiosa foi tratada
nas eleições que se encerraram no domingo. O tratado confere formato jurídico às
relações entre o Executivo brasileiro e a igreja católica e prevê o ensino
religioso nas escolas públicas, com presença facultativa, e a possibilidade da
anulação do casamento civil no caso de o matrimônio religioso ser desfeito,
entre outros pontos. Para a professora, este acordo abriu precedentes para que
as demais confissões religiosas pleiteassem o apoio do governo. ‘Isto propiciou
uma série de elementos para que as religiões, de maneira geral, se considerem no
direito que o Estado venha a atendê-las’, disse. A imprensa durante a campanha,
para Roseli, tratou de temas como o aborto e a união civil entre pessoas do
mesmo sexo de forma equivocada e superficial.
Neste processo eleitoral, a sociedade assistiu a um desgaste e a um conflito
inéditos na cena política, na avaliação da professora. Perdeu-se a oportunidade
de travar debates aprofundados sobre questões relevantes nas esferas dos poderes
Executivo e Legislativo. Esta eleição, na avaliação de Roseli, sinalizou na
direção da polarização. ‘Todo processo de reconciliação passa pelo fato de que
os envolvidos queiram a reconciliação e que possam falar verdadeiramente sobre
as suas questões’, disse. ‘Dentro das teorias que se trabalham, e há muitos
estudos sobre a reconciliação, existem pontos que são muito importantes, ligados
aos valores, às necessidades e aos temores que as pessoas têm.’. Roseli nota que
o acirramento ocorreu também por conta do medo de determinados setores de serem
excluídos no ‘concerto nacional’.
Estudioso das relações entre o Estado e as igrejas desde a década de 1970,
Roberto Romano chamou a atenção para o fato de que a interferência de questões
religiosas na política pode retornar de forma ainda mais intensa nas eleições de
2014: ‘É uma pauta de soberania nacional, de soberania do Estado sobre a
sociedade e de controle da cidadania que não é católica, protestante ou budista,
mas que é, justamente, cidadã. Este é o ponto mais universal. Se nós não
chegarmos a este ponto, se nós não discutirmos isto, se não estudarmos de todos
os lados, evidentemente a solução será impossível porque vai retornar na próxima
eleição’. Romano alertou que não só o papa se manifestará como também líderes de
outras confissões poderão querer definir os rumos do Estado brasileiro.
Questão republicana
A questão religiosa, na opinião de Renato Lessa, teve um papel negativo nesta
campanha presidencial. O cientista social destacou que só uma República
agnóstica pode garantir a liberdade religiosa. Por não ter uma religião oficial,
a diversidade de crenças pode ser percebida como legítima. ‘Nós perdemos uma
oportunidade ímpar nesta campanha de estabelecer estes termos. Seria um avanço
para a discussão política republicana no Brasil’, disse. Para Lessa, os dois
candidatos, pelas suas trajetórias pessoais e políticas sem ligação com a
religiosidade, tinham condições de estabelecer um debate que não fosse pautado
por preferências religiosas. A esfera da cidadania é marcada por um politeísmo
de valores. Os políticos não podem se orientar por um determinado valor mesmo
que ele seja extremamente majoritário e tomá-lo como indicador.
***
Ousar avançar
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 570, exibido em 2/11/2010
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Se a política é a arte do possível, conciliar adversários depois de um
confronto eleitoral deveria ser tarefa fácil. Não é. Em primeiro lugar porque o
confronto foi incomum, violento. Em segundo lugar, porque a política, sobretudo
nas democracias, é um processo contínuo, dinâmico, veloz. O discurso de hoje
precisa ser reafirmado amanhã, caso contrário, desgasta-se e fica esquecido.
Um complicador no nosso caso é que a imprensa foi empurrada para o palanque e
agora precisará de algum tempo para desencarnar do papel de beligerante.
Ameaçada, viu-se forçada a revidar e, ao revidar, perdeu o senso de equilíbrio e
esqueceu alguns de seus deveres.
A presidente eleita Dilma Rousseff garantiu na comemoração da vitória que não
permitirá ameaças à liberdade de expressão. Foi uma manifestação importante
destinada a desarmar os espíritos. Hoje [terça-feira, 2/11] alguns
jornais confirmavam o que foi dito neste Observatório há três semanas: o
governo vai estimular a sua base de apoio no Legislativo e apressar a reanimação
do Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional,
previsto na Constituição e que já funcionou durante um mandato com alguma
desenvoltura. O renascimento deste conselho tem caráter simbólico, mas política
faz-se também com símbolos.
Outra protagonista do embate eleitoral e igualmente involuntária foi a
questão religiosa. O Estado brasileiro laicizou-se formalmente no texto da
primeira Constituição republicana, mas nunca foi para valer. A introdução
artificial do tema do aborto na disputa eleitoral e, depois, a indevida
intromissão do Vaticano em assuntos internos de um Estado soberano, exigirá
habilidade e paciência. A questão está posta, dificilmente será esquecida. A
imprensa não pode ignorá-la, como sempre fez.
Tema que incendiou a campanha e que também não poderá manter-se engavetado é
o da corrupção. Conciliar aqui significa repetir o formidável sucesso da
campanha da Ficha Limpa que empolgou todos os segmentos, partidos, facções e
poderes. O envolvimento integral da sociedade brasileira numa cruzada para
estabelecer padrões mínimos de moralidade servirá como um tônico para cicatrizar
as feridas eleitorais. Esta é uma reconciliação que precisa ser tocada com
empenho e velocidade no resto deste mandato, para que não se torne uma herança
maldita. Também aqui a imprensa desempenhará um papel crucial para despolitizar
a busca da decência.
Ao conciliar correm-se riscos, sem correr riscos não se fazem avanços.
Conciliar exige coragem, boas intenções não são suficientes para unir um país
que nesta refrega eleitoral, ao contrário das anteriores, saiu dividido e
machucado.