O decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira (17/2), criando a figura da Retransmissora de TV Institucional (RTVI), abre uma natural polêmica com as emissoras comerciais e as assembléias legislativas mas acende também um sinal vermelho sobre o que está sendo feito das TVs legislativas e das TVs públicas no país.
As emissoras comerciais argumentam que o decreto é inconstitucional e que as RTVI seriam na verdade uma grande moeda de troca política. Em entrevista à Folha de S.Paulo (24/2), o vice-presidente da Band, Antonio Teles, recorreu a analogias com o império persa ao comparar a criação dessas retransmissoras às satrapias [‘cada uma das províncias em que estava dividido o antigo império persa’, segundo o Aurélio], ‘para os prefeitos usarem como bem quiserem’.
Deve ser observado que cada retransmissora a ser instalada ficaria com a obrigação de ocupar 85% de sua programação com a retransmissão, em sinal aberto, das TVs Câmara e Senado, além de um sinal da Radiobrás (que o decreto aparentemente não especifica, podendo em tese ser a NBR, da TV Nacional ou até da futura TV Brasil). Os 15% restantes seriam divididos entre o Executivo, as Câmaras locais e a ‘comunidade’, seja lá o que isso queira dizer.
Realidade e ficção
Temos que admitir que três horas e meia diárias para as prefeituras, as câmaras de vereadores e as ‘comunidades’ já seriam mais que suficientes para transformar o país no maior produtor de besteirol televisivo de todo o mundo. Deixará de ser apenas por intermédio das telenovelas, portanto, que a televisão brasileira irá se destacar em nível internacional. Além disso, não podemos esquecer que o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), o grande astro brasileiro da vez, acaba de estrear em tempo integral na TV do legislativo trazendo comédia e horror diários aos 3 milhões de brasileiros que possuem TV a cabo.
Não é justo que o resto do Brasil seja privado de se enxergar com a mesma nitidez. Através das RTVI, os Severinos que atuam nas câmaras e no Senado estenderiam suas performances a dezenas de milhões de espectadores que não estão no topo da pirâmide para instalar sistemas de TV por assinatura em suas casas. Isso é mais democrático e leva, de forma bem mais verdadeira, o Brasil aos brasileiros – porque não se pode negar que Severino Cavalcanti é Brasil e Brasil é Severino.
Vale notar que aos Severinos de todas as câmaras legislativas seriam acrescidos os prefeitos que, como eles, também foram eleitos pelo povo e que mostram, a partir das operações que emanam de seus gabinetes, o que de fato é o país que eles estão governando.
A ficção tem tido suas limitações. Mesmo no país do Justo Veríssimo, um autor de novelas que criasse um Severino tão explícito dificilmente conseguiria dar credibilidade ao seu projeto – e provavelmente ficaria fora do ar, porque a realidade é mais forte do que a ficção.
São mais de 5 mil prefeitos pelo Brasil, dos quais talvez uns 3 mil tivessem condições de montar as suas estações de televisão. É nesses gabinetes e nas câmaras de vereadores locais que está sendo montado o país, não no Projac.
O que está sendo feito?
Na mesma edição da Folha, o presidente da Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas, Rodrigo Lucena, afirma que, com o compartilhamento dos canais, a programação terá de ser editada e que ‘com a edição, surge o risco da manipulação’.
Lucena está certo por razões erradas. O grande risco da manipulação não consiste na descontextualização de pronunciamentos, por exemplo, mas na interferência sobre a exposição de um Brasil de verdade, que subitamente aflorou e se expande, lembrando o que Nelson Rodrigues já previa anos atrás, que um dia os idiotas iriam se dar conta de sua superioridade numérica e tomar todo o país, deixando de se resignar à sua insignificância.
Insignificantes são os outros. São os contribuintes, que naturalmente vão pagar por mais uma farra dos prefeitos, como pagam todos os dias pelas farras dos legisladores, que agora estão tomando mais 2 bilhões de reais dos seus eleitores para pagar a conta da eleição do novo presidente da Câmara.
Mas é preciso que se leve em conta que a criação das retransmissoras que darão voz aos Bem-Amados que governam o Brasil não tem o monopólio da aplicação do dinheiro público em operações de televisão no país – que, na verdade, não é mais do que um troco do montante.
Está mais do que na hora de a sociedade perguntar o que está sendo feito dos investimentos que ela está fazendo nas emissoras legislativas, e muito especialmente na televisão pública do Brasil. Quem está usando adequadamente esses recursos e quem os está utilizando como se teme que as prefeituras o fariam.
O que está sendo produzido com todo esse dinheiro e que benefícios a sociedade está recebendo em forma de qualidade de informação e excelência de programação, que são as únicas formas de retorno que a televisão pública tem a obrigação de dar ao contribuinte?
O que está sendo feito, em suma, de mais moral, ético e inteligente do que Severino Cavalcanti seria capaz de fazer da sua televisão.