Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Reescrevendo a História

Os jornais de segunda-feira (15/12) tentam desqualificar o relatório da Comissão Nacional da Verdade, confundindo o quadro histórico sobre os crimes cometidos por agentes públicos com casos isolados de vítimas dos grupos armados que resistiram à ditadura. O criminalista José Paulo Cavalcanti, único integrante do comitê que não concordou com o relatório, se transforma em uma espécie de porta-voz do “outro lado”, aquele que é objeto da investigação.

O acirramento das posições políticas provocado pela disputa eleitoral e as contestações que se seguiram à divulgação do resultado das urnas criam o cenário propício à desinformação e a ambiguidades. Assim, questões que poderiam ser debatidas com transparência, permitindo à sociedade colocar uma lápide sobre as tumbas do período de exceção são reacendidas, dificultando o esclarecimento da questão central: nominar os agentes do Estado que cometeram tais crimes e, no limite de todas as possibilidades, revelar o destino dos desaparecidos, para que suas famílias possam finalmente encerrar o luto de décadas.

Esse talvez seja o divisor de valores entre aqueles que insistem em apurar os casos de prisões arbitrárias com torturas e mortes e os que, como o advogado Cavalcanti, misturam atos de indivíduos com políticas de Estado, ainda que subterrâneas.

Uns morreram porque financiavam a atividade repressiva, ou porque atuavam diretamente no conflito, e devem ser considerados protagonistas, e há as vítimas colaterais, que foram apanhadas no fogo cruzado ou eliminadas por agentes da repressão por haverem testemunhado execuções ilegais.

O debate, para ser correto, precisa considerar as circunstâncias de cada caso. Os familiares das vítimas de um lado tiveram direito aos funerais e ao luto. Os do outro lado foram impedidos de honrar seus mortos, e muitos ainda esperam pela confirmação do óbito – direito que lhes foi negado pelo Estado nacional sequestrado pelo poder militar.

Essa é a distinção que dá sentido à Comissão Nacional da Verdade e que coloca sob questionamento o efeito da anistia, imposta como condição para uma retirada honrosa das Forças Armadas do poder político.

“Operação Jacarta”

Não se deve esquecer que a anistia começou a ser negociada apenas um ano depois do assassinato do operário Manoel Fiel Filho, militante das comunidades eclesiais de base da igreja católica, ocorrido em janeiro de 1976. Resultou de uma articulação do então presidente Ernesto Geisel com parte da imprensa, empresários e políticos que haviam apoiado o golpe de 1964. A oposição organizada em torno do Movimento Democrático Brasileiro apanhou a bandeira levantada em 1975 pela ativista Terezinha Zerbini, e iniciou a negociação com o governo militar em 1977.

Três meses antes do assassinato do operário, a morte do jornalista Vladimir Herzog, torturado nas dependências do então 2º Exército, em São Paulo, havia levado o presidente Geisel a determinar que ninguém mais fosse preso por subversão sem que o gabinete da Presidência da República fosse informado. Ele queria evitar outras mortes nos porões semiclandestinos.

A medida foi comunicada pessoalmente por Geisel ao comandante da unidade, general Ednardo D’Ávila Mello, segundo depoimento do ex-governador paulista Paulo Egydio Martins ao jornalista Geneton Moraes, da GloboNews (ver aqui).

O que poucos sabem é que D’Ávila Mello era parte de uma conspiração que planejava eliminar cerca de 2 mil dissidentes, muitos dos quais militantes do Partido Comunista Brasileiro, que não havia aderido à luta armada. Seu plano foi revelado a três estudantes de jornalismo que o entrevistaram em agosto de 1975. Um relatório dessa entrevista foi encaminhado a dirigentes do PCB, mas a organização entendia, como disse um deles, que “o processo de abertura do general Geisel é lento e gradual, mas é seguro”.

A repressão massiva, comandada pelo então ministro do Exército Sylvio Frota, que conspirava para se tornar sucessor de Geisel, se chamaria “Operação Jacarta”, em referência ao episódio de 1967, quando o ditador Suharto comandou o assassinato de 500 mil dissidentes, principalmente militantes de esquerda, intelectuais, escritores, religiosos e simplesmente indivíduos que manifestavam índole pacifista, destruindo o patrimônio intelectual e a inteligência crítica da Indonésia.

A morte de Herzog interrompeu a operação insana, e o plano da anistia foi construído sobre essa base de perigosa instabilidade, com as Forças Armadas ainda divididas e parcialmente influenciadas pela “linha dura”.

O que fez a Comissão Nacional da Verdade foi desvelar parte do que ficava escondido naqueles porões. O que faz a imprensa, hoje, é tentar relativizar a verdade.