Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Referendo, a via democrática

Diante da fúria dos editoriais do Estado de S. Paulo, 14.01 e 17.01, da Veja, na segunda edição do ano, e do Jornal do Brasil, também em 17.01, contra o movimento político, impulsionado pelos governos da Venezuela, da Bolívia e do Equador, de acelerar referendos plebiscitários para tomar decisões capitais, algo possível, também, de avançar em outros países, como no Brasil, faz-se necessário, urgentemente, indagar se essa modalidade política é ou não é democrática.

O referendo nada mais é do que o exercício da democracia direta. Ela avança, justamente, no rastro da desmoralização da democracia representativa. Esta, como é de conhecimento geral, em todo o continente, abastardou-se, completamente, sob a liderança das elites, em sua maior parte submissas ao pensamento neoliberal, o qual, aplicado à economia, destrói aceleradamente a ordem econômica e social latino-americana. Há maior desmoralização da representação democrática do que a posse dos suplentes de senadores, os novos biônicos?

Tal derrocada se expressa, claramente, pelo domínio dos oligopólios privados em todos os setores fundamentais da economia – que pedem livre mercado para eles, não para os outros. Comprova isso a dificuldade, que se arrasta há anos, em ser aprovada, no Congresso, a regulamentação da Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas. Aprovou-se o esboço geral, mas o diabo continua predominando nos detalhes, sem que haja força capaz de removê-los, para estimular a democracia econômica que minimizaria o massacre da oligopolização e monopolização neoliberal em marcha acelerada sob as bençãos da democracia representativa.

No caso brasileiro, por exemplo, o maior de todos os oligopólios, como denuncia o insuspeito Delfim Netto, é o próprio sistema bancário. Responsável por financiar quase 50% da dívida pública interna, superior a R$ 1 trilhão, mediante o juro real mais alto do planeta, ele condiciona o baixo crescimento da economia, sustentando elevadas taxas de juros por meio de pressões sobre o Banco Central. Delfim chora o leite derramado, porque foi ele que, quando todo-poderoso, facilitou as coisas para os banqueiros. Agora reclama da cobra que criou para morder o capital produtivo, subordinado completamente aos interesses do capital financeiro.

O que se tem de discutir – e isso os jornais se recusam a fazer – é se é legítimo ou não que governos que buscam um compromisso mais efetivo com o povo por meio da democracia direta possam combater veneno de cobra com veneno de cobra. Se os oligopólios dominam todos os setores, de modo a impor seus preços à população, a intervenção sobre eles, a partir de determinado momento, faz-se, evidentemente, em nome do interesse público. Caso contrário, chega-se ao que se vê: uma democracia representativa oligopolizada sob domínio das medidas provisórias, que destrói o Legislativo frente ao Executivo ultra-centralizado, enquanto a federação vai para as cucuias, caso brasileiro. Ou não?

As estatizações que Hugo Chávez promete realizar serão válidas, em última instância, se aprovadas em referendos plebiscitários, de acordo com o que determina a Constituição bolivariana. Se a sociedade decide combater a ação econômica oligopólica privada com a oligopolização estatal, estará impondo a ditadura econômica estatal contra a ditadura econômica privada, certamente, mas mediante vontade popular. E daí? Eis a dialética, que, como disse Marx, é o azimute da burguesia, em curso na Latino-América.

Quem é o ditador, no caso? Chávez, que joga com o plebiscito, ou a oposição a ele, que contribui para a destruição da democracia venezuelana por meio da omissão, ao se recusar a participar das eleições parlamentares a partir de 2005? Chávez estaria construindo o partido único e a conseqüente ditadura do proletariado, à moda leninista, ou o seu partido, com 100% da representação congressual, diante da ausência dos oposicionistas, apenas se afirma como dono absoluto do pedaço? Que culpa tem Chávez, nesse momento, se a oposição viabiliza o uni-partidarismo chavista? Trata-se da maior burrice política de todos os tempos, digna do Guiness.

Exemplo de Tio Sam

Se é para dizer, como destacam Veja e Estadão, que os referendos plebiscitários são instrumentos políticos anti-democráticos – conclusão, evidentemente, questionável – deve-se ressaltar que os governos latino-americanos que se dizem a caminho do socialismo, casos venezuelano, equatoriano e boliviano, não buscam seus exemplos na literatura de esquerda marxista, mas, fundamentalmente, catam a providência na Constituição dos Estados Unidos.

Arnold Schwarzenegger, governador da Califórnia, se encontra no poder porque a população californiana destituiu, via referendo, seu antecessor. Por meio do chamado recall, referendo plebiscitário, a Constituição norte-americana dispõe que o povo pode exercer a democracia direta para tirar do governo quem ele acha que não cumpre as promessas eleitorais. Estaria, também, a Constituição de Tio Sam promovendo o socialismo na Califórnia?

Neste momento, por exemplo, Evo Morales, na Bolívia, prega o referendo para tentar superar o impasse que surgiu em Cochabamba. O governador da província, Manfred Reys Villa, prometeu à população em junho que convocaria referendo para determinar se ela desejaria ou não a autonomia federativa. Diante do movimento de oposição a essa idéia, cada vez mais forte, roeu a corda. O resultado está sendo sangrento. Lutas em praças públicas, a população indígena, indignada, quer a derrubada do governador, o qual, sem condições de morar na capital da província, mudou para Santa Cruz de La Sierra.

Da mesma forma, corre perigo o governador da província de La Paz, José Luíz Paredes. Inicialmente, defendeu a tese do referendo em favor da autonomia. Em face do movimento de resistência oposicionista, tenta voltar atrás. Perderia no voto. Diante da iminência de derrota, se diz vítima de golpe. As promessas de campanha eleitoral feitas pelos adversários de Evo Morales, ao não serem cumpridas – como ocorreram quase sempre, relativamente, com seus antecessores, pois a norma, na democracia representativa latino-ameicana, é prometer e não fazer – produzem a antítese: a democracia participativa via referendo plebiscitário. Evo Morales seria o ditador?

Igualmente, o novo presidente do Equador, economista Rafael Correa Delgado, parte para o referendo a fim de convocar Assembléia Constituinte. Onde está o golpe de Estado em tal decisão, antevisto por Veja, Estadão e Jornal do Brasil?

Na Venezuela, Hugo Chávez, depois de eleito, em 1998, convocou uma série de referendos para decidir sobre questões politicamente capitais, todos fiscalizados por organismos internacionais insuspeitos. Recebeu o ok da população. Teria sido golpe? Em 1999, a própria Constituição bolivariana, depois de aprovada em Assembléia, foi referendada por 56,5% dos votos. Golpe? Em agosto de 2004, Chávez submeteu a plebiscito seu próprio mandato. Resultado: a população confirmou sua permanência com 58,25% dos votos. Taí: golpe político popular plebiscitário!

Certamente, se Lula, influenciado pela onda latino-americana, começar a falar em plebiscito – principalmente se, perdendo a maioria no Congresso, este pudesse impedir reformas que ele propusesse – será chamado de ditador. No entanto, a Constituição cidadã de 1988 prevê o referendo plebiscitário, o qual já foi utilizado para decidir sobre formas de governo: se parlamentarismo, se presidencialismo, com vitória deste nas urnas. Recentemente, realizou-se plebiscito sobre o armamento ou desarmamento da população. Pela lógica dos argumentos do Estadão e da Veja, teria havido golpe.

As Constitutições estaduais, da mesma forma, repetem a Constituição federal: fixam artigos favoráveis ao referendo e ao plebiscito, mas todas, como é o caso da Constituição do Distrito Federal, por exemplo, carecem de regulamentação. E se amanhã, insatisfeito com os rumos dos acontecimentos, algum governador decidisse tomar decisões por referendo, estariam dando um golpe? Incorreria em golpe? Caso a população discordasse de eventual recuo de tal governador quanto à promessa de colocar em marcha o referendo, significaria ser golpista?

As propostas de Morales de destituir políticos do poder mediante plebiscito como forma de resposta ao não-cumprimento de obrigações estão sendo analisadas generalizadamente na América Latina. Gaudêncio Torquato, cientista político conservador, escreve, no Estadão, 17.01, que faria bem a destituição dos que não cumprem promessas, a fim de moralizar o processo político. Só que, conservadoramente, prega tal afastamento de parlamentares por meio de decisões não do povo, mas das mesas da Câmara e do Senado. É o mesmo que amarrar cachorro com lingüiça.

Qual seria mais democrático, destituição à moda Torquato, em que os congressistas julgam a si mesmo, ou à moda Evo Morales, em que os políticos sejam avaliados pelos eleitores?

Aparência e essência

Os jornais brasileiros estão confundindo as bolas. Consideram autoritarismo a nova modalidade de exercício do poder, quando a que existe revela falência de material. Partem para acusações que ainda não estão comprovadas historicamente.

Por exemplo: o jeito autoritário de ser não significa, necessariamente, exercício autoritário do poder. Floriano Peixoto, o ‘Marechal de Ferro’, como mostra o documentário do repórter Jorge Oliveira A esfinge, era autoritário, mas, findo seu mandato, 1892-1894, agiu democraticamente, submetendo-se às eleições e transferindo a faixa ao vitorioso nas urnas, Prudente de Moraes.

Mais: o jeito de ser autoritário de Floriano, que ajudou a consolidar a República, não evitou que saísse do governo bastante popular. Combatera, eficazmente, a inflação, que, naquele tempo, era chamada de carestia. Se a Constituição permitisse referendo e reeleição, teria chances de continuar governando. Mantida a inflação baixa e a satisfação popular alta e existindo esses institutos constitucionais democráticos avançados, talvez continuasse indefinidamente no poder, desde que sagrado nas urnas.

Por acaso, não foi isso que aconteceu com Roosevelt, nos Estados Unidos? O direito de reeleição – subsidiado pela legalidade do referendo – garantido na Constituição norte-americana, permitiu interpretação que lhe assegurou quatro mandatos. Se não morresse no exercício do cargo, provavelmente continuaria na Casa Branca, colocando em prática os ensinamentos de Keynes, seu guru. Sob o keynesianismo – mediante o statemoney, que enterrou o padrão-ouro para tirar o capitalismo da crise de 1929 –, erigiu a economia de guerra, construtora, conforme definiu Eisenhower, do temido Estado industrial-militar norte-americano que ameaça a humanidade.

Da mesma forma, a Constituição parlamentarista francesa, exemplo de democracia para o mundo ocidental, não limita o tempo de mandato. Pelo contrário, o primeiro-ministro, sob o parlamentarismo, governa indefinidamente, desde que aprovado nas urnas pelos franceses. Não se leu ainda condenação a Jacques Chirac por reeleger-se seguidamente, nem a De Gaulle, que, antes, exerceu, com autoritarismo o poder sem deixar de ser democrata.

Aparência-modo de ser autoritário e essência-prática autoritária do poder, não são, portanto, a mesma coisa. Apenas, a primeira desperta ojeriza, quiçá preconceitos racistas, enquanto a segunda, escárnio e revolta e, consequentemente, revoluções.

O fato que os jornais e revistas conservadores temem é que está em curso a síntese revolucionária latino-americana, a revolução pelo voto. Se é possível utilizar a arma do voto, por que lançar mão do voto da arma?

Direita e esquerda inquietas

As preocupações dos reacionários conservadores, de certa forma, batem com as ansiedades dos marxistas. Enquanto os conservadores reacionários vêem golpes de Estado na democracia participativa, que avança no vácuo da desmoralização da democracia representativa, desacreditada pelas corrupções de mensalões e sanguessugas que grassam na realidade latino-americana, os marxistas revolucionários sentem cheiro de revolução no compasso da mobilização popular. Imaginam ser possível repetir o leninismo – quem sabe, como farsa – com a ditadura do proletariado sob partido único centralizado. Pressentem isso na Venezuela, onde Chávez, com seu jeito autoritário de ser, dispõe da riqueza bilionária do petróleo, para fazer política social agressiva, sustentando não apenas bolsa-família, mas, também, dinamizando o avanço do crédito via cooperativismo, para detonar o oligopólio bancário.

De um lado, os conservadores reacionários, e de outro, os revolucionários marxistas, vêem o que gostariam, confundindo desejo com realidade. O partido único de Chávez não é leninista como fruto de montagem ideológica, mas produto da burrice da oposição, que se retirou do processo eleitoral.

Caso os oposicionistas tivessem, pelo menos, 40% do eleitorado na Assembléia Nacional, a proposta de governar por decreto, como faz Lula, aqui, em parte, mediante medidas provisórias, teria dificuldade de ser implementada. Certamente, com o poder total em mãos, conferido burramente pelos oposicionistas, Chávez se vê tentado à aventura autoritária, graças à inteligência da oposição venezuelana. O referendo plebiscitário, no entanto, é o avalista, até agora, da democracia na Venezuela.

Antecipar ditadura do proletariado ou decretação do autoritarismo parlamentar sem saber, antes, o que dirá o povo venezuelano, nas urnas, é apostar que a sociedade optará pela eliminação da democracia que ela própria aprovou em referendo. Os editorialistas de Veja, Estadão e JB padecem, neste momento, de ejaculação jornalística precoce.

Indiscutivelmente, os papéis estão trocados na mídia capitalista. Quem age contrário à sociedade, como verdadeiro ditador, é considerado democrata, caso de G. W. Bush, quando insiste em enviar mais 21,5 mil soldados ao sumidouro de vidas humanas em que se transformou o Iraque à revelia da opinião pública americana. Mas, quem transforma a consulta à opinião pública em arma estratégica para governar, agindo como democrata, é tachado de ditador e autoritário, casos de Chávez, Morales e Correa Delgado.

Bush, como os velhos reis imperialistas, em nome do imperialismo norte-americano, vestido da capa democrática, pode usar o poder do dólar sem lastro para dinamizar a indústria bélica e espacial, a fim de intensificar a guerra em nome da paz. Mas, o socialismo, como arma da paz, colocado em marcha por Chávez via plebiscito, pressuposto básico da própria Constituição norte-americana, seguida pela Constituição bolivariana, é considerado autoritarismo e populismo. Os neoliberais tomaram-se de pavor frente ao próprio aperfeiçoamento democrático contido na bíblia capitalista.

Surpresa: pecado da ausência

Nesse contexto, destacar, como fez Paulo Moreira Leite – excelente texto – em seu despacho para o Estadão, de Caracas, em 12.01, que os venezuelanos ficaram surpresos com as propostas socialistas de Hugo Chávez, é questionável. Muito provavelmente teria sido pego de surpresa não o povo venezuelano, mas o próprio Paulo Moreira Leite.

Há meses, Hugo Chávez, em seu programa dominical, que se estende por toda a tarde, não pára de falar em socialismo. Marx, Engels, Lênin, Trotski e Fidel Castro são propagandeados na televisão. O presidente mandou distribuir 26 milhões do clássico da literatura hispânica, Dom Quixote, nas escolas, em versão para crianças e jovens. A TV Comunitária, em Brasília, divulga semanalmente os discursos de Chávez e seus encontros com as diversas categorias sociais. Em todos, a proposta socialista é explícita.

Onde a surpresa de ele propor, agora, a República Socialista da Venezuela no lugar da República Bolivariana da Venezuela? Se o propósito é o socialismo, que, há tempos, se transformou em peça de propaganda do presidente, por que a sociedade venezuelana se sentiria surpresa e traída?

Somente a ausência total do jornalismo brasileiro da realidade latino-americana explicaria o estado de espírito demasiadamente excitado do repórter do Estadão, influenciado pelo alarmismo difundido pela cobertura jornalística das agências norte-americanas, compradas, sem descontos ideológicos, pela mídia nacional, relativamente ao avanço da democracia participativa venezuelana, que condenam, confundindo-a com anti-democracia pelo seu caráter mais radicalmente democrático. Moreira Leite chegou à Venezuela com o bonde andando e achou que embarcava no início da História.

Para que serviriam, então, os 63% dos votos que Chávez alcançou em sua reeleição, senão para propor mudanças constitucionais conseqüentes à estratégia socialista que prega incansavelmente dia e noite, brandindo, nas mãos, o livro constitucional?

No domingo, 14, em novo despacho de Caracas, Moreira Leite, ao entrevistar Teodoro Petkoff, jornalista e ex-candidato à presidência da Venezuela, vê que não é bem assim. Seu entrevistado, sem surpresa, analisa a proposta socialista como uma versão difundida há mais de um ano e na qual não acredita por representar, não o socialismo, mas o nacionalismo. Corroborando esse ponto de vista, o consultor econômico internacional Mark Mobius, da Corretora Franklin Templeton Investiment, dos Estados Unidos, falando no domingo, do Vietnã, à repórter Claudia Trevisan, da Folha de S. Paulo, dizia que todo o mercado sabia da jogada socialista e estatizante de Chávez. Onde a surpresa?

Destacar como principal em reportagem sobre o país o fato de que o povo se vê surpreso pelo discurso de Chávez, como fez Paulo Moreira Leite, em sua estréia no cenário pós-eleitoral venezuelano – porque no pré ninguém estava lá – é não apenas forçar a barra, mas imaginar a sociedade venezuelana demasiadamente infantil para incorrer-se ingenuamente em tautologias.

Como destacou um dos entrevistados de Moreira Leite, os venezuelanos e venezuelanas não votaram influenciados por discursos mas por sentimentos efetivos. São tais sentimentos que o jornalismo precisará explorar exaustivamente para entender a atual etapa histórica da Venezuela.

Qual o efeito psicológico desatado no inconsciente coletivo pelos referendos populares que têm sido praticados para solução de controvérsias políticas históricas sem que haja derramamento de sangue? Naturalmente, é o de provocar discussão política com o mesmo apetite com que se discute futebol. São os fundamentos dessa paixão coletiva que precisam ser investigados em amplas reportagens. Caso contrário, chegando depois dos acontecimentos, quem fica surpresa não é a população, mas o repórter.

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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília, DF