Quem já teve a vivência da caserna conhece uma expressão bastante para fundamentar a aplicação de punições ao subordinado. O superior a este pergunta o porquê de ter adotado tal ou qual atitude e, em seguida, aplasta-o dizendo: ‘Explica, mas não justifica!’ Assim penso no que tange às questões que estão sendo levantadas pelo douto procurador da República Marco Aurélio Dutra Aydos, autor da instigante reflexão intitulada ‘Desaviso ou sinal de alerta?’, publicada no Observatório da Imprensa de 3 de fevereiro de 2004 – que, modo certo, parece reproduzir a linha de raciocínio do procurador do Estado da Bahia Antonio Augusto Araújo, publicada no Observatório da Imprensa de 9 de dezembro de 2003 sob o título ‘Falsos defensores de direitos humanos’.
Não defendo – e jamais defenderei – que um pobre tenha o direito de matar um rico. Adverso que sou, figadalmente, à pena de morte, principalmente tomando em consideração a possibilidade de se repetirem casos como o dos Irmãos Naves e, por outro lado, considerando a advertência de Kelsen quanto a não serem ontologicamente diferentes a execução da pena capital (que, mesmo na Idade Moderna, podia assumir contornos horrendos, como se pode verificar com a execução do assassino de Guilherme de Nassau, o Taciturno, ou com o suplício da roda, referido tanto por Théophile Gautier em O capitão Fracasso quanto por Friedrich Schiller em Os bandoleiros) e um homicídio, estando a distinção a cargo exclusivamente do ordenamento jurídico, jamais poderei defender que alguém mate a outrem, exceto nas situações-limite postas na legislação penal.
Não defendo – e jamais defenderei – que o fato de alguém ser um excluído social lhe dê o direito de agir à margem da lei. Até porque se é verdade que a questão social não é um caso de polícia – como disse não um marxista, um comuna, mas ninguém menos do que Getúlio Vargas – também é verdade que nem todo caso de polícia se resolve pela questão social. Mas também não posso negar – e isto não é insensibilidade diante da dor alheia, deixo isto muito claro – que é mais fácil verificar a existência da explicação para a atitude hostil de quem já é hostilizado do que para a atitude de quem não é hostilizado.
Terrorismo?
Vamos distanciar um pouco os exemplos. A mulher do general George Armstrong Custer tinha todos os motivos do mundo para desejar que até a última geração fossem destruídos os sioux que mataram seu marido, com apenas 37 anos, e o respectivo exército em Little Big Horn, em 1876. Agora, teria sido admissível o fuzilamento do líder cheyenne Chaleira-Preta, juntamente com a mulher deste, no ano de 1868, por ordem deste mesmo general, considerando que aquele líder sempre tentara fazer a paz com o homem branco e ainda fora morto desarmado? A mutilação dos soldados pelos cheyennes e sioux no Massacre Fetterman causou uma nítida impressão ao seu comandante.
Mas certamente deveria ignorar que, em 1863, em Sand Creek, os soldados do coronel Chivington mutilaram inclusive mulheres e crianças cheyennes e arapahos, que ali estavam pacificamente. Isto não foi colhido em nenhum autor de formação marxista – que, aliás, não é minha formação, o que digo desde logo para evitar mal-entendidos –, mas numa obra considerada clássica, intitulada Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown, publicada em 1970, durante o governo republicano de Nixon, em plena Guerra do Vietnã – e, ao que me consta, tal governo, que mandava reprimir com força as manifestações contrárias à continuidade da guerra (como o ilustrou o cineasta e veterano daquela mesma conflagração, Oliver Stone, em seu Nascido em 4 de julho, EUA, 1991) e apoiou explicitamente a instalação de regimes como o do general Pinochet, não determinou a apreensão dos exemplares da obra, com o que não se a poderia tachar de propaganda antiamericana.
Claro que – para evitarmos a mutatio controversiae – não estou entrando na polêmica acerca de eventual autoridade moral dos EUA para falarem sobre massacre de índios no Brasil, até porque não tiveram uma personagem da estatura de um marechal Rondon etc. etc. etc. Este é um outro debate. O aspecto para o qual estou chamando a atenção, com o exemplo de que me vali, é outro: é o de que, realmente, a violência sofre valorações diferentes, de acordo com aquele que a pratica e de acordo com aquele que a sofre. E que isto não implica, de maneira nenhuma, justificar a prática da violência.
Mas existem situações em que ela se explica e situações em que ela não se explica, situações em que ela se explica mas não se justifica e situações em que ela se justifica. A atuação da Resistência Francesa à ocupação alemã não foi marcada exatamente pela ausência de violência: houve ataques suicidas, explosões de bomba em trens, nos quais viajavam pessoas inocentes… Terrorismo? Mas os alemães estavam ocupando a França, era guerra etc. etc. etc. E os mexicanos em luta contra os americanos no Texas? Os americanos, no caso, não seriam invasores? Mas chega a ser comovente, no filme Álamo, dirigido e estrelado por John Wayne, a cena em que, podendo retornar à tranqüilidade de suas famílias, os soldados resolvem ficar e defender o baluarte americano em terras mexicanas.
Desapego
Marx não veria com muito entusiasmo, penso (como Orwell também não viu, qual se verá adiante), a atuação de um Mohandas Karamchand Gandhi, que, assim como Tolstoi – de quem era amigo pessoal –, tinha uma séria preocupação com a igualdade ontológica entre os seres humanos e, conseqüentemente, com a desigualdade social que, nos tempos hodiernos, aparece como exclusão:
‘O problema dos intocáveis figurou, naturalmente, entre os numerosos assuntos que debatemos com nossos amigos em Ahmedabad. Não dissimulei que aproveitaria a primeira ocasião que se oferecesse para admitir ao ashram um candidato intocável, com a condição de que fosse digno de fazer parte dele’ (Minha vida e minhas experiências com a verdade, in Claret, Martin, org., Gandhi por ele mesmo, São Paulo, Martin Claret, 1993, p. 124).
Esta passagem de Siddartha Gautama sobre a compaixão mostra-se fundamental para a compreensão do combate movido por Gandhi ao sistema de castas: ‘O sol surge no oriente e dispersa as trevas do mundo sem detrimento ou favoritismo com determinada região’ (A doutrina de Buda, trad. Jorge Anzai, São Paulo, Martin Claret, 2003, p. 28). Schopenhauer expôs bem a compaixão como fundamento da ética:
‘La participación el los males de otro, participación inmediata, sin apoyarse en ninguna argumentación ni tener necesidad de ella, esta es la fuente pura de toda caridad, de la caritas, de la agath, de esa virtud que tiene por maxima: omines, quantum potes, juva, y de la que fluye todo lo que prescribe la ética bajo el nombre de deberes de virtud, deberes de amor, deberes imperfectos. Esta participación inmediata, instintiva, en el dolor ajeno, es decir, la compasión, es la única fuente de tales acciones, cuando tienen valor moral, es decir, estan limpias de todo motivo egoísta’ (Los dos fundamentos de la ética – el fundamento de la moral, trad. Vicente Romano Garcia, Buenos Aires, Aguilar, 1965, p. 168).
E mais adiante:
‘La compasión ilimitada hacia todos los seres vivos es la garantia más sólida y segura de la conduta moral y no necesita de ninguna casuística’ (op. cit. p. 179).
Não entraremos aqui em particularidades da vida de Schopenhauer, sobretudo a sua fúria em relação aos filósofos idealistas, que entraria em aparente contradição com o que se encontra estampado nestas passagens. Estas apenas interessam no sentido de permitir um aclaramento do pensamento de Gandhi e de verificar não serem suas premissas inalcançáveis ao pensamento ocidental, nada mais do que isto. Além do mais – retornando ao tema da contradição aparente –, falando embora sobre a justificação da servidão em Santo Tomás de Aquino, disse Joaquim Carlos Salgado:
‘Não se deve negar que esses deslizes ocorrem comumente com os grandes pensadores que se adiantam ao seu tempo, mas não resistem à tentação de justificar a sociedade em que vivem quanto a situações empíricas relevantes. Ocorreu com Aristóteles ao justificar a escravidão, com Ulpiano, ao admitir a igualdade dos que nascem e, ao mesmo tempo, regulamentar a escravidão; a Kant, ao negar à mulher e a certas pessoas, segundo suas atividades, direitos políticos e a Hegel ao justificar o Estado prussiano. Essa dificuldade de conciliação de suas vidas, enquanto produzidas numa determinada classe, não relevam diante da grandiosidade de seus sistemas e do que nos legaram’ (A idéia de justiça em Kant – seu fundamento na liberdade e na igualdade, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1986, p. 70).
A equiparação de Orwell entre Pétain e Gandhi, encontramo-la em um volume intitulado Lutando na Espanha. Em Orwell (Notes on Nationalism, 1945, in
‘Não é exigido, novamente, que os indianos se devam abster da violência em sua luta contra os ingleses. A literatura pacifista é pródiga em observações equivocadas que, se significam algo, parecem sugerir que estadistas ao estilo de Hitler são preferíveis aos do estilo de Churchill, e que a violência é talvez perdoável se for suficientemente violenta. Após a queda da França, os pacifistas franceses, confrontados por uma verdadeira escolha que seus colegas ingleses não tiveram que fazer, em sua maioria correram para os braços dos nazis, e na Inglaterra parece ter havido alguns pequenos acobertamentos de irmandade entre a Associação em Compromisso pela Paz e os Camisas Pretas. Escritores pacifistas escreveram louvores a Carlyle, um dos pais intelectuais do fascismo. Em tudo e por tudo não é difícil sentir que o pacifismo, como aparece por toda uma seção da intelligentsia, é secretamente inspirado por uma admiração pelo poder e uma crueldade bem sucedida. O erro foi cometido ao se ligar esta emoção a Hitler, mas poderia ser facilmente redirecionada’.
E, especialmente sobre as razões por que rejeitava o pensamento de Gandhi, assim se manifestou Orwell (Reflections on Gandhi, 1949, in
‘Se ele era também um homem adorável e se seus ensinamentos podem fazer muito por aqueles que não aceitam as crenças religiosas em que são fundados, nunca senti plena certeza. Nos últimos anos tem estado na moda falar sobre Gandhi como ele não só fosse simpatizante do movimento de esquerda no Ocidente, mais ainda fosse parte dele. Anarquistas e pacifistas, em particular, chamam-no para suas hostes, notando apenas que ele se opunha ao centralismo e à violência estatal e ignorando a tendência idealista, anti-humanista, de suas doutrinas.
Alguém deveria, penso, perceber que os ensinamentos de Gandhi não podem ser emparelhados com a crença de que o homem é a medida de todas as coisas e nossa missão é fazer a vida valer a pena ser vivida neste mundo, que é o único mundo que temos. Elas só fazem sentido para quem creia que Deus existe e que o mundo de objetos sólidos é uma ilusão da qual temos de escapar. Vale tomar em consideração a disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que – embora ele não insistisse que cada um de seus seguidores tivessem de observar cada detalhe – ele considerava indispensável se alguém quisesse servir a Deus ou à humanidade.
Em primeiro lugar, nada de comer carne e, se possível, nenhum alimento animal, sob nenhuma forma (Gandhi mesmo, por motivos de saúde, teve de tomar leite, mas parece ele ter sentido isto como uma apostasia). Nada de álcool nem tabaco, e nenhumas pimentas ou condimentos mesmo de origem vegetal, desde que a comida não deveria ser ingerida pelo seu paladar, mas somente para preservar a força do homem. Em segundo lugar, se possível, nenhum intercâmbio sexual. Se este ocorresse, deveria ser pela simples função de procriar e presumivelmente por longos intervalos. Gandhi mesmo, por volta dos trinta anos, fez o voto de bramahcharya, que significa não só a completa castidade, como a eliminação do desejo sexual. Esta condição, parece, é difícil de alcançar sem uma dieta especial e freqüentes jejuns. Um dos perigos de beber leite é que é apto a fazer explodir o desejo sexual. E finalmente – este é o ponto cardeal – para o aspirante à bondade não deve haver amizades próximas nem amores exclusivos. Amizades próximas, diz Gandhi, são perigosas, porque ‘os amigos reagem uns aos outros’ e pela lealdade a um amigo alguém pode ser conduzido a agir erradamente. Isto é inquestionavelmente verdadeiro. Ainda, se alguém pretende amar a Deus ou amar à humanidade como um todo, não pode dar preferência a nenhum indivíduo singular. Isto novamente é verdade, e marca o ponto em que as atitudes humanista e religiosa cessam sua conciliabilidade. Para um ser humano comum, o amor não significa nada se não significar amar algumas pessoas mais que as outras.
A autobiografia deixa alguma incerteza se Gandhi se comportava com pouca consideração por sua mulher e filhos, mas de qualquer sorte deixa claro que em três ocasiões ele preferiria deixar sua mulher ou uma criança morrer a administrar o alimento animal prescrito pelo médico. É verdade que a morte ameaçada nunca realmente ocorreu, e também que Gandhi – com, alguém recorda, uma boa porção de pressão moral na direção oposta – sempre deu ao paciente a chance de permanecer vivo ao preço de cometer um pecado: ainda assim, se a decisão fosse somente dele, ele proibiria o alimento animal quaisquer que pudessem ser os riscos. Deve haver, diz ele, algum limite àquilo que faremos para permanecermos vivos, e o limite está bem do lado deste caldo de galinha. Esta atitude é, talvez, nobre, mas no sentido que – penso – a maioria das pessoas daria à palavra, é inumana. A essência do ser humano é que alguém não aspira à perfeição, é que alguém está às vezes desejoso de cometer pecados em nome da lealdade, que alguém não leva o ascetismo ao ponto onde a amizade se torna impossível, e que alguém está preparado no fim para ser derrotado e quebrado pela vida, que é o preço inevitável de sobrepor o amor por um indivíduo ao por todos os outros indivíduos humanos. Sem dúvida o álcool, o tabaco e quejandos são coisas que um santo deve evitar, mas a santidade é também uma coisa que seres humanos devem evitar.
Há uma replica óbvia a isto, mas dever-se-ia ser cauteloso em fazê-la. Nesta época de ascensão da ioga, é muito prontamente admitido que o ‘desapego’ não é só melhor que uma aceitação plena da vida terrena mas que o homem comum somente o rejeita porque é muito difícil: em outras palavras, que o ser humano médio é um santo fracassado. É duvidoso se isto é verdade. Muitas pessoas não desejam realmente ser santas e é provável que muitos que chegam ou aspiram à santidade nunca sentiram muita tentação por serem seres humanos. Se alguém pudesse segui-los em sua trilha psicológica, descobrir-se-ia, creio, que o principal motivo para o ‘desapego’ é um desejo de escapar da dor de viver, e sobretudo do amor que, sexual ou não, constitui um trabalho difícil.
Mas não é necessário aqui discutir se o projeto idealista ou humanista é ‘mais elevado’. O ponto é que eles são incompatíveis. Deve-se escolher entre Deus e o Homem, e todos os ‘radicais’ e ‘progressistas’, do mais suave liberal ao mais extremo anarquista, escolheram, de fato, o Homem. Entretanto, o pacifismo de Gandhi pode ser separado em alguma medida de seus outros ensinamentos. Seu motivo era religioso, mas ele reivindicou, também por isto, a condição de uma técnica definitiva, um método hábil a produzir resultados políticos desejáveis.’
Sem quaisquer proselitismos de natureza religiosa, pensamos que analisar um pensamento sem lhe conhecer os pressupostos é analisá-lo guiado pela opinião. Com todo o respeito e admiração que particularmente nutrimos pelo grande escritor, cumpre recordar aqui Platão:
‘De los que perciben muchas cosas bellas, pero no ven el bello en si, ni pueden seguir a outro que a ello los conduzca, y asimismo ven muchas cosas justas, pero no el justo en sí, y de igual manera todo lo demás, diremos que opinan de todo, pero que no conocen nada de aquello sobre que opinan’ (La república, trad. José Manuel Pabon & Manuel Fernandez Galiano, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1949, t. 1, p; 170); também meu ‘Platão, conhecimento e opinião’, neste Observatório (9/12/03)
Entre os budistas, a idéia do desapego se mostra como básica, justamente porque, para Siddartha Gautama, ‘a causa do sofrimento humano encontra-se, sem dúvida, nos desejos do corpo físico e nas ilusões das paixões mundanas’ (op. cit. p. 41). A crítica dirigida por Orwell a Gandhi, no particular, implica uma universalização do modo ocidental de compreender o mundo.
Pacto colonial
Não dizemos qual está certo ou errado: apenas tocamos no problema de se criticar um sistema de valores partindo do pressuposto de que o referencial valorativo a ser tomado estaria acima das contingências culturais, sem antes verificar se tal pressuposto não sofreria qualquer contradição. Observe-se, por oportuno, que a mesma idéia de desapego como própria do homem superior também se faz presente no pensamento ocidental via Platão:
‘El verdadero amante del conocimiento está naturalmente dotado para luchar en persecución del ser, y que no se detiene en cada una de las cosas que pasan por existir, sino que sigue adelante, sin flaquear ni renunciar a su amor’ (op. cit. p. 183).
Não pensamos que o projeto de Gandhi para a Índia independente pudesse ser classificado como um retrocesso, ao contrário do que sustentou o professor José Cretella Júnior (Comentários à Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, v. 2, p. 990), ao deplorar que a Constituição de 1988 tenha estabelecido disposição referente à proteção do trabalhador em face da automação, mas como a própria consciência de que de nada adiantaria proclamar a independência da Índia se continuassem os hábitos e o estilo de vida dos colonizadores:
‘Países dos mais adiantados do mundo, como os Estados Unidos, o Japão, a França, a Alemanha e a Grã Bretanha consagram a automação, disciplinando-a, protegendo-a. Gandhi, na Índia, fez propaganda da tecelagem à mão, pregando a destruição dos teares ingleses, atrasando o país de algumas décadas ou de um século’.
Neste particular, Celso Ribeiro Bastos & Ives Gandra da Silva Martins ofertam exegese mais próxima do sentido que nos parece ter o inciso XXVII do artigo 7º da Constituição brasileira de 1988:
‘Não nos parece que a Constituição,ao proteger o trabalhador em face da automação, tenha querido trazer qualquer óbice ao desenvolvimento tecnológico do país, mesmo porque a expansão nesta área é princípio constitucional, encartado no art. 218 e parágrafos da Constituição. O que a Constituição pretende é não deixar ao desamparo aqueles empregados que tenham sido colhidos por esse processo de automação’ (Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1989, v. 2, p. 488).
Uadi Lammego Bulos também parece identificar com clareza a razão de ser do dispositivo em tela:
‘A matéria presente no dispositivo é bastante inovadora, pois prenuncia extraordinário avanço tecnológico. A robótica, a cibernética, as transformações no campo da informática certamente geram problemas nas relações econômicas e sociais. Basta ver a LER – lesão por esforço repetitivo –, doença inerente à automação e que deve ser observada pelos empregadores em geral, a fim de minorar os efeitos negativos do fenômeno’ (Constituição Federal anotada, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 446).
Mas, voltemos a Gandhi.
Na realidade, considero, mesmo, que Gandhi (Op cit. p. 133.) sabia que a emancipação da Índia, no plano estritamente jurídico, não se tornaria uma realidade no plano político e econômico se não houvesse uma ruptura com estes hábitos:
‘A nossa finalidade era chegarmos a vestir-nos inteiramente com tecidos fabricados pelas nossas mãos. Renunciamos, desde então, à utilização de tecidos industriais e todos os membros do ashram resolveram usar apenas tecidos feitos a mão exclusivamente feitos de fio indiano’.
Mas, de qualquer sorte, o debate se coloca, aqui, a partir do exemplo de Gandhi com a máquina de fiar, tendo em vista a fascinação que a tecnologia provoca, como algo realmente mágico, na perpetuação da metrópole independentemente de vir a ocorrer uma emancipação formal, política. Inclusive o denominado ‘cientificismo’ compreendido como uma espécie de religião laica pode se apresentar como um dos elementos consolidadores do pacto colonial (Azevedo, Plauto Faraco, Justiça distributiva e aplicação do Direito, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 1983, p. 43).
Leis brandas
E nem se diga que o desenvolvimento tecnológico e a aposição da tarja de primitivismo e crendice no saber do colonizado não teriam nada que ver com a consolidação do pacto colonial. O exemplo do patenteamento de genes de ervas medicinais é paradigmático. Efetivamente, durante anos a medicina alopática foi considerada como a única cientificamente respeitável, posto como crendice o conhecimento milenar que dentre os silvícolas se acumulou em torno das virtudes medicinais de determinadas ervas. E agora? Agora, com a possibilidade de patenteamento dos genes, os que descobriram as aludidas virtudes medicinais poderiam, até mesmo, ser considerados, do jeito que as coisas andam, como devedores de royalties…
É que tal conhecimento ainda não tinha sido ‘domesticado’ pelos laboratórios das empresas (Lima, Lucila Fernandes, ‘Convenção da Biodiversidade e propriedade intelectual: a questão dos povos indígenas e dos conhecimentos tradicionais’, Revista de Direitos Difusos, São Paulo, v. 9, p. 1.244-1.246, out 2001) e, além do mais, pudesse ele ser reconhecido como conhecimento válido e não como mera crendice, cairia um dos argumentos racionalizadores da própria exploração colonial, com os famosos estereótipos (Camargo, Ricardo Antonio Lucas, Interpretação jurídica e estereótipos, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 40-41] ‘seres inferiores’, ‘incapazes de produzir ciência ou qualquer conhecimento válido’, ‘mentalidade pré-lógica’ e outros tais, bem refutados por Claude Levi-Strauss (El pensamiento salvaje, trad. Francisco González Arámburo, 1994, p. 388). Alhures foi referido, tendo em vista a comparação entre a cultura da rapina e a cultura do aproveitamento dos recursos naturais sem a destruição do meio ambiente que ‘Washington Peluso Albino de Souza, respondendo a intervenção do líder Álvaro Tukano, no 3º Curso Regional de Direitos Humanos, realizado no Hotel Saint Paul, em Brasília, em 27 de outubro de 1995, observou este traço característico das culturas autóctones da América, todas elas detentoras de conhecimentos que, mais tarde, após a aniquilação de seus integrantes, vêm a ser apropriados pelos grandes grupos econômicos’ (Camargo, Ricardo Antônio Lucas, Direito Econômico – aplicação e eficácia, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 2001, p. 290-291, nota 911).
A Lei dos Crimes Hediondos está em vigor há mais de uma década. Vem sendo aplicada com todo o seu rigorismo. Terá servido para diminuir a criminalidade? Especialmente aquela a que ela mesma se refere? Os periódicos e a mídia eletrônica informam exatamente o contrário, embora majoritariamente bradem contra a brandura das nossas leis. Agora, se fosse feita uma enquête, com toda a certeza, veríamos que a maior parte dos brasileiros a aprovaria, como aprovaria a pena de morte.
Rótulos
Justamente porque a concepção mais primitiva – sem qualquer conotação pejorativa, mas utilizando o sentido de primordial, original – da pena é a de uma vingança social contra o infrator. Não seria uma postura demagógica ‘em prol dos direitos humanos’ que encontraria eco no Brasil, mas precisamente a pregação demagógica contrária: ‘contra os direitos humanos’, porque identificados com ‘direitos dos bandidos’. E observe-se – isto nada tem de ‘marxismo’, não, faço bem claro este ponto – que enquanto a criminalidade violenta é vista com horror a denominada ‘criminalidade dourada’ é vista até mesmo com simpatia pela esperteza dos seus protagonistas, principalmente em casos de sonegação e de crimes contra a economia popular.
Cabe trazer, também, o depoimento de Miguel Reale Júnior sobre os denominados crimes de colarinho branco: ‘Essa criminalidade sofisticada, lastreada no poder econômico e político, gera até mesmo a sensação de impotência. (…) Ressalta-se também o perigo dessa criminalidade que não alcança repúdio público, vista até mesmo com notória benevolência, malgrado atinja bens jurídicos supra-individuais ou coletivos’ (‘Crime organizado e crime econômico’, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 13, p. 188, jan/mar 1996). Esta questão, diga-se de passagem, também foi abordada pelo ilustre membro do Ministério Público Federal em outra ocasião, no texto ‘Impunidade, presepadas, prisão preventiva e magnitude da lesão’
Estarei aqui fechando o debate, incidindo em autoritarismo? Pelo contrário. Até espero contestação. Mas contestação que não me aponha rótulos dos quais não sou merecedor – ‘esquerdista’, ‘comunista’, ‘partidário’, ‘defensor de bandido’ -, menos pela adjetivação em si mesma e mais pela necessidade de que não se vicie a compreensão das minhas premissas. Digo isto porque um autor do Rio de Janeiro, certa feita, ao citar um livro meu, apôs-lhe um rótulo e isto prejudicou seriamente o debate das minhas premissas, obrigando-me a escrever 35 páginas para demonstrar que o preconceito o fizera não ler meu livro e citá-lo en passant, acoimando-o de ‘ideológico’, no sentido de panfletário.
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(*) Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais