Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Reforma universitária em menu degustação

O pessoal do governo Lula tem o costume de tirar do forno e servir ao público, pela mídia, idéias que ainda não terminaram de assar – ou estão mais para cruas do que para cozidas.

Pode ser para mostrar serviço, pode ser para ver se pega, pode ser por disputa de poder. Qualquer que seja o motivo dessa precipitação, ela cria um problema complicado para a imprensa.

Os jornais, principalmente, não podem deixar de publicar o que lhes foi oferecido como novidade importante, notícia – pão quente, em suma. Mas não têm como aprofundá-la na medida das necessidades do leitor porque, para insistir nas metáforas culinárias, falta carne debaixo do angu.

E o frustrado consumidor não sabe a quem culpar por terem lhe aguçado o apetite e depois oferecido um magro menu degustação: o maître ou o chef.

O mais recente prato do dia, nesse sentido, é a ambiciosa reforma universitária que já se sabia estar nos planos do Ministério da Educação. Na segunda-feira da semana passada, o MEC convocou o reportariado para que tomasse conhecimento, em entrevista com o ministro Tarso Genro, do pacote de mais de 20 propostas que poderão fazer parte do projeto da Lei Orgânica do Ensino Superior, a ser enviado ao Congresso em novembro, conforme prometido.

Cassino da Caixa

‘Poderão fazer’ não é modo de dizer. Lê-se no Globo: ‘O ministro ressalvou que todas as medidas poderão ser alteradas durante a discussão pública nos próximos meses’.

Se fosse isso, tudo isso e nada mais do que isso, perfeito. A imprensa é o canal adequado para os governos democráticos submeterem as suas intenções ao grande público, antes de remetê-las, já refinadas, ao Legislativo.

Ocorre que não está claro se a discussão dentro do governo já terminou, o que lhe permitiria passar a palavra aos setores interessados da população. Há razões para suspeitar que o debate interno está longe de ter se esgotado.

Isso não é bizantinice: uma coisa é a imprensa intermediar o diálogo entre Estado e sociedade, a partir de anteprojetos aprovados na alta administração, outra – muito diferente para o tratamento jornalístico do assunto – é autoridades se valerem da imprensa para provocar um debate capaz de fortalecer as suas posições na queda-de-braço com os seus pares. Em regra, nem a imprensa, muito menos o leitor, sabem de que coisa se trata em cada caso.

Do que se anunciou da proposta de reforma universitária – a primeira dessa amplitude desde 1968 – a parte mais suculenta tem a ver com dinheiro, o sistema de financiamento do ensino superior federal. Dentro disso, a imprensa destacou a eventual criação de uma loteria para engrossar um fundo que garantirá a autonomia financeira das universidades, porque os seus recursos não estarão sujeitos a contingenciamentos.

‘Loteria’ é mais chamativo do que ‘fundo’, o que deve ter pesado na escolha do que puxar para as manchetes – à parte o fato indiscutível de que a idéia de ampliar o já movimentado cassino da Caixa Econômica Federal merece a atenção que a mídia lhe deu.

(São nove os sorteios existentes. Somados, informou oportunamente O Estado de S.Paulo, arrecadaram 3,5 bilhões de reais em 2003. Do total de apostas, o Imposto de Renda fica com algo entre 11,48% e 16,96%, conforme o tipo de jogo. As despesas operacionais consomem de 17,39% a 30%. Os prêmios variam de 26,09% a 30,81%. Para financiar programas sociais e similares sobram qualquer coisa entre 26,09% e 36,85%.)

Eleições diretas

Ou o governo ainda não sabe, ou não lhe foi perguntado, como será e quanto renderá para o que se quer que sirva essa modalidade lotérica que bem poderia se chamar ‘Uniloto’. Isso ainda não é o mais grave.

Tampouco se perguntou ao titular da Educação, à maneira de Garrincha, se já está tudo combinado com a Fazenda.

Como sempre acontece quando repórteres e editores, salvo os dos cadernos econômicos, lidam com números, a obscuridade foi praticamente geral na questão do novo fundo.

Pelo que deu para entender com algum esforço, lendo, relendo e combinando os textos do Estado e do Globo – quem passou por cima da cobertura surpreendentemente esquálida da Folha não perdeu nada –, o governo pretende dar mais dinheiro para as universidades gastarem em investimento, pessoal e, principalmente, custeio.

Pela Constituição, o governo federal deve gastar com educação 18% do orçamento. (Deve, mas gasta 10%, e olhe lá, informa o Estado.) Hoje em dia, as universidades recebem pouco menos de dois terços disso, ou 5,4 bilhões de reais. A idéia é elevar essa parcela para três quartos, ou cerca de 1 bilhão de reais a mais.

O que significa – e o noticiário ignorou – que o MEC terá menos recursos para gastar com a Capes, o Fundef (a ser estendido ainda por cima para o ensino médio sob a sigla Fundeb) e outros programas, incluindo o que se propõe terminar com o analfabetismo – a menina dos olhos, como se diz, do presidente Lula.

Isso porque a grana a mais para as instituições federais de ensino superior – IFEs, no jargão do setor – sairá do orçamento do MEC. E nesse orçamento não entra o produto de loteria alguma. O que vier da ‘Uniloto’ será lucro para as universidades, mas não encompridará o cobertor do MEC.

De novo, isso não é bizantinice. O leitor em geral pode não saber, mas dinheiro é o de que mais fala o pessoal do ramo quando discute os rumos da universidade pública no Brasil.

Outras inovações radicais do pacotão são a criação de um ciclo básico de dois anos comum a todos os cursos de cada uma das três áreas gerais do conhecimento – ciências humanas, exatas e biomédicas – e a transformação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de facultativo para obrigatório.

Os especialistas aprovaram com distinção e louvor a idéia do ciclo básico, que o Globo ignorou e que o Estado deu bem, dois dias seguidos, dando mais destaque apenas para a questão da loteria. O Estadão ainda lembrou que o sistema já existe na USP, no curso de Letras e na Escola Politécnica, e que uma variante (de um ano) será adotada no campus da zona leste paulistana que começará a funcionar no ano que vem.

Em compensação, o Estado só mencionou o Enem em um quadrinho que relaciona ‘algumas das propostas do MEC’, ao passo que o Globo fez a lição direito:

‘O MEC quer tornar o Enem obrigatório para todos os alunos que estiverem concluindo o ensino médio e exigir que passe a contar pontos nos processos seletivos de todas as instituições federais de ensino. Atualmente o Enem é um teste voluntário e conta pontos nos vestibulares de 436 das 2.084 instituições públicas e privadas do país. Torná-lo obrigatório é uma tentativa de indicar o tipo de ensino médio que o governo deseja nas salas de aula’.

O Estado e o Globo limitaram-se a registrar que o MEC quer que os reitores das universidades federais venham a ser escolhidos em eleição direta – o que valeria um materião à parte – e que os atuais departamentos em que se organizam as universidades sejam substituídos por estruturas ligadas a ramos de conhecimento, como se os departamentos não o fossem.

Explicação do presidente

Começou-se este comentário apontando a sofreguidão com que as autoridades federais lançam ao ar idéias em estado bruto, ou quase – e as dificuldades que isso traz para a mídia. Ainda em relação à universidade, é o caso também de um disparo feito pelo ministro da Casa Civil, José Dirceu, que a Folha deu em um canto de página.

Poderia ter dado em manchete ou qualquer coisa entre esses dois extremos: por sua natureza gelatinosa, incorbúvel e imbafefe, esses fatos podem ser tratados como de parar as máquinas ou como factóides que só vêm à luz do dia por causa de quem os provocou.

O que o ministro propôs foi nada menos do que uma ‘constituinte universitária’ para debater a reforma. Citando:

‘O grupo, segundo Dirceu, seria formado por alunos, professores e funcionários das universidades, públicas e privadas, de todo o país. A participação seria feita por meio de delgados, que formulariam uma proposta final de reforma do ensino e encaminhariam um projeto para o Congresso, onde será votada a reforma’.

O governo não serve apenas idéias malpassadas. Serve também acontecimentos que não são o que parecem – e a mídia que fique atenta para não entrar no jogo.

No dia 11 de novembro de 2003, o presidente Lula lançou, com discurseira e festança, o programa Luz para Todos, que pretende beneficiar, até 2008, 12 milhões de brasileiros ainda sem acesso à energia elétrica.

Lendo os jornais do último dia 10, fica-se sabendo que, na véspera, Lula anunciou ‘a assinatura dos primeiros contratos’ do programa. Da Folha:

‘Até Lula estranhou a nova cerimônia (…): ‘Hoje pela manhã chamei a Dilma [Rousseff] na minha sala e falei: nós já lançamos o programa Luz Para Todos em novembro. O que nós vamos lançar agora?’.’

Está claro como a luz do dia que o evento de 11 de novembro foi uma ficção – não havia, a rigor, o que ‘eventar’, mas a imprensa teve que noticiar como se de coisa séria se tratasse.

Assim como teve que noticiar a inconvincente explicação presidencial para o reacender do Luz para Todos: o ato anterior serviu para lançar o programa; o de agora, para ‘concretizar’ o lançamento. [Texto fechado às 17h34 de 10/6].