‘(…) Protágoras, que partia do princípio de que a virtude pode ser ensinada, parece agora se contradizer, vendo nela um pouco de tudo, menos uma ciência, o que lhe tiraria toda a possibilidade de ser ensinada.’ Sócrates, segundo Platão, em Protágoras (1)
‘As idéias muito possuídas não são mais idéias, eu nada penso quando as falo (…).’ Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible (2)
Na terça-feira, 21 de junho, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e os 31 sindicatos a ela associados promoveram em várias cidades do país o Dia Nacional da Formação e Regulamentação da Profissão de Jornalista. Embora não tenha sido uma campanha em prol do amplo debate sobre dois temas polêmicos no âmbito não só da própria imprensa, mas de diversos setores da sociedade, espera-se que essa mobilização venha a estimulá-lo mais uma vez.
A obrigatoriedade da formação superior específica em jornalismo para o exercício dessa profissão encontra-se temporariamente suspensa em todo o país pela Justiça. Enquanto se aguarda a decisão do Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3), sediado em São Paulo, sobre a sentença da 16ª Vara Cível da Justiça Federal, de dezembro de 2002 (3), o debate em torno desse assunto também está suspenso, mas por conta da própria imprensa. Desde outubro de 2001, quando foi concedida uma liminar contra o requisito do diploma específico, os dois lados da polêmica em torno desse assunto mal se dispuseram a confrontar seus argumentos, salvo pelas raras exceções, que acabaram sendo silenciadas em meio às tumultuadas reações aos trâmites do processo na Justiça.
Apesar de estar sub judice, a questão não é da competência exclusiva de juristas. Ela envolve considerações que transcendem os aspectos de ordem puramente jurídica, e uma delas é a da suposta necessidade dessa restrição ao acesso ao exercício do jornalismo, ou seja, se é razoável exigir capacitação por meio de aprendizado para que a profissão seja exercida sem risco para a sociedade. Considerações não-jurídicas acabam por fundamentar decisões judiciais, como, por exemplo, a do desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, do Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF-4), sediado em Porto Alegre, sobre outro processo relativo à exigência de diploma, no qual, em 18 de março de 2003, o magistrado ressaltou que
‘Por fim, não merece guarida a argumentação de que estaríamos diante de profissão cujo diploma seria dispensável pela prática periódica do exercício profissional, o que seria o mesmo que desmerecer por completo a própria profissão de jornalista’. (4)
Com base em uma pressuposição semelhante sobre a formação dos jornalistas, em outro processo relativo ao exercício dessa profissão, manifestou-se em 26 de fevereiro de 2004 o procurador-geral da República Cláudio Fonteles, afirmando que
‘A preservação de inúmeros interesses resvala na atividade jornalística. O preparo acadêmico, na concepção do legislador, é medida que se pauta no sentido de matizar os direitos em sobreposição. É plenamente defensável que o aprendizado de técnicas próprias da atividade, assim como o transcurso do currículo próprio do curso de jornalismo, o convívio com a docência e com os profissionais da área, inevitável no ambiente acadêmico, possa guarnecer o futuro profissional do jornalismo do indispensável instrumental para o enfrentamento da profissão, considerada a roupagem que lhe é típica.’ (5)
Desse modo, na medida em que o Direito não é nossa especialidade, o foco principal deste artigo está em questionar se há ou não razoabilidade na exigência de graduação superior específica para o exercício da profissão de jornalista, que no Brasil foi estabelecida pelo Decreto-lei 972, de 17 de outubro de 1969. Não importa aqui se esse dispositivo legal foi imposto arbitrariamente à sociedade por meio da Junta Militar que governou o país com o Congresso Nacional em recesso forçado, nem o fato de que seu texto não se fundamenta em nenhuma lei ou constituição, mas somente no Ato Institucional nº 5 e no Ato Institucional nº 16. Não importam aqui também os pareceres de renomados juristas que qualificam esse decreto-lei como inconstitucional.
Nossa conclusão é a de que não há razoabilidade nessa exigência para o exercício da profissão. Em outras palavras, cursar uma escola de jornalismo não é apenas desnecessário para que uma pessoa esteja qualificada para exercer plenamente essa profissão, mas também não assegura essa qualificação. Dizendo de acordo com os termos da lógica, nosso argumento central é que esse requisito não é condição necessária nem condição suficiente para qualificar alguém para o exercício do jornalismo.
É preciso ressaltar que o presente artigo não visa, em hipótese alguma, desqualificar o papel da graduação superior em jornalismo na formação dos profissionais. Além disso, é importante frisar que não se trata aqui de negar o mérito de propostas de regulamentação da profissão de jornalista no Brasil. Ao contrário, muitos dos exemplos aqui apresentados referem-se a países em que não há o requisito de formação em jornalismo mas existe regulamentação. Também não se trata neste ensaio de pregar o encerramento de qualquer discussão sobre formas de normatizar o exercício profissional, mas, justamente, de promover o debate sobre elas. E, finalmente, por pior que seja a qualidade da maioria dos cursos de jornalismo no país, não se trata aqui de usar tal constatação para dar fundamento ao que ora se propõe. Acima de tudo, dirigimo-nos aqui ao discernimento dos interessados nesse tema, e não a suas emoções ou preconceitos. De nada servirá a leitura deste texto para aqueles que sempre interpretam críticas à sua concepção de jornalismo como ‘ataques à profissão’.
Na polêmica em torno dessa obrigatoriedade, persistem e predominam de ambos os lados – é sempre necessário ressaltar –, posicionamentos muito mais escudados na retórica do que na reflexão crítica; prevalecem muito mais as frases de efeito e as transcrições fora de contexto do que as análises de mérito e o contraponto de argumentos antagônicos; permanecem as acusações recíprocas, muitas vezes acompanhadas de insultos, em vez do debate em torno das idéias. Como disse o pensador e jurista italiano Norberto Bobbio, ‘não basta conversar para empreender um diálogo. Nem sempre aqueles que falam uns com os outros falam de fato entre si: cada um fala consigo mesmo ou com a platéia que o escuta’ (6).
A sabotagem do debate
Trataremos inicialmente do que não deve acontecer em um debate e, portanto, evitaremos neste artigo e não consideraremos como crítica honesta. Há quase dois anos afirmamos que, infelizmente, ‘a discussão sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalismo vem se tornando uma coleção de exemplos do que não deve acontecer em um debate, e que eles ocorrem por parte de ambos os lados da polêmica’ (7). Esse quadro praticamente não mudou. Quase todas as manifestações sobre o assunto – na forma de artigos em diversos veículos de comunicação ou de comentários em salas e grupos de discussão na internet – continuam sendo uma lamentável comprovação da ignorância e da falta de interesse jornalístico pelos termos não só da sentença judicial, mas também da Ação Civil Pública contra o famigerado decreto-lei, movida pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Estado de São Paulo, do Ministério Público Federal (8). E isso se aplica inclusive a jornalistas de renome e a dirigentes sindicais atuantes. Passados quase dois anos e meio desde a sentença que foi proferida em dezembro de 2002 – ora em análise no TRF-3 –, ainda há jornalistas, sindicalistas e até mesmo professores de jornalismo que ignoram já ter sido essa Ação Civil Pública apreciada no mérito e afirmam que a exigência do diploma está suspensa pela liminar de outubro de 2001.
Não bastasse o amplo desconhecimento da evolução desse processo na esfera judicial, o debate tem sido sabotado também pela desonestidade intelectual de muitos dos interlocutores, inclusive acadêmicos, acarretando resultados lesivos ao debate no plano das idéias. Uma compilação dos diversos argumentos contrários ou favoráveis tanto à referida sentença como à própria obrigatoriedade poderia servir de exemplos em um livro didático de lógica elementar para os diversos tipos de falácias.
Não faltaram exemplos do Argumentum ad Hominem (Argumento contra a Pessoa) na forma de desqualificações de pessoas de ambos os lados dessa polêmica (9). Não faltou o recurso ao Argumentum ad Misericordiam (Apelo à Piedade), seja por meio de considerações sobre os graduados em jornalismo que teriam de competir com profissionais especializados em outras áreas, ou sobre os que não tiveram oportunidade de cursar uma faculdade de jornalismo (10). Também não faltaram casos do Argumentum ad Populum (Apelo ao Povo): por um lado, em acusações de que o fim da exigência do diploma de jornalismo serviria aos donos dos veículos de comunicação e de que essa obrigatoriedade beneficiaria os sindicatos por meio da cobrança de taxas; por outro lado, nas alegações de que a exigência do diploma por meio do Decreto-lei 972, de 1969, atende a um ‘anseio dos jornalistas’ (11). O Argumentum ad Verecundiam (Argumento da Autoridade) foi amplamente aplicado por ambos os lados, com base em simples opiniões de jornalistas e outros especialistas de renome, sem discutir satisfatoriamente o mérito da questão (12). Entre outras modalidades de falácias, usou-se e abusou-se também, como não poderia deixar de ser, do Argumentum ad Ignorantiam (Argumento pela Ignorância), inclusive por parte de professores, para, com base no pressuposto dogmático da validade da referida obrigatoriedade, desqualificar sumariamente a tese da Ação Civil Pública em pauta e de sua sentença (13).
É importante notar que tais considerações de ordem estritamente lógica são úteis, no entanto, apenas para evidenciar os casos de desonestidade intelectual praticados por ambos os lados da polêmica em pauta e para nos mostrar como não repeti-los. Elas nos ajudam a não incorrer nos mesmos erros, mas não nos levam a nada além disso. Como disse Heidegger, em sua Carta sobre o Humanismo, ‘com o constante apelo ao lógico, dá-se a impressão de um empenho no pensar, quando, na verdade, renunciou-se ao pensamento’ (14). Ao apontar as falácias recorrentes no debate que se faz necessário, nosso objetivo, portanto, é evidenciar nossa recusa a tais expedientes e também desencorajar manifestações desse tipo. Acima de tudo, a questão em pauta exige a reflexão sobre se há ou não razoabilidade no requisito de formação específica.
Em meio às tumultuadas tentativas de discussão sobre esse tema, houve propostas de realizá-la no contexto mais ‘prático’ da regulamentação da profissão de jornalista. Desse modo, o encaminhamento pelo Governo Federal do projeto de lei de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) para o Legislativo, em agosto do ano passado, poderia ter sido devidamente aproveitado para um amplo debate (15). Mas não foi o que aconteceu. Por parte de ambos os lados da polêmica em torno da regulamentação e da obrigatoriedade do diploma de jornalismo, a maior parte dos jornalistas, dos sindicalistas, dos professores de jornalismo e dos veículos de comunicação ficou muito longe de respeitar os preceitos éticos profissionais de ‘divulgar todos os fatos que sejam de interesse público’ e de jamais ‘frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate’ (16)
Tudo conspirou para sabotar a discussão, a começar pelo processo intra corporis de elaboração da proposta inicial pela Fenaj com os sindicatos a ela associados – tradicionalmente impermeáveis ao discernimento entre o que é crítica independente e o que é oposição classista engajada. Após enviar em dezembro de 2002 a primeira versão de sua proposta de criação do CFJ para o Governo Federal, a Fenaj decidiu enxugar gradativamente os itens relativos aos temas mais polêmicos – entre eles o da exigência do diploma – do texto, que possuía 73 artigos e um anexo, com o Código de Ética.
Em maio de 2004, em parceria com a Fenaj, o Ministério do Trabalho e do Emprego concluiu uma terceira versão, com 16 artigos e sem o anexo com o Código de Ética, na qual já não constava mais nenhuma menção à obrigatoriedade do diploma de jornalismo, cuja manutenção, por outro lado, passou a ser defendida pelo Projeto de Lei 708, de 2003, de autoria do Deputado Pastor Amarildo (PSB-TO). Esse esvaziamento prévio do debate – não só sobre o CFJ, mas também sobre o tema da obrigatoriedade da graduação em jornalismo – mal foi percebido pela própria mídia (17).
Não bastasse seu gradual e sistemático esforço de inviabilização do debate, a Fenaj e o Governo Federal – completamente alheios ao fato de que a proposta não tinha respaldo suficiente entre os próprios jornalistas – deram os passos seguintes de modo a acirrar os ânimos contrários. O primeiro deles foi a desastrada redação final do projeto de lei levada a cabo pelo Governo Federal, com a frase ‘disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo’ (18). O passo seguinte coube à Fenaj e aos sindicatos, em clima de vitória, embriagados por sua auto-imagem de portadores da razão da História, e amplamente articulados com o Executivo, ao comemorarem o envio da proposta ao Legislativo repetindo o que já vinham dizendo havia meses, mas foram forçados a negar depois: ‘Precisamos de um movimento nacional de todos os jornalistas para pressionar os parlamentares para que o projeto possa ser rapidamente aprovado sem emendas’ (19)
Reagindo a esse projeto de lei, o pólo oposto da polêmica, o patronal, não deixou de fazer sua parte no torpedeamento da discussão. Apesar de invocarem o respeito à liberdade de imprensa, muitos dos grandes veículos de comunicação, salvo exceções, não fizeram nada mais que de cumprir, como mera formalidade, o princípio de ouvir o outro lado dando-lhe um espaço simbólico. Na verdade, o que se sucedeu foi um bombardeio de notícias contrárias à iniciativa da Fenaj secundada pelo Governo, caracterizando-a como um atentado à liberdade de informação e pressionando o Executivo e o Legislativo pela retirada do projeto de lei, sem, no entanto, propor nenhuma alternativa. A isso se somou o espírito de torcida organizada da maior parte dos jornalistas, cujas opiniões se dividiam violentamente, ofuscando os raros apelos à razão e à discussão sobre o mérito da idéia de regulamentação.
O arquivamento do projeto de lei do CFJ, após um acordo da Presidência da Câmara dos Deputados com as lideranças dos partidos em 15 de dezembro de 2004, e o abortamento do debate que mal se iniciara não foram comemorados por todos os que eram contrários àquela proposta, como ressaltou o jornalista Alberto Dines, editor-responsável do Observatório da Imprensa:
‘O grande debate sobre o CFJ, além da sua intensidade e duração, teve o mérito de revelar um novo emissor de opiniões em matéria de imprensa e liberdade de expressão. Ao tradicional binômio empresas-governo acrescentou-se um terceiro elemento: os jornalistas independentes. Este é um dado que tanto o governo como as empresas precisam levar em conta. Já não estão sozinhos na feira das idéias. Significa que poderemos chegar a uma situação semelhante à americana ou européia, onde o ponto de vista da empresa jornalística vem acompanhado por uma dose de suspeição não muito diferente da que envolve as manobras oficiais. (…) Jornalistas independentes não se regozijaram com o abrupto encerramento do debate sobre a mídia. Jornalista alimenta-se de controvérsias, empresas jornalísticas preferem apostar nas unanimidades. E no silêncio.’ (20)
Cumpre aqui ressaltar, em meio a esse cenário conturbado e desfavorável ao debate, a importante iniciativa dos alunos do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que em novembro de 2004, na programação da IV Semana do Jornalismo, em Florianópolis, convidaram-nos para um debate sobre o CFJ (21). Nesse evento, tivemos a satisfação de ter como oponente José Carlos Torves, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, que substituiu Sérgio Murillo de Andrade, presidente da Fenaj, que no dia marcado mudou sua agenda. Apesar das divergências de nossas posições, pudemos com Torves mostrar não só que é possível, mas também que é necessário discutir frente a frente e com profundidade as diferentes e conflitantes idéias e propostas relativas à regulamentação da profissão.
Uma profissão aberta
Do ponto de vista puramente lógico, bastaria apontar exemplos de jornalistas competentes sem graduação em jornalismo para invalidar a crença de que esse requisito de formação é necessário, como têm feito muitos dos que são contrários a essa exigência. No entanto, os que consideram válida essa obrigatoriedade poderiam objetar que tal linha de argumentação incorreria em generalização indevida, nos moldes da Falácia do Acidente Convertido, que, grosso modo, consiste em tratar casos atípicos como típicos (22). Deixemos tal caminho, não só para que não reste a menor suspeita de partirmos de pressuposições ‘contrabandeadas’ de nossas convicções, mas também porque, como dissemos anteriormente, a questão precisa ser discutida além de suas considerações estritamente formais e lógicas.
A partir do Decreto-lei 972, de 1969, a exigência da formação superior em jornalismo para o exercício da profissão passou, aos poucos, a adquirir no Brasil o status de requisito ‘natural’ não só entre os jornalistas, mas entre especialistas de diversas áreas. A reserva de mercado que foi então estabelecida não se limitou apenas às atividades desempenhadas nas redações, mas valeu também para as faculdades, na medida em que o citado dispositivo legal definiu também o ‘ensino de técnica de jornalismo’ como função privativa de jornalista.
Assim como os sindicatos, as faculdades de jornalismo, em sua maior parte, tornaram-se as instâncias de consolidação de um ambiente acadêmico e profissional dominado por um pensamento homogeneizado, em que qualquer questionamento à exigência do diploma não escapava da discriminação. Em poucos anos, estava fortalecida a mentalidade do ‘cordão sanitário’ no plano das idéias – ironicamente na profissão que tem como um dos princípios éticos o de jamais ‘frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate’ (23)
Não é sem razão que ano após ano, cada vez mais jornalistas recém-formados, ou melhor, jovens recém-formados em jornalismo, em conversas ou discussões, principalmente pela Internet, demonstrem total desconhecimento sobre a regulamentação da profissão em outros países. E – ressalte-se – apesar de terem estudado legislação e ética da comunicação em seus cursos. Vejamos, inicialmente, um pouco do que existe de bibliografia disponível em língua portuguesa, como o livro Ética da Informação, do suíço Daniel Cornu, professor do Instituto de Jornalismo e Comunicação, da Universidade de Neuchâtel, em Lausanne, e diretor do Centro Franco-Suíço de Formação de Jornalistas, em Genebra:
‘O jornalismo é uma ‘profissão aberta’, que não exige formação específica ou diploma. Sua definição é tautológica: é considerado jornalista quem exerce sua atividade principal na imprensa escrita ou nos meios de comunicação audiovisuais. Mais precisamente, são reconhecidos como jornalistas os agentes da mídia, independentemente dos meios ou técnicas de expressão utilizados, que satisfaçam três critérios: a concepção e realização de uma produção intelectual, uma relação deste trabalho com a informação, além do critério de atualidade. No entanto, os contornos da profissão permanecem ainda bastante imprecisos.’ (24)
Não se trata de uma caracterização alheia às formas de organização profissional e aos compromissos com a sociedade. Cornu ressalta que a apresentação nos termos acima está intimamente associada aos seus preceitos éticos e à regulamentação profissional. Nessa mesma linha, o professor do Instituto Francês de Imprensa, da Universidade de Paris II, Claude-Jean Bertrand, em A Deontologia das Mídias, de 1997, afirma:
‘A excepcionalidade de que goza o jornalismo, dentre as instituições democráticas, consiste em que seu poder não repousa num contrato social, numa delegação do povo por eleição ou por nomeação com diploma ou por voto de uma lei impondo normas. Para manter seu prestígio, e sua independência, a mídia precisa compenetrar-se de sua responsabilidade primordial: servir bem à população.’ (25)
No Brasil, a idéia do acesso livre e desembaraçado à profissão tem sido apontada como uma visão anacrônica, baseada em antigos pressupostos liberais que surgiram em condições históricas totalmente diferentes das atuais, em que a complexidade da informação cresceu, modificando profundamente o mundo das comunicações e tornando necessária a formação específica dos seus profissionais. Desse modo, têm sido desprezadas as opiniões contrárias de importantes jornalistas brasileiros como Cláudio Abramo (1923-1987) (26) e Mino Carta, (27) e até de estrangeiros, como Ben Bradlee, editor-chefe do Washington Post por 26 anos, inclusive durante o Caso Watergate (28)
No entanto, essa concepção tida como anacrônica aqui ao sul do equador tem sido corroborada por diversas avaliações e debates recentes. É o que mostrou o resultado da famosa iniciativa de um grupo de 25 editores reunidos em na Universidade Harvard, em Massachusetts, nos Estados Unidos, em junho de 1997, que, preocupados com a crise de credibilidade da mídia, deram origem ao Committee of Concerned Journalists, organizando 21 fóruns de debates com cerca de 3 mil convidados, dos quais 300 jornalistas. O resultado desses debates foi apresentado no livro Os Elementos do Jornalismo, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. No que se refere ao acesso à profissão, eles afirmam que
‘A pergunta que as pessoas deviam fazer não é por que alguém se diz jornalista. O ponto importante é se esse alguém está de fato fazendo jornalismo. Será o trabalho o respeito aos princípios da verdade, à lealdade aos cidadãos e à comunidade de modo geral, a informação no lugar da manipulação – conceitos que fazem o jornalismo diferentes das outras formas de comunicação? A implicação importante disso tudo é esta: o significado de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa é que eles pertencem a todos. Mas comunicação e jornalismo não são termos mutáveis. Qualquer um pode ser jornalista, mas nem todos o são. O fator decisivo não é que tenham um passe para entrar e sair dos lugares; o importante está na natureza do trabalho.’ (29)
O acesso à profissão sem a obrigatoriedade de formação específica existe não só nos Estados Unidos, mas também na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Chile, China, Colômbia, Dinamarca Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Peru, Polônia, Reino Unido, Suécia, Suíça e em vários outros países (ver Apêndice). Michel Mathien, professor de ciências da informação e da comunicação da Universidade de Strasbourg III, na França, mostra em seu livro Les Journalistes, de 1995, que em quase toda a Europa, apesar de não haver requisito de formação, existe regulamentação de acesso à profissão (30) Nesses países prevalece a concepção de que a liberdade de expressão, como necessária para o exercício da cidadania, é incompatível com impedimentos para que qualquer cidadão possa, sem desembaraço, não só ingressar na profissão, mas até mesmo ter seu próprio veículo de comunicação.
Informações como essas não estão disponíveis só em livros. Nos últimos anos, com a Internet, um mínimo de curiosidade jornalística – ou simplesmente de real interesse em buscar a verdade – teria levado muitos jornalistas e estudantes a informações importantes sobre a formação profissional, entre elas as mais variadas opiniões, como as de Joaquim Fidalgo, jornalista e professor na Universidade do Minho, em Portugal:
‘O jornalismo ensina-se? Não tenho bem a certeza se sim ou se não e, sobretudo, ‘como’. Mas o jornalismo aprende-se, disso estou bem convicto – e por mim falo! Aprende-se com outros jornalistas, aprende-se com livros, aprende-se com práticas e confronto de experiências, aprende-se com o tempo, aprende-se à conversa com quem não é do ofício mas dele usufrui e dele exige, aprende-se nas secretarias das redacções. Então, por que não também nos bancos de uma escola? (…) O erro maior de certas correntes de ensino do jornalismo está em reduzi-lo à transmissão e prática de um conjunto de técnicas. Nada é mais fácil do que aprender a escrever correctamente uma notícia, de acordo com as exigências estandardizadas de uma comunicação rápida e eficaz. Aprende-se depressa, pode aprender-se mecanicamente, aperfeiçoa-se com o treino repetido. E então quando há algum talento – que também se educa e desenvolve, é bom frisar –, resolve-se este ‘saber fazer’ em duas penadas.’ (31)
Há também na internet muitas informações sobre a regulamentação da profissão em países em que não existe a obrigatoriedade do diploma de jornalismo, como a Itália (32), a França (33), a Bélgica (34), e até mesmo em países da América Latina, em especial o Chile, no qual foram removidas as restrições impostas ao acesso ao jornalismo durante o regime ditatorial do general Augusto Pinochet (35). Para os que lêem apenas em português, está disponível inclusive a legislação portuguesa relativa à profissão, que data de 1999, na forma do Estatuto do Jornalista, e define a atividade do seguinte modo:
‘São considerados jornalistas aqueles que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exercem funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação informativa pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por outra forma de difusão electrónica.’ (36)
O livre acesso à profissão é defendido em diversos documentos oficiais de instituições internacionais. Um deles, publicado pela Unesco, o Relatório Mundial sobre a Comunicação e a Informação: 1999-2000 (37), ressalta em seu Capítulo 12 esse princípio, endossando não só a Declaração de Chapultepec, de 1994 (38), como também a ‘Carta pela Imprensa Livre’, do Comitê Mundial pela Liberdade de Imprensa (WFPC). Este último documento, que foi firmado em 1987 em Londres por representantes de entidades jornalísticas de 34 países, em seu artigo 9º afirma explicitamente: ‘Devem ser eliminadas as restrições por meio de regulamentação ou de outros procedimentos de certificação ao livre acesso ao campo do jornalismo ou sobre sua prática’. (39)
Não é por menos que outro importante documento, Attacks on the Press: 2001, do Comittee to Protect Journalists (CPJ), publicado em seguida à liminar concedida no Brasil em outubro de 2001, relaciona a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista no Brasil ao lado de processos judiciais, prisões, assassinatos e outras agressões à liberdade de imprensa (40).
Rompidos os limites do ideário domesticado do ambiente acadêmico e profissional do jornalismo brasileiro, torna-se claro que a exigência da formação superior específica é incompatível com as sociedades em que há um mínimo respeito aos princípios democráticos, e que nessas sociedades o livre acesso ao jornalismo não tem impedido o exercício efetivo da profissão, e que portanto, não tem razão de ser a obrigatoriedade da formação superior específica ora suspensa pela Justiça no Brasil.
Dados os preceitos éticos a que estão subordinados, por mais que tenham o direito de defender seu ideal de preferir para o Brasil uma situação diferente e de lutar por ela, jornalistas e professores defensores do diploma jamais poderiam ter discriminado e até hostilizado ao longo das últimas décadas os que deles discordavam nessa questão. Pela mesma razão, ao criticarem a suspensão desse dispositivo, jamais poderiam ter atribuído à referida sentença judicial os adjetivos que contra ela usaram: ‘esdrúxula’, ‘tresloucada’, ‘ridícula’, ‘absurda’ e outros.
Enfim, não restam dúvidas de que a formação superior específica em jornalismo não é o único caminho para o exercício efetivo da profissão. Não pode, portanto, ser considerada uma condição necessária, que a justificaria como requisito.
Motivos para exigir
A irrefutável constatação de que a formação específica em jornalismo não é uma condição necessária para o exercício da profissão derruba qualquer pretensão de razoabilidade na manutenção do diploma como obrigatoriedade. No entanto, nem só de gente movida por interesses exclusivamente corporativistas é formado o contingente de defensores desse requisito. Mais que isso, esse amplo e heterogêneo grupo de jornalistas, sindicalistas, professores e estudantes não é integrado apenas por pessoas que ignoram as diversas formas de regulamentação do jornalismo e a inexistência dessa exigência para o acesso à profissão em outros países. Como não estamos aqui simplesmente para ‘ter razão’ nessa polêmica, mas, acima de tudo, para compreender a questão, temos de nos esforçar para compreender os argumentos contrários.
Que argumentos restariam, portanto, para dar um mínimo, não de justificativa, mas de ‘razão’ para aquele requisito? Seria a graduação em jornalismo uma condição suficiente, isto é, uma garantia de capacitação para o exercício do jornalismo, de modo a assegurar à sociedade a defesa de seus interesses? Deixando de lado o fato de que há cursos, e muitos, de má qualidade – pois isso vale até para as áreas de indiscutível indispensabilidade de aprendizado –, podemos considerar a formação em jornalismo como um processo que em princípio asseguraria a capacitação profissional?
Estudos de vários pesquisadores de renome do ensino de jornalismo brasileiro sugerem como razão para a obrigatoriedade uma formação específica voltada para a plena capacitação para o exercício profissional. Ela seria o fundamento da convicção que leva intelectuais como Francisco Karam, professor de ética do jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina a ‘afirmar a necessidade de formação graduada em jornalismo, tanto diante da multiplicidade de mídias e de desdobramento tecnológico quanto diante das especificidades de ordem ética, teórica, estética e técnica que a profissão e a formação para ela demandam’ (41).
Não falta a muitos docentes clareza das graves deficiências do ensino do jornalismo no país. Ao contrário, alguns deles têm produzido diagnósticos rigorosos desse quadro, que não só escapam das abordagens que geralmente levam à ideologização do objeto de suas pesquisas, como também apontam caminhos para a reformulação dos currículos de graduação, com especial destaque para José Marques de Melo, professor aposentado da USP e hoje docente da Universidade Metodista de São Paulo.
Para muitos dos teóricos brasileiros do jornalismo que defendem a obrigatoriedade do diploma, essa exigência – salvo melhor juízo – não se baseia na idéia de condição necessária – isto é, de um caminho único possível para a profissão –, mas sim na de condição suficiente, dado seu objetivo de garantir o aprendizado essencial para tal atividade. Embora, ressalte-se, não nos consta que tenham eles dito isso explicitamente. (Se eles chegaram alguma vez a negar a formação como condição suficiente, não haveria então como justificar sua obrigatoriedade, dada a impossibilidade de ser condição necessária.) O fato de que muitos dos cursos são deficientes não serviria para invalidar a obrigatoriedade, mas sim para obrigar ao fechamento ou à reformulação desses cursos.
A idéia da obrigatoriedade da formação específica em jornalismo – aspiração surgida no Brasil já na segunda década do século 20 – passou a ter um efetivo respaldo teórico somente a partir da quinta década, com os trabalhos de estudiosos da profissão como Danton Jobim (1906-1978) e Luiz Beltrão (1918-1986).
Jornalista com larga experiência em redações, professor de jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) e de didática do jornalismo do Centro Internacional de Estudos Superiores de Jornalismo na América Latina (Ciespal), em Quito, no Equador, e, a partir de 1970, senador da República pelo MDB do Rio de Janeiro, Jobim foi um dos principais responsáveis pela dissolução do injustificável ambiente de resistência e até de ‘hostil ceticismo’ contra a abertura de cursos de jornalismo no Brasil. Em 1958, no Seminário sobre Formação em Jornalismo promovido pela Unesco em Quito, ele defendeu a idéia da formação superior específica praticamente como obrigatória para o exercício da profissão na América Latina, ‘onde as disciplinas do curso secundário são, em geral, deficientemente ensinadas’ (42).
Por sua vez, Beltrão, que em 1967 se tornou o primeiro doutor em comunicação do Brasil, fez em seu livro Introdução à Filosofia do Jornalismo, de 1959, uma das principais apologias da necessidade de valorização no país dos cursos superiores de jornalismo:
‘Com efeito, as deficiências da formação profissional dos jornalistas brasileiros, numa época em que todos os ofícios exigem preparo e especialização, imprimem ao seu espírito um complexo de inferioridade, que se manifesta na desorientação, no baixo nível cultural e mesmo técnico do nosso jornalismo, na falsa concepção de direitos e deveres dos nossos órgãos de divulgação. Improvisam-se jornalistas e técnicos de jornal à base, apenas, de um período de treinamento nas redações ou na reportagem. Qualquer semiletrado se arvora em profissional, na maioria dos casos, ‘atraído’ pelo prestígio de que gozará e pelos teóricos privilégios que o Estado lhe confere. Os corpos redacionais aumentam, sem que haja correspondência entre seu volume e o seu valor. Enquanto em todo o mundo procura-se educar o jornalista para o exercício da liberdade e da profissão, entre nós relega-se a plano secundário sua formação científica e técnica.’ (43)
Considerações como as de Jobim e Beltrão têm como pressuposto a idéia de que aprendizado acadêmico assegura a capacitação técnica para o exercício da profissão. A ela se soma a concepção de que a preparação ética para o jornalismo também pode ser cultivada na faculdade. Um dos principais argumentos em defesa da obrigatoriedade do diploma é a de que ela seria um mecanismo de combate a muitas das tradições espúrias do jornalismo brasileiro. Um de seus mais ardorosos defensores, como Nilson Lage, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, lembra dos jornalistas
‘(…) que viviam de salários pagos pelos veículos ou trabalhavam efetivamente em dois ou três empregos (não apenas recebiam vencimentos em empresas públicas ou privadas); e os que desenvolviam seu próprio negócio, associando-se a bandidos ou policiais-bandidos, intermediando o acesso a verbas oficiais, descobrindo segredos das pessoas para chantageá-las.’ (44)
Para muitos jornalistas que se dedicavam à reflexão crítica sobre os rumos da profissão, como Alberto Dines, a exigência da formação superior obrigatória em jornalismo parecia, na época em que foi baixado o Decreto-lei 972/1969, ser o caminho para assegurar o desempenho da profissão em consonância com sua ética:
‘Na sala de aula, com o auxílio de docentes responsáveis, experimentados e ligados ao métier, podem ser criados os estímulos para que o ideal [da profissão] seja perseguido com naturalidade, as devoções praticadas sem mesquinhez.’ (45)
Dines, no entanto, reviu essa posição, e hoje pode ser considerado um dos profissionais que mais têm cobrado da imprensa um amplo debate sobre esse tema, e um dos que mais têm colaborado para ele (46).
Jornalismo como vocação
Em um texto de 1919, em que analisa a política como vocação e caracteriza o jornalismo como uma das atividades em que é possível exercer a política, o sociólogo e economista alemão Max Weber (1864-1920) ressalta também a imagem do jornalista como pertencente ‘a uma espécie de casta de párias que a ‘sociedade’ julga em função de seus representantes mais indignos sob a ótica da moralidade’ (47). No entanto, esse pensador alemão reconhecia no jornalismo uma responsabilidade ‘bem maior que a do cientista, não sendo o sentimento de responsabilidade de um jornalista honrado em nada inferior ao de qualquer intelectual’ (48).
‘Sem dúvida nenhuma, a carreira jornalística permanecerá como uma das vias mais importantes de atividade política profissional. Entretanto, não se constitui um caminho aberto a todos. Não está aberto, principalmente, para os caracteres mais fracos e, muito menos, para os que só se podem realizar em situação social isenta de tensões.’ (49)
Esse ensaio de Weber é usado para ilustrar uma das mais contundentes objeções à concepção do jornalista por formação, feita em março de 2003, na abertura da Semana Nacional da Comunicação, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Trata-se da palestra ‘Declínio e morte do jornalismo como vocação’, proferida por Bernardo Kucinski, professor de jornalismo na escola de Comunicações e Artes da USP, ganhador do Prêmio Jabuti de 1997 pela autoria do livro Jornalismo Econômico e, desde o início da atual gestão do Governo Federal, assessor especial da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República. Citando Weber ao se contrapor à noção do jornalismo por formação na proposta de Beltrão como prejuízo do jornalismo como vocação, Kucinski afirmou:
‘Mas Luiz Beltrão não assumiu que o trabalho do jornalista pudesse requerer a um só tempo os atributos tão diferentes de inteligência, conhecimento e destreza que Weber detectou. É essa combinação tão rara, mais a sensibilidade e o saber narrar uma história que constituem a vocação jornalística. Por isso, o bom escritor nem sempre consegue ser um bom jornalista – se lhe faltar a destreza –, mas o bom jornalista sempre pode se tornar um bom escritor. Luiz Beltrão localizou na carga de conhecimentos o principal atributo do jornalismo, e para superar a falta de conhecimento, diante de um mundo cada vez mais exigente em saberes especializados, propôs a instituição dos cursos de jornalismo. Mas o resultado dessa experiência, praticamente única no mundo, foi constrangedor. O saber e a auto-estima dos jornalistas não aumentaram; ao contrário, caíram ainda mais. E a vocação deixou de ser critério para o ofício de jornalista. Vocação vem do latim vocare. Designa, mais que talento, um chamado interior sobre o qual não se tem controle, uma urgência de fazer algo.’ (50)
Segundo Kucinski, a falta da necessidade de vocação é o demarcador principal entre o velho e o atual jornalismo, assim como há outros demarcadores, como a postura contra-hegemônica e crítica, a irreverência e o desafio às autoridades e ideologias dominantes, além do cinismo, ‘que costumava atacar o velho jornalista do meio para o fim de sua carreira, hoje é ponto de partida do jovem jornalista. Ele já começa cínico’ (51). A crítica do professor da ECA-USP à noção do jornalista por formação se reveste de um peso constrangedor e incontornável para os defensores dogmáticos da defesa do diploma, pois parte de um profissional que, devido à sua trajetória e sua militância, eles certamente jamais sonhariam acusar de subordinação aos interesses patronais, como geralmente fazem com todos aqueles que criticam suas posições.
A importância da vocação como atributo essencial para o exercício da profissão foi também enfaticamente afirmada em 1996 pelo jornalista e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Ao expressar seu profundo descontentamento com a formação superior específica para a profissão, ele disse: ‘O resultado, em geral, não é alentador. Os rapazes que saem iludidos das faculdades, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais’ (52).
Retomando as palavras nada dispensáveis de Weber, apesar dos 86 anos que delas nos separam no tempo, não há como escamotear a questão da vocação para o exercício do jornalismo, principalmente nestes tempos em que as questões éticas estão mais do que nunca na ordem do dia – o que não significa, porém, um crescimento da conscientização dos profissionais para os temas da deontologia, mas, ao contrário, um sinal de alerta de que as coisas nesse campo estão piorando cada vez mais.
De um modo geral, a idéia de que a formação superior em jornalismo seja uma garantia para o exercício pleno da profissão não vem ganhando força nos últimos anos nos países desenvolvidos, ao contrário do que tem sido afirmado pela Fenaj e pelos sindicatos. Há, isso sim, uma crescente valorização da formação justamente onde ela não é obrigatória. ‘Você aprende as regras básicas, isto é, o ‘quem, o quê, onde, quando e por quê’. Mas ninguém pode te ensinar a escrever’, afirmou Matt Barker, profissional free lance formado em jornalismo no Reino Unido, em entrevista à edição desta semana da revista CartaCapital, em uma reportagem de Gianni Carta sobre o reforço que se pretende dar nos cursos de pós-graduação em jornalismo nos Estados Unidos e no Reino Unido, motivado tanto pelo rápido desenvolvimento das novas tecnologias para a transmissão de notícias, como pelo aumento dos casos de infrações éticas (53).
Na medida em que se enfatiza cada vez mais a necessidade de preparar os futuros jornalistas para as novas tecnologias, a vocação é cada vez menos valorizada. Ao resultar de uma aposta de todas as fichas na formação, a concepção da graduação específica como condição necessária para o exercício da profissão torna-se dia-a-dia mais impotente diante de tendências de tecnicismo, de antiintelectualismo e de subserviência da profissão, devidamente apontadas por Ciro Marcondes Filho, professor de teoria do jornalismo e filosofia da comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP, em seu livro A Saga dos Cães Perdidos:
‘Numa era de altas e sofisticadas tecnologias informatizadas, em que os principais atores políticos já não são mais homens e mulheres, mas redes, sistemas e complexos equipamentos, jornalistas aparecem como espécies de ‘gerentes’ dessa máquina, como sua interface com o grande público’. (54) (…) O mundo caminha em descompasso da formação do jornalista: uma realidade cada dia mais complexa, uma formação cada vez mais precária. É exatamente o paradoxo de uma época e, ao mesmo tempo, o testemunho da inevitável superação desses profissionais. (…) Incapacitados de se aprofundar e de formar uma opinião pessoal fundamentada – normalmente pelo corre-corre da profissão, mas também por um preconceito generalizado e perigoso contra o aprendizado e a cultura intelectual – não conseguem decifrar ou não buscam o apoio de especialistas para analisar os dossiês, caindo facilmente nas manobras manipulativas das assessorias de imprensa de grandes indústrias, das fontes que deveriam questionar, dotadas, estas sim, de profissionais mais compenetrados e mais bem treinados na venda de suas posições. (55) (…) Os jovens desta época são funcionários mais facilmente adaptáveis a qualquer tipo de ordens ou exigências jornalísticas da empresa. Uma vez depurados das ideologias que encheram as cabeças de seus antecessores, esses jovens ‘branqueados’ , limpados da ‘doença histórica’ daqueles, ficam fascinados com outros valores, não tanto sociais, mas eminentemente simbólicos. Buscam ascender rapidamente na carreira, mas são individualistas (como deseja todo o sistema técnico atual), e desejam participar do brilho, da promoção, da publicidade que a imprensa oferece.’ (56)
É importante ressaltar que embora Ciro Marcondes Filho não seja um defensor da obrigatoriedade da formação superior específica em jornalismo, ele é favorável a que haja uma regulamentação profissional que garanta um mínimo de efetiva qualificação com formação não necessariamente específica.
Por mais que se tente fazer com que os cursos de jornalismo atendam à necessidade de formar seus alunos nos aspectos técnicos, teóricos, éticos e estéticos exigidos pela profissão, jamais se conseguirá fazer com que todos os graduados sejam, de fato, jornalistas. Não se trata aqui de ‘pescar’ as exceções que só confirmam a regra, para invalidar no varejo o que se conseguiria obter no atacado e no longo prazo com a instalação de bons cursos de jornalismo. Com base nas exceções, sempre se conseguiria invalidar os resultados de qualquer empreendimento. Ao contrário, trata-se, isso sim, de afirmar que teremos um contingente cada vez menos respeitável de jornalistas no que se refere aos aspectos éticos e técnicos se continuarmos a vender a ilusão de que se pode formar um tipo de profissional que depende decisivamente de atributos que não estão em todos os seres humanos e que não fazem daqueles que os possuem melhores nem piores que os demais.
Impossível, após todas as considerações aqui apresentadas, e em vista de tantas outras que com elas convergem direta ou indiretamente para o tema da vocação, crer que se possa conceber a formação superior de jornalismo como condição suficiente para o exercício da profissão.
O beco sem saída
Há fortes razões para crer que a concepção de que a formação superior específica como condição necessária ou suficiente para o exercício da profissão tenha levado o ensino de jornalismo brasileiro a permanecer refém de uma armadilha conceitual, na forma de uma busca permanente de soluções para problemas viciados e de respostas para questões recorrentes. O desencanto associado ao peso excessivo atribuído à formação superior em jornalismo nos países em desenvolvimento – aqui descrito de diferentes formas por Kucinski, Garcia Márquez e Marcondes Filho – já havia sido previsto, de um modo aproximado, por alguns pesquisadores antes da vigência do Decreto-lei 972, de 1969. É o caso de um estudo norte-americano de 1967, publicado em português somente em 1973, de Lucien W. Pye, professor de ciência política e diretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT):
‘A imprensa, ao apontar novas possibilidades de carreira, pode ajudar a quebrar o círculo vicioso causado por uma avaliação exagerada dos graus universitários. Enquanto as pessoas continuarem acreditando que o grau universitário será garantia absoluta para uma ocupação de status, e enquanto também algumas poucas ocupações forem vistas como prestigiosas, haverá, com certeza, frustração pessoal, desemprego de intelectuais e escassez de talentos para muitos empreendimentos novos, essenciais ao desenvolvimento.’ (57)
No caso do Brasil, a advertência de Pye deveria ter sido interpretada como um sinal de perigo para a estruturação dos cursos superiores. Além da permanente frustração e do sentimento de ‘correr atrás do próprio rabo’, o resultado foi um misto contraditório de uma base teórica fortemente ideologizada e anticapitalista com uma base de sustentação em trabalhos de teóricos norte-americanos que eram ultrapassados havia décadas nas próprias escolas de jornalismo dos Estados Unidos. Uma das mais precisas descrições desse processo foi sintetizada no livro O Adiantado da Hora, do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, de 1990, na época professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor-adjunto do jornal Folha de S.Paulo.
‘Não deixa de ser irônico que os mais encarniçados defensores da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão pertençam aos mesmos grupamentos ideológicos que sustentam posições xenófobas e condenam a hegemonia dos princípios do jornalismo dos EUA no Brasil. (…) Onde a pretensa visão crítica predomina, o que se vê é um antiamericanismo primário, baseado em leituras apressadas e atrasadas da Escola de Frankfurt ou do grupo latino-americano de Armand Mattelart e Ariel Dorfman. Mas esses são minoria. No geral, ‘as novas dimensões do jornalismo’, como as classificou Celso Kelly, autor de um currículo mínimo obrigatório do Conselho Federal de Educação para os cursos de jornalismo, foram definidas pelos autores americanos ingênuos das décadas de 1930 a 1950 e reproduzidas acriticamente por escritores brasileiros como o próprio Kelly, Luiz Beltrão, Mário Erbolato e outros.’ (58)
Recentemente, um estudo crítico de Hélio Schuch, professor de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, relacionou a ideologização dos objetos da pesquisa jornalística brasileira ao fato de que ‘embora com status universitário, a formação de jornalistas não segue a lógica universitária da especialização do ensino, e, logo, das atividades profissionais, como ocorre nas outras carreiras.’ Mais que isso, com sua ampla formação cultural e sólida bagagem científica, Schuch – que defende a obrigatoriedade do diploma e, apesar de profundas divergências conosco, nos dá a honra e o prazer de sua amizade –, faz um diagnóstico independente, profundo e rigoroso das deficiências do ensino do jornalismo no Brasil (59).
Nossa convicção de que o ideário brasileiro em torno do ensino de jornalismo envolve sérios vícios de origem foi corroborada nos últimos dias com várias declarações de fontes na mesma edição da revista CartaCapital, acima citada, em outra reportagem, de Flávio Lobo:
‘Enquanto nos EUA e na Europa importantes universidades e empresas jornalísticas buscam aprimorar a formação dos profissionais da área, no Brasil o imobilismo predomina. À mercê de regulamentações anacrônicas, interesses privados e pressões corporativas, o jornalismo é um caso tristemente exemplar da educação brasileira. (…) Em 1969, estabeleceu-se a obrigatoriedade do diploma. Uma reserva de mercado que dificulta o ingresso na profissão de gente vinda de outras áreas acadêmicas, cujo trabalho cotidiano nas redações pode ajudar a aprofundar reportagens, a ampliar horizontes intelectuais e temáticos e elevar padrões de qualidade. (…) ‘Depois de uma experiência de sete anos à frente do departamento de jornalismo da pioneira Cásper Líbero – período no qual o curso, que se encontrava em franca decadência, passou a ter o vestibular com o maior número de inscritos do país –, Marco Antonio Araújo defende a existência de graduação, mas é contra a exigência do diploma. ‘É essa obrigatoriedade que permite a manutenção de tantos cursos ruins’, avalia Araújo, diretor-presidente do Instituto Livre de Jornalismo (Ijor), criado em 2004.’ (60)
A concepção engessante de um caminho único para o acesso à profissão, criticada por Araújo e por vários outros docentes, tem impedido aos brasileiros alternativas viáveis como a formação por meio de cursos específicos de pós-graduação para profissionais de outras áreas, como mostra a experiência internacional, inclusive em Portugal, devidamente registrada em um documento oficial da Escola Superior de Comunicação Social, de Lisboa:
‘A tendência geral das sociedades contemporâneas para exigirem uma elevação dos níveis de estudos atingiu, naturalmente, o jornalismo, embora, com uma diferença notória em relação às profissões que requerem um diploma específico. O acesso ao jornalismo faz-se com recurso a cursos de comunicação ou jornalismo, mas também com base em outros cursos superiores ou universitários, acompanhados de formações ou pós-graduações específicas na área.’ (61)
Com base em todas essas ponderações que há muitos anos vêm sendo feitas por jornalistas, pesquisadores do jornalismo e até de sindicalistas da área em todo o mundo, que enfatizam a necessidade de qualificação profissional por meio do aperfeiçoamento da graduação específica, fazendo dela um diferencial na formação, e não uma obrigatoriedade, não há como concordarmos com as constantes declarações de muitos sindicalistas e docentes brasileiros, que têm insistido em dar outro sentido a tais manifestações, o que ainda infelizmente acontece, como se constata com a leitura da ‘Carta à Sociedade’, que na terça-feira (21/6), foi amplamente divulgada pela Fenaj e pelos 31 sindicatos a ela associados:
‘Trata-se, acima de tudo, de atender à exigência cada vez maior, na sociedade contemporânea, de que os profissionais da comunicação tenham um alto nível de qualificação técnica, teórica e principalmente ética.’ (62)
Aproveitando o tema dessa recente mobilização, vale observar que seu manifesto, que foi encaminhado a altos representantes dos poderes Legislativo e Judiciário, reconhece explicitamente parte da tese proposta neste artigo, mais precisamente o de o grau superior específico em jornalismo não é a única alternativa para assegurar a formação para o exercício pleno da profissão, ou seja, não é condição necessária, uma vez que, ipsis litteris afirma que:
‘(…) a existência de uma imprensa livre, comprometida com os valores éticos e os princípios fundamentais da cidadania, portanto cumpridora da função social do jornalismo de atender ao interesse público, depende também de uma prática profissional qualificada (…) uma das formas de se preparar, de se formar jornalistas capazes a desenvolver tal prática é através de um curso superior de graduação em jornalismo’ (63) [O grifo é nosso.]
No entanto, tendo expressado essas palavras, acima destacadas sem nenhum prejuízo de distorção por descontextualização, o referido manifesto incorre em contradição, pois afirma que a manutenção da sentença da 16ª Vara Federal de São Paulo:
‘fere frontalmente a sociedade em seu direito de ter informação apurada por profissionais, com qualidade técnica e ética, bases para a visibilidade pública dos fatos, debates, versões e opiniões contemporâneas, atacando portanto o próprio futuro do país e da sociedade brasileira’ (64)
É esse o discurso que tem sido usado para justificar a reserva de mercado, que por sua vez tem sido o principal estímulo para o aumento da criação de cursos de jornalismo no Brasil, hoje desproporcionalmente maior às nossas necessidades. ‘A proliferação de cursos é uma realidade que infelizmente tem contribuído para levar o jornalismo brasileiro ao empobrecimento. A verdadeira ‘selva acadêmica’ despeja em média quatro mil alunos por ano no mercado.’, afirmou em dezembro de 2003 Boanerges Lopes, professor da Universidade Federal de Alagoas e, nessa época, diretor-suplente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Município do Rio de Janeiro (65).
Na ocasião, Boanerges Lopes apontava a existência em todo o país de 256 cursos superiores de jornalismo, inclusive os não-reconhecidos pelo MEC. Para fins comparativos, vale a pena citar o caso da Itália, cuja população corresponde a um terço da brasileira e os níveis de analfabetismo são menores. Com o recente reconhecimento de seis cursos, esse país passa a contar agora com um total de somente 18, segundo dados da Ordine dei Giornalisti. São três cursos em Milão, três em Roma e as cidades com uma faculdade cada são Bari, Bologna, Nápoles, Pádua, Palermo, Perugia, Potenza, Salerno, Sassari, Toscana, Torino e Urbino (66).
As conseqüências dessa proliferação têm sido objeto de constantes e pesadas críticas de jornalistas com larga experiência. É o caso de Luiz Weis, ex-professor de sociologia da comunicação da USP, colaborador do Observatório da Imprensa e do jornal O Estado de S.Paulo, tendo anteriormente atuado como redator-chefe das revistas Superinteressante e IstoÉ, editor-assistente de Veja, editor político e apresentador do programa Perspectiva da TV Cultura, editor nacional de Visão e editor de assuntos especiais de Realidade. Embora tenha criticado alguns dos termos da referida sentença judicial, as palavras de Weis contra a obrigatoriedade estabelecida pelo Decreto-Lei 972/69 não deixaram de ser contundentes:
‘Com o entusiasmado apoio dos sindicatos de jornalistas, criou-se uma reserva de mercado que, a rigor, só serviu para encher os bolsos dos donos das escolas de comunicação e despejar às portas das redações uma atônita peonada de canudo em punho, que, salvo as raras e proverbiais exceções, passou pelo menos quatro anos de vida sem aprender nem a profissão nem o bê-á-bá do vasto mundo de que ela se ocupa’. (67)
Para fazer com que a profissão de jornalista e sua formação superior específica sejam valorizadas, é preciso acabar com os mecanismos supostamente protetores dos interesses da sociedade, como a reserva de mercado imposta pela obrigatoriedade do Decreto-lei 972. É preciso não só desencorajar a proliferação de cursos de jornalismo implantados tendo como motivação praticamente exclusiva o lucro rápido, mas também viabilizar a formação complementar de especialistas de outras áreas com vocação para o jornalismo e promover o aperfeiçoamento das escolas que efetivamente tenham sido estabelecidas com o objetivo de formar profissionais com espírito crítico e sólida bagagem intelectual.
Regulamentação necessária
Seríamos inconseqüentes se nos limitássemos a refutar a razoabilidade da exigência do diploma de jornalismo sem maiores considerações sobre a necessidade de regulamentação da profissão. Em meio à crise econômica global e suas conseqüências no mundo da comunicação, às sucessivas eliminações de postos de trabalho, ao crescente processo de concentração de propriedade dos meios de comunicação, à progressiva miscigenação e promiscuidade do espaço jornalístico com o do entretenimento e à pulverização dos valores éticos e de credibilidade, não seria defensável deixarmos de nos manifestar sobre um assunto que tem implicações no plano do jogo de forças e de interesses relacionados à imprensa, o qual abrange a relação de antagonismo – sem, no entanto, se reduzir a ela – entre jornalistas e empresas de comunicação.
Por mais que busquemos o equilíbrio em qualquer questão de princípios e nela evitemos a subordinação a interesses e outras externalidades, nosso silêncio sobre confrontos dos quais nos recusamos a participar de forma partidária – por não concordarmos eventualmente com nenhum dos pólos da disputa – seria uma interferência às avessas e travestida de abstenção. Deixaríamos, assim, o rumo das coisas entregue ao sabor do jogo de forças, mascarando o fato de estarmos favorecendo certamente o lado que está em vantagem. Tomando as palavras de Merleau-Ponty, agiríamos como alguém que, ‘calando-se, não transcende os erros rivais, deixa-os digladiarem-se e os encoraja, e em particular o vencedor do momento. Não é a mesma coisa que se calar mas dizer porque não quer escolher’ (68).
Promovida pelo Ministério Público Federal, a Ação Civil Pública contra a exigência do diploma, tendo como réu a União Federal, foi posteriormente secundada em sua autoria por um sindicato patronal. Após a liminar que em outubro de 2001 obrigou o réu, por meio das Delegacias Regionais do Trabalho, a não mais exigir diploma de jornalismo dos solicitantes de registro profissional, a Fenaj ingressou na Justiça Federal com recurso para ser aceita como pólo passivo na referida Ação e foi atendida. A partir disso, a Fenaj e os sindicatos a ela associados passaram a caracterizar todo o desenrolar do processo de forma a reduzi-lo a um confronto entre interesses patronais e sindicais.
Embora seja inegável que no atual contexto histórico as desregulamentações em geral são bem-vindas pelos que detêm o controle dos meios de produção, é desnecessário, em vista de tudo o que foi aqui apresentado, mostrar que essa caracterização do processo judicial em pauta é reducionista é enganadora. Não optamos por nenhum dos dois pólos que, no imaginário da sociedade, mostram-se como os únicos possíveis no atual jogo de forças e de interesses políticos e econômicos.
É inegável que os apelos à defesa da liberdade de expressão que tanto foram invocados pelos veículos de comunicação durante a campanha contra o CFJ no ano passado camuflavam interesses patronais e se destinavam principalmente a boicotar transformações que levassem a alguma forma de regulamentação da profissão de jornalista. Por outro lado, são inegáveis também a manipulação sectária e o desrespeito sistemático ao direito de expressar opiniões contrárias por parte de muitos sindicalistas.
Infelizmente, muitas das vozes que se ergueram contra o CFJ se recolheram, deixando de questionar os rumos da profissão e fazendo o papel de munição guardada para ser usada em outra ocasião, invariavelmente ao gosto dos que detêm o poder econômico. Em contrapartida, aqueles que foram atropelados por esse jogo pesado resistem a dialogar com as vozes contrárias, renunciam a promover uma ampla e irrestrita discussão da obrigatoriedade do diploma junto ao Legislativo e a toda a sociedade, ao mesmo tempo em que estimulam pressões contra o Judiciário, o qual, entre os Três Poderes, deve ser o mais impermeável a pressões políticas. Após tanto desrespeito demonstrado ao papel da Justiça como instância moderadora de excessos e erros dos legisladores, dela esperamos a preservação de um espaço profissional que permita o confronto de idéias e possibilite, com a sociedade, a construção de uma regulamentação do jornalismo voltado ao desenvolvimento humano.
Apêndice
Regulamentação da profissão de jornalista em países da União Européia, segundo Michel Mathien em Les Journalistes (ver nota 30).
Alemanha: não há obrigatoriedade de formação superior; a profissão é regulamentada por meio do reconhecimento conjunto, por parte das empresas jornalísticas e das organizações profissionais, de um período de aprendizado prático de 18 a 24 meses.
Bélgica: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado ao reconhecimento, por parte da organização profissional, de ausência de impedimentos; existem vantagens salariais para os diplomados.
Dinamarca: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado à licença emitida pelo sindicato nacional dos jornalistas.
Espanha: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado a ter nacionalidade espanhola, inscrição no registro de jornalistas e também à posse de diploma em ciências da informação ou de experiência profissional de dois a cinco anos.
França: não há obrigatoriedade de formação superior.
Grã-Bretanha: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado a um estágio em empresa jornalística ou, para os que não o conseguirem, a um curso preparatório do Conselho Nacional de Treinamento de Jornalistas.
Grécia: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é obtido por meio de diploma em jornalismo ou experiência de três anos na área.
Irlanda: não há obrigatoriedade de formação superior; não há nenhuma norma formal ou tradicional de acesso.
Itália: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado ao registro na ordem dos jornalistas, que é concedido somente após um estágio de 18 meses e aprovação em um exame de proficiência.
Luxemburgo: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado a licença do conselho de imprensa, que exige o compromisso com princípios deontológicos.
Países-Baixos: não há obrigatoriedade de formação superior; o acesso à profissão é condicionado a licença do conselho de imprensa.
Portugal: é obrigatória a formação superior, mas não específica em jornalismo; o acesso à profissão é condicionado ao registro no sindicato nacional (dado anterior à legislação citada na nota 36).
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Jornalista