Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Relatório Leveson e os exemplos para o Brasil

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (4/12) pela TV Brasil discutiu o ponto mais polêmico do recém divulgado Relatório Leveson: a regulação da mídia. Encomendado pelo governo britânico para investigar acusações contra o tabloide News of the World,o documento recomenda a criação de um órgão regulador para a mídia impressa britânica independente do governo e das empresas jornalísticas. Em 2010, o jornal, que pertence ao conglomerado de mídia do magnata Rupert Murdoch, foi acusado de espionagem, escutas ilegais e chantagem em um escândalo que envolveu políticos, jornalistas, membros da família real e policiais.

O juiz Brian Leveson disse no documento que o comportamento de profissionais do News of the World não foi um caso isolado e que a mídia britânica silenciou diante das denúncias contra o jornal. O juiz acredita que o órgão que regula a mídia impressa do Reino Unido, o Comitê de Queixas contra a Imprensa (PCC, na sigla em inglês) não atendeu às expectativas e que é preciso um sistema de regulação mais severo, baseado em uma Lei de Imprensa a ser criada. O órgão proposto não teria como integrantes jornalistas em atividade e poderia multar as empresas jornalísticas em até um milhão de libras. As duas mil páginas do relatório suscitaram divergências no governo britânico e podem servir como mote para a discussão sobre a regulação da mídia brasileira.

Para debater o tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista Aluízio Maranhão, editor de Opinião do jornal O Globo há dez anos. Maranhão tem mais de 40 anos de profissão e foi diretor de Redação do jornal O Estado de S.Paulo. EmSão Paulo, o programa contou com a participação dos jornalistas Suzana Singer e Caio Túlio Costa. Suzana é ombudsman da Folha de S.Paulo e, no jornal, já trabalhou comorepórter, pauteira, editora e diretora de revistas. Foi secretária de Redação, responsável pelo fechamento do jornal, por cinco anos. Caio Túlio foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira. Trabalhou na Folha de S.Paulo durante 21 anos. Foi um dos fundadores do UOL, do qual foi diretor geral até 2002. Ex-presidente do iG, atualmente é consultor de mídias digitais e professor de Ética Jornalística.

O modelo bizarro

Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines ressaltou que News of the World converteu-se em paradigma das “aberrações cometidas pela imprensa sensacionalista”. O jornalista relembrou que o inquérito foi instaurado com o “esmagador” apoio da sociedade, da imprensa, do Parlamento e do governo. Para Dines, o relatório reforça a autorregulação e a transfere a questão para a esfera pública – “em condições de atuar com agilidade e rigor, a posteriori, mas sem complacências”.

“A imprensa brasileira comportou-se como de hábito, tudo combinadinho, sem discrepâncias, tipo ordem unida: houve o registro do relatório no dia seguinte, sexta-feira [30/11], e, no fim de semana, o nome Leveson havia evaporado completamente das páginas dos jornais ou revistas. Autorregulação continua um assunto tabu na imprensa brasileira”, afirmou Dines, que avaliou que a reação da mídia americana ficou entre a ingenuidade e o cinismo.

O correspondente Silio Boccanera, que vive em Londres, contou que o ponto mais controverso do relatório é o que propõe um reforço jurídico nos métodos atuais de punir os abusos da imprensa. “Não é uma questão de respostas fáceis, sacode a consciência e a ética de muitos jornalistas divididos entre a defesa da liberdade de expressão e a necessidade de proteger vítimas inocentes dos abusos e dos erros da imprensa”, ponderou Boccanera. O jornalista sublinhou que a Justiça comum é lenta e cara nesses casos. “Propostas como a do juiz Leveson provavelmente funcionariam aqui neste país, onde se consegue distinguir bem entre entidade pública e um órgão do Estado. A BBC, por exemplo, é uma emissora pública não estatal e funciona bem dessa forma. No Brasil, tenho dúvidas se as leis para a imprensa não acabariam virando censura”, opinou Boccanera.

Ainda antes do debate no estúdio, o programa exibiu uma entrevista com o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, que foi presidente do Conselho de Comunicação Social (CCS).Para ele, a questão da autorregulação está ligada ao nível cultural de cada país. “Em princípio, o que deveríamos desejar é que houvesse alguns consensos que não obrigassem a que houvesse uma legislação. A regra no mundo não é essa. Dos 191 países da ONU, Estados Unidos e Inglaterra têm esboços de lei que não chegam a ser lei. Fora disso, só o Brasil não tem. Então, é razoável imaginar que uma democracia pode conviver bem com uma lei de imprensa”, avaliou o jurista.

Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia da Fundação Getúlio Vargas, também foi entrevistado: “O que é interessante no relatório é que ele parte do princípio que esse órgão deve surgir a partir da autorregulação. Então, ele diz que as próprias empresas de mídia têm que se reunir e criar um modelo específico para pensar a questão da mídia no Reino Unido”. Para Lemos, o debate sobre a regulação da mídia no Brasil precisa identificar questões pragmáticas e específicas. “Podem ser, por exemplo, levantadas a partir de agora, como aconteceu no caso da Inglaterra. Pensar um arcabouço mais geral sobre o que pode ser feito em relação a mídia”, defendeu o professor.

Liberdade vs. regulação

No debate ao vivo, Aluízio Maranhão ressaltou que, no Brasil, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009de revogar a Lei de Imprensa estabeleceu de maneira indiscutível que a liberdade de expressão é uma cláusula pétrea. Maranhão acredita que as discussões sobre a autorregulação no Brasil já avançaram. O editor de Opinião de O Globo citou como exemplo a decisão tomada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), no sentido de que a entidade não poderia funcionar nos mesmos moldes de instituições como o PCC inglês ou o Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), que acompanha o setor de propaganda no Brasil. A autorregulação caberia aos veículos a partir de diretrizes estabelecidas pelas próprias publicações.

“Há veículos mais avançados e outros menos avançados. Eu acho que isso não deve assustar ninguém. Olhando o caso inglês, quando a autorregulação não funcionou, funcionou a polícia, funcionou a Justiça, como deve ser. Não nos esqueçamos de que não houve impunidade”, enfatizou o jornalista. Para Maranhão, é preciso levar em conta a conjuntura política e social do país quando de trata de debates em torno da regulação da mídia: “Se na Inglaterra há quem tenha dúvidas e tema um retorno ao século 17, que dirá aqui, com a nossa cultura ainda autoritária, de um Estado mais pesado. Nós estamos aprendendo a conviver democraticamente”.

A discussão em torno de liberdades é eterna, na opinião de Maranhão, mesmo em países onde o regime democrático é mais consolidado, como nos Estados Unidos. Na Inglaterra, a ideia de que um órgão como o PCC respaldado por uma legislação é ilusória porque qualquer entidade com força de lei vai atuar, em algum momento, de forma autoritária. Maranhão destacou que, no Brasil, o artigo da Constituição que garante a liberdade de expressão não é regulamentável. Outro ponto enfatizado pelo jornalista foi a sensibilidade da sociedade que, com o tempo, despreza produtos jornalísticos extremamente popularescos.

Avanços lentos

Na avaliação de Suzana Singer, o Brasil precisa avançar mais rapidamente no debate sobre a mídia. Apesar de a ANJ ter recomendado que os veículos adotassem mecanismos de avaliação e comunicação com o público, atualmente apenas dois jornais brasileiros têm a figura de um ombudsman. Para ela, todos os órgãos de mídia deveriam instituir uma ouvidoria. “Você tem no Brasil muito pouco respeito pela publicação de correções, de cartas com algum contraditório, o outro lado”, criticou Suzana. A mídia brasileira reconhece a necessidade de algum tipo de regulação, mas não está acostumada a prestar contas, a ser transparente e a explicar o seu modus operandi.

Dines ressaltou que a regulação da mídia precisa ser discutida por todos os segmentos da sociedade, mas os donos de veículos de comunicação são “impermeáveis” ao debate. Os empresários deveriam ter um pouco de flexibilidade para não ficarem com a pecha de irresponsáveis. Suzana Singer destacou que o ouvidor precisa ser independente, ter meios de receber as denúncias da sociedade e expressar a sua opinião, com colunas em veículos impressos ou programas na mídia eletrônica. Para ela, o debate sobre a regulação da mídia precisa ser travado: “É uma questão de vontade, de parar de ficar na defensiva. Eu acho que essa discussão hoje em dia é uma discussão de surdos. De um lado, fica-se repetindo que é uma tentativa de censura. Do outro lado, é a suposta democratização dos meios”.

A internet, na opinião de Suzana Singer, está se tornando um veículo capaz de fazer um contraponto à grande mídia ao publicar a opinião da população e repercutir direitos de resposta que foram omitidos pela imprensa tradicional. A jornalista afirmou que mais importante do que punir jornalistas individualmente por suas falhas é pensar sobre como as redações que os empregam estão estruturadas. Em casos clássicos recentes, como de Jayson Blair, repórter do New York Times que inventava personagens e fatos; do ex-apresentador da BBC Jimmy Savile, acusado de uma série de abusos sexuais; ou do escândalo do tabloide News of the World, a conduta das chefias contribuiu para agravar os desvios dos profissionais.

Mídia britânica pressionada

Para Caio Túlio Costa, a mídia brasileira cobriu bem o relatório Leveson, mas logo em seguida se calou. O jornalista chamou a atenção para o fato de que as denúncias contra oNews of the World só vieram à tona por conta da liberdade de imprensa. Foi um jornal concorrente, o Guardian, quem publicou as primeiras notícias contra o tabloide de Murdoch. Caio Túlio afirmou que, além da aplicação de multas, o relatório propõe que os jornais investiguem adequadamente as reclamações e publiquem os pedidos de desculpas em destaque.

“Ele está tratando de um tema que, no fundo, nenhuma democracia no mundo resolveu a contento, que é a questão do direito de resposta, do tratamento às vítimas, e tudo o que uma notícia da imprensa pode provocar – seja de bom ou de ruim – para a reputação de um nome ou de uma empresa”. O jornalista comentou que, recentemente, o primeiro ministro britânico David Cameron – que é contrário à criação de uma Lei de Imprensa na Inglaterra – convocou uma histórica reunião com editores de grandes jornais. No encontro, Cameron advertiu que se a imprensa não promover a autorregulação, o Estado terá que interferir.

Caio Túlio disse que o governo britânico está pressionando a indústria para que resolva a questão da regulação com a criação de um órgão que não seja leniente como o PCC. “Aqui no Brasil, eu acho que nós já temos condição para começar uma discussão para a autorregulação. Eu temo muito é a questão da lei e de uma lei do Congresso, porque não vejo caldo de cultura necessário para uma lei que garanta totalmente a liberdade de expressão e evite censuras prévias”, disse o jornalista.

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Um documento com lugar na história – Carlos Eduardo Lins da Silva

Areopagítica, 368 anos depois – Alberto Dines

O vespeiro do controle externo – Luciano Martins Costa

Inquérito Leveson: tentativa de apagar a fogueira pode deflagrar um incêndio – Carlos Castilho

Site oficial do Inquérito Leveson

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O inquérito Leveson

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 668, exibido em 4/12/2012

O dia 29 de novembro está destinado a entrar para a história da imprensa mundial. Naquela quinta-feira, em Londres, capital da liberdade de imprensa, o lorde-juiz Brian Leveson divulgou o relatório da comissão de inquérito que presidiu para investigar a sucessão de abusos cometidos pelo tabloide News of the World, do tubarão Rupert Murdoch.

O tabloide, entrementes, fechou. Seus editores e acionistas foram indiciados e processados, o episódio tornou-se símbolo das aberrações cometidas pela imprensa sensacionalista sob o manto das garantias à liberdade de expressão. O inquérito foi instaurado com o esmagador apoio da sociedade inglesa, da imprensa, do Parlamento e do gabinete. Levou 16 meses para ser concluído, seu relatório tem quase duas mil páginas e suas recomendações ocupam cerca de quarenta.

Seu grande mérito é a ênfase na autorregulação da imprensa, por isso condena com veemência o antigo órgão autorregulador, o PCC pela sigla inglesa, cuja complacência e omissão foram os responsáveis diretos pelos abusos da mídia. A autorregulação, para Leveson, deve permanecer na esfera pública.

Seu segundo mérito foi o de resistir a todas as tentações para sugerir qualquer interferência do Estado ou dos políticos no controle da imprensa. Não dá a menor chance para a censura prévia ou para o chamado "controle social". Reforça a autorregulação e a empurra para a efetiva esfera pública, em condições de atuar com agilidade e rigor, a posteriori, mas sem complacências.

A imprensa brasileira comportou-se como de hábito, tudo combinadinho, sem discrepâncias, tipo ordem unida: houve o registro do relatório no dia seguinte, sexta-feira, e no fim de semana o nome Leveson havia evaporado completamente das páginas dos jornais ou revistas.

Autorregulação continua um assunto tabu na imprensa brasileira. Jamais poderá ser adotada porque sequer pode ser discutida.

A reação da mídia americana situa-se entre a ingenuidade e o cinismo. Antes mesmo da divulgação do Relatório Leveson, o New York Times advertiu para os perigos de uma legislação sobre imprensa, esquecido que a FCC, criada há 78 anos pelo presidente Roosevelt, interfere ostensivamente na competição entre empresas e no conteúdo da mídia eletrônica.

A grande surpresa foi o desempenho destemido, audaz, verdadeiramente revolucionário do mais importante diário de economia e negócios do mundo, o naturalmente conservador Financial Times. escreveu o FT naquele seu inconfundível papel cor de salmão: “Cabe à indústria acolher o relatório, mesmo que não concorde com uma linha sequer de suas recomendações. O catálogo de abusos expostos no relatório confirma que parte da indústria jornalística estava fora de qualquer controle, há inúmeros exemplos de conduta temerária, de poder sem responsabilidade. O quarto poder parecia aquecido nos privilégios das rameiras”.

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A mídia na semana

 >> Vai acabar a era do “jornalismo fiteiro” e da arapongagem explorada sem limites pela mídia. Pela primeira vez um escândalo de grandes proporções nos bastidores do governo é denunciado pelo próprio governo. A Operação Porto Seguro, realizada de forma competente e exemplar pela Polícia Federal, estabelece o paradigma da legalidade na apuração de denúncias e escândalos. Há algum tempo, veículos jornalísticos deixaram de publicar fitas obtidas clandestinamente por terceiros. Mas esta entrada da Polícia Federal muda o quadro e obriga a imprensa a investigar antes de denunciar.

>> Com a melhor das intenções e uma atuação altamente irresponsável, o apresentador José Luiz Datena, da Band, assumiu as negociações ao vivo, em tempo real, com um sequestrador para a libertação de seus dois reféns. Aconteceu na quarta-feira (28/11). Era uma briga de família, o sequestrador prendeu a mãe e a irmã e ameaçava matá-las com uma faca. O criminoso rendeu-se felizmente, mas isso não nos impede de denunciar que esse tipo de ação não é jornalismo, é o pior tipo de sensacionalismo que coloca em risco duas vidas e deixa as autoridades policiais sem qualquer ação. Se a Band tivesse um ombudsman ou ouvidor, este comportamento já teria sido repudiado publicamente.

>> Era sabido, mas nenhum dos lados gostava de lembrar que a luta entre os Kirchner e o grupo de mídia Clarín é muito recente, começou em 2007. Até então os governos peronistas deram todo o apoio à expansão do poderoso império midiático argentino. Só agora, quando o jornal resolveu criticar certas ações do governo, é que este se lembrou de cortar suas asinhas. Quem revelou os bastidores deste confronto foi a jornalista investigativa independente Graciela Mochkofsky no livro recém publicado no país vizinho – O pecado original. A repórter Sylvia Colombo, da Folha, entrevistou no último domingo a corajosa jornalista argentina e colocou os pontos nos is.

>> Uma festa para os olhos, banquete para a memória coletiva, acervo para a história do Rio e da imprensa brasileira. O livro Irineu Marinho, imprensa e cidade, de Maria Alice Rezende de Carvalho, é uma biografia, uma reportagem, um painel e um álbum de recortes dedicado ao fundador dos mais importantes vespertinos que já tivemos, A Noite e O Globo, e o artífice de um dos maiores grupos de mídia do planeta. Quando descendentes sabem lembrar os antepassados, a sociedade inteira é beneficiada.