Os conflitos no mundo árabe ainda estão longe de terminar, mas a maioria dos jornais já reduziu o espaço para o tema no noticiário cotidiano. Enquanto continuam as refregas no que resta do domínio de Kadaffi na Líbia e o Ocidente segue de olhos fechados para os crimes do regime sírio contra seu próprio povo, pode-se arriscar um balanço da cobertura feita pela imprensa brasileira, no rastro de um debate promovido nesta quarta-feira, 14, durante a 10ª Semana de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.
Paralelamente, discutiu-se também a influência da cobertura jornalística na imagem que o mundo passou a ter dos árabes e muçulmanos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e das guerras que se seguiram.
Primeira observação a ser feita: ao se referir a movimentos políticos radicais no mundo árabe e muçulmano em geral, a imprensa ainda os qualifica como “fundamentalistas”. A expressão não tem origem no islamismo e não guarda uma relação histórica com a religião predominante no Oriente Médio e norte da África.
A ocorrência original dessa palavra, no sentido que lhe é dado hoje, foi registrada pela primeira vez no final do século XIX, nos Estados Unidos, quando grupos protestantes conservadores se reuniram no Congresso Bíblico Americano, no Estado de Nova York, segundo texto apresentado em 2007, durante a XIII Conferência Brasileira de Psicoterapia de Grupo, pelo psicoterapeuta Sebastião Molina Sanches.
A expressão foi publicada com esse sentido pela primeira vez em 1895, como uma autodefinição do movimento de protestantes contra as idéias da chamada “teologia liberal” ou “liberalismo teológico” – linha de interpretação de textos religiosos que também se relaciona com o movimento católico conhecido como Teologia da Libertação. Era, então, uma reação dos religiosos conservadores contra idéias importadas para os Estados Unidos do Iluminismo europeu. Uma das questões combatidas pelos fundamentalistas protestantes era a interpretação histórica dos fatos bíblicos. Portanto, a expressão “fundamentalismo” definiria melhor, hoje em dia, os radicais do Tea Party americano do que grupos terroristas que, essencialmente, pouco têm a ver com o islamismo.
A dimensão humana omitida
Outra questão que precisa ser esclarecida é a natureza das revoltas que ocorrem no mundo árabe desde os primeiros dias deste ano. A imprensa costuma tratar todos os povos árabes e outras nacionalidades que têm o islamismo como religião predominante como uma massa igual e disforme.
Afirma-se, por exemplo, que os líbios têm uma “sociedade tribal”, confundindo o país mediterrâneo, onde a imensa maioria da população vive em cidades médias e grandes ao longo do litoral, com as cada vez mais raras tribos nômades de paises saharianos e das montanhas ao norte do Afeganistão.
A imagem que a imprensa passa dos árabes em geral não combina com a realidade, e, como sempre, o cenário de guerra esconde a verdade e exacerba os aspectos mais negativos. Primeiro, a sociedade líbia é composta de clãs que se mesclam conforme a região, embora nas principais cidades haja predominância de determinadas famílias no poder político e militar, no comércio ou na burocracia. Trata-se, porém, de uma organização completamente diferente do que se convenciona seja uma “sociedade tribal”.
Sob o regime de Kadaffi, essas relações de clãs se deterioraram pela passagem transversal, na população, do poder discricionário originado na família do ditador. Quem já visitou a Líbia e outros paises árabes em tempos de paz sabe que a realidade é bem diferente do retrato pintado pelos correspondentes de guerra.
Especializados na descrição de momentos extremamente críticos, quando boa parte da população se dedica quase exclusivamente a garantir a sobrevivência, os repórteres de guerra não são os melhores analistas para situações de normalidade. Portanto, seu trabalho deve ser visto exatamente como é: o relato de uma situação anômala, que em algum momento vai estar terminada.
Finalmente, é preciso examinar com cuidado as motivações de cada povo envolvido no contexto chamado genericamente de “primavera árabe”. Para os iemenitas, a revolta é recurso extremo contra a mistura de opressão com a mais extrema miséria. Para os egípcios, trata-se de romper o ciclo de humilhações, privações e vergonha diante de um estado opressor e corrupto. Para os líbios, a questão estava escrita num cartaz exibido por um cidadão de Bengazi, flagrado pelas câmaras da CNN no mês de julho passado. “Ana rajul”, dizia o cartaz, em árabe. Em português, significa: “Sou um homem”, ou “sou um ser humano”.
Essa a dimensão que a imprensa ainda não conseguiu captar.