Desde que os primeiros jornalistas deixaram as redações para trabalhar em empresas e outras organizações, discute-se a questão do status profissional do assessor de imprensa. Em artigo de 2009 [no livro A imprensa e o dever da liberdade (São Paulo, Contexto)], o jornalista Eugenio Bucci foi taxativo: ‘Jornalismo e assessoria de imprensa são duas profissões diferentes e não podem ser regidas pelo mesmo código de ética’.
O argumento central é elaborado em torno do código de ética do jornalismo [a versão do código de ética defendida pela Federação Nacional de Jornalismo pode ser encontrada em seu site], que diz que a prática jornalística deve se pautar, acima de tudo, pelo interesse público. Por essa lógica, o profissional que se dedica aos interesses de uma empresa ou organização específica, como é o caso dos assessores, não poderia ser chamado de jornalista.
Antes de condenar os assessores de imprensa ao limbo das definições profissionais, é preciso discutir alguns conceitos.
Primeiro, há dificuldade em definir, de forma unânime e universal, o que é jornalismo. Em todo o mundo, a definição de jornalismo é dada em digressões poéticas ou em expressões de uma mitologia ética.
Segundo o professor Marc Deuze [‘What is journalism? Professional identity and ideology of journalists reconsidered’, London, Thousand Oaks, 2005], antes de ser profissão, jornalismo é uma ideologia difusa, que carrega inconsistências e contradições. Em geral, os valores defendidos pelos jornalistas são:
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Interesse público: os jornalistas proveem um serviço público ao defender e se orientar pelos interesses de toda a sociedade. São como cães de guarda (ou watchdogs, do original) do público;**
Objetividade: os jornalistas são imparciais, neutros, objetivos, justos e, por isso, críveis;**
Autonomia: os jornalistas devem, necessariamente, ser autônomos, livres e independentes em seu trabalho;**
Imediatismo: os jornalistas devem ter o senso de atualidade e velocidade, que é inerente ao próprio conceito de notícia;**
Ética: os jornalistas são éticos e legítimos.Tempo real
As contradições residem, sobretudo, na evolução das práticas profissionais, da própria sociedade e das expectativas comerciais da indústria jornalística.
O conceito de interesse público, por exemplo, conforme defendido pelos jornalistas,é incompatível com a sociedade contemporânea. O princípio clássico, de dizer o que a sociedade precisa ouvir, pressupõe que jornalista esteja acima da sociedade que o cerca, seja intelectualmente, seja em termos de acesso ao conhecimento.
Em tempos de audiência fragmentada e acesso irrestrito à informação, o que tem acontecido é mais uma amplificação das conversas da sociedade do que o inverso. O papel do espectador tradicional já não existe. Atualmente, a sociedade define a agenda pública por si mesma, com pouca, ou nenhuma, interferência dos meios de comunicação de massa, como os jornais.
Outro ponto que tem de ser lembrado é que o jornal é um produto. Como tal, tem um público-alvo definido, de quem deve atender todas as expectativas. E isso inclui, decisivamente, a definição da pauta. Um jornal econômico que trate exclusivamente de cultura, ou um jornal local que discuta temas globais, será rejeitado por seus consumidores.
Nesse sentido, os jornais devem trabalhar a favor não do interesse público, mas do interesse de seu público.
Uma segunda contradição é a pretensa objetividade jornalística. Apesar de este ser um dos valores com que os jornalistas mais se identificam, é consenso que a neutralidade absoluta é uma ficção.
Basta lembrar que a Folha de S. Paulo afirma, em seu primeiro editorial, que é ‘quase sempre impossível atingir a neutralidade absoluta. Ao contrário, isso é raramente factível. Existem, na realidade, descrições mais neutras, ou seja, mais objetivas que outras; de onde se deduz que a neutralidade é uma quimera, mas aproximar-se de neutralidade não é‘ [Projeto Editorial de 1981, disponível aqui, em agosto de 2010].
O professor Mark Deuze lembra que o discurso da objetividade, que às vezes assume quase sinônimos como ‘distância profissional’ e ‘imparcialidade’, evoluiu da obrigatoriedade para a eterna busca. Se por um lado a declaração de princípios se torna mais justa, por outro torna os profissionais imunes a críticas.
O discurso da autonomia ou independência jornalística, por sua vez, é, talvez, o menos sustentável quando confrontado com a prática. Qualquer tipo de interferência que não tenha motivação puramente jornalística pode ser considerado contrário à ideologia profissional [por essa lógica, o trabalho do editor é jornalisticamente justificado]. Dois exemplos fáceis, e mais raros em jornais sérios, são a interferência comercial e a orientação editorial dada pelo controlador acionário ou político.
Sobre esse ponto, o Prof. Pierre Bourdier [L’emprise du journalisme. In: Actes de la recherche em sciences sociales. Vol.101-102, mars 1995] afirma que o grau de autonomia de um veículo jornalístico pode ser medido pela parte de sua receita que tem origem em publicidade ou em ajuda do Estado (em forma de publicidade, propaganda ou subvenção). Mais livre será aquele que depender menos do governo e do mercado.
Ora, nos últimos anos temos visto que a circulação de jornais caiu vertiginosamente, tornando-os cada vez mais dependentes de verbas publicitárias privadas e estatais. Da mesma forma, as mudanças na estrutura do mercado têm feito com que o número de periódicos diminua ano a ano, aumentando a dependência dos repórteres com relação aos locais onde trabalham. Outra forma de interferência na prática jornalística, esta muito mais sutil, é o clamor público, que influencia na pauta e no direcionamento das apurações.
Já o imediatismo, a necessidade de noticiar ‘em tempo real’, de preferência antes da concorrência, se por um lado justificou historicamente a existência do jornal, por outro, tornou-se o maior dos desafios enfrentados pelos veículos atualmente.
Códigos de conduta
Os jornais surgiram, dentre outros motivos, para divulgar as novidades (daí o termo news), transformando-se em produto essencial, em um ambiente onde não havia outro modo de tomar conhecimento dos acontecimentos que não fossem os meios informais.
Em tempos de Twitter, Facebook e afins, é cada vez mais difícil encontrar furos de reportagem e matérias exclusivas. [Inclusive, cada vez mais as fontes publicam os furos antes do jornal. Um exemplo é o caso da seleção holandesa que divulgou, pela conta de Twitter de seu treinador, a escalação para a final da Copa do Mundo de 2010 (fonte: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/esporte/2010/07/11/SELECAO-HOLANDESA-DIVULGA-ESCALACAO-PARA-FINAL-PELO-TWITTER.htm, acessado em agosto de 2010)] Mais ainda, na ânsia de publicar rapidamente as informações, os repórteres incorrem, com frequência cada vez maior, em erros primários, tanto de apuração quanto de ortografia.
Dessa forma, se consideramos o repórter como o profissional cuja função é coletar, redigir, editar e publicar informações do cotidiano para a posterior publicação em órgãos de imprensa (qualquer que seja o meio), temos de assumir que:
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Todo repórter defende o interesse do veículo de imprensa onde trabalha;**
O qual por sua vez está comprometido com os interesses do seu público leitor e limitado, em certo grau, pelos interesses de seus principais anunciantes ou investidores;**
Todo veículo de imprensa segue orientação editorial, formal ou não, e, portanto, o repórter deve a ela submeter-se;**
E a orientação editorial não só define a pauta a ser desenvolvida, mas a pauta, em si, é um limitador da atuação do repórter. [Pierre Bourdier diz que a autonomia de um repórter pode ser medida pela: a) Concentração do mercado jornalístico (quanto menos possíveis empregadores, menor a autonomia); b) Linha editorial do jornal (se mais comercial ou mais intelectual); c) Posição dentro do veículo (quanto mais notável ou mais alto na hierarquia, mais importantes são as garantias estatutárias); d) Capacidade de produção autônoma de informação (vários são dependentes viscerais de assessorias ou posições oficiais).]Logo, pode-se questionar se o trabalho desenvolvido por um repórter, que trabalha em veículos de imprensa, deve ser considerado jornalismo, da ótica do que se convencionou como o código da profissão. [Pode-se argumentar que um repórter trabalhando de casa é mais autônomo ou menos comprometido, mas o limite reside na contradição entre interesse pessoal e interesse público. Até onde um profissional sem independência financeira completa nem proteção institucional ou estatutária pode ser considerado autônomo? Ou quantas Yoani Sánchez e Judith Torrea existem e por quanto tempo elas resistirão?]
Por outro lado, é preciso discutir o que é o assessor de imprensa. Enquanto as definições de jornalismo se situam em âmbito mais mítico/ideológico do que profissional, as que tratam de assessoria de imprensa são excessivamente operacionais e ferramentais, e reúnem conceitos de Relações Públicas, da Publicidade e do Jornalismo.
Segundo a FENAJ [em seu Manual de Assessoria de Imprensa, disponível aqui, em setembro de 2010], a assessoria de imprensa é o ‘Serviço prestado a instituições públicas e privadas, que se concentra no envio frequente de informações jornalísticas dessas organizações para os veículos de comunicação em geral’.
Neste artigo, vamos considerar uma visão mais ampla que a da FENAJ. O assessor de imprensa é, para estes autores, o profissional responsável por estabelecer o relacionamento entre instituições (privadas ou públicas) e veículos jornalísticos.
O profissional de assessoria tem a dupla função de atuar junto à imprensa, identificando informações de interesse na organização onde trabalha, dando visibilidade a seu assessorado e defendendo sua imagem e reputação, e de fazer com que as expectativas e demandas dos jornais tenham voz dentro das organizações.
Para que o relacionamento entre imprensa e assessores se estabeleça, é necessário que repórteres e assessores de imprensa compartilhem:
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Confiança: o repórter tem de considerar a assessoria e a empresa como atores legítimos para que suas histórias e versões tenham credibilidade;**
Linguagem comum: os repórteres, geralmente, não são especialistas em áreas técnicas, assim como o público. Além disso, utilizam termos e jargões próprios, como em toda profissão. O assessor tem de ter a habilidade de ajustar os conteúdos para um registro de linguagem apropriado;**
Ferramentas: há um conjunto de ferramentas de relacionamento, como releases, reuniões, almoços etc., que devem ser bem desenvolvidos para que apresentem resultados.**
Rituais: repórteres e assessores de imprensa desenvolveram códigos de conduta específicos para harmonizar seus interesses, como forma de abordagem, postura profissional, horários e locais de convívio etc.Briga de irmãos
Por tudo isso, a maioria dos profissionais que trabalham em assessoria de imprensa tem, necessariamente, formação jornalística, seja ela prática ou acadêmica.
Nesse sentido, o melhor assessor de imprensa é aquele que escreve um release eficaz e, não só pelo domínio das ferramentas, mas pelas relações pessoais e profissionais que se desenvolvem ao longo do tempo, consegue fazer com que seu material se destaque entre os milhares enviados às redações todos os dias.
Há ainda um último conceito que deve ser analisado e sobre o qual, para muitos, repousa a maior diferença entre as duas práticas: a ética jornalística. Segundo o argumento inicial, repórteres e assessores teriam éticas distintas por terem objetivos profissionais diferentes.
Esta afirmação remete, na verdade, a uma questão anterior: há éticas particulares ou apenas uma ética geral?
De acordo com o Professor Carlos Nougué [no seminário ‘Caminhos da filosofia: ética, política e metafísica’, no Centro Cultural do Banco do Brasil, em fevereiro de 2009], ‘existe apenas uma ética e que vale para todos os homens de todas as épocas e lugares; ética geral da qual derivam suas aplicações positivas e práticas. O que não invalida a existência de uma ética jornalística, desde que esta seja uma concretização particular e prática daquela ética geral. ‘Desta forma, pode-se falar de uma ética própria da profissão de repórter e outra da de assessor de imprensa, se as entendemos como concreções positivas da ética jornalística como um todo, a qual, como vimos, já é uma concreção positiva da ética geral da humanidade.’
Considerando esse panorama, vemos que os exercícios da reportagem e da assessoria de imprensa têm mais aspectos comuns do que distintos. As duas práticas derivam de uma mesma matriz ideológica, o jornalismo, e estão sujeitas às mesmas contradições e limites éticos e profissionais.
Há, sem dúvida, diferenças nas abordagens cotidianas. Na busca da notícia, por exemplo, aos repórteres se exige que revelem publicamente todas as informações obtidas. Ao assessor de imprensa, por outro lado, permite-se a omissão de alguns fatos ou dados, no interesse e na defesa do assessorado.
Entretanto, em nenhum caso é permitido faltar à verdade, sob pena de perda de credibilidade e confiança dos leitores ou dos interlocutores.
Conclui-se, portanto, que a discussão entre repórteres e assessores nada mais é que uma briga entre irmãos, que disputam entre si quem é mais legítimo. Repórteres e assessores de imprensa são jornalistas, que se diferenciam, mais do que tudo, pelo local de trabalho, mas que são norteados pela mesma matriz ideológica.
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Respectivamente, chefe do Departamento de Jornalismo da ESPM-Rio e diretor da Cajá – Agência de Comunicação