No que entendo ser uso do direito de resposta, venho manifestar, por meio do arrazoado que se segue, minha discordância do artigo publicado na página do Observatório da Imprensa, no dia 4/5/2004, na seção Caderno da Cidadania, intitulado ‘Polícia Federal: Greve ou quartelada?’, de autoria do procurador da República Marco Aurélio Aydos, cujo conteúdo considero equivocado, porque sem respaldo nos fatos e eivado de uma série de considerações de cunho unicamente subjetivo.
São as palavras do procurador, ao referir-se à greve dos policiais federais:
‘Mas como afinal consegue sustentar um movimento ilegítimo sobre a bandeira do ‘cumprimento da lei…’; ‘abuso de direito’; ‘bandeira falaciosa do movimento’; ‘o movimento auto-intitulou-se o único e o correto leitor da lei’; ‘Por que não buscaram a Justiça (..)?’; ‘Para desmistificar essa aura de legitimidade, precisamos da paciência do leitor por um pouco mais de 15 segundos’; ‘O ‘nível superior’ exigido para ingresso em cargo que é por sua natureza de nível médio na hierarquia administrativa’, ‘formação específica obrigatória em Escola de Polícia, similar à do militar’; ‘Para ingresso em cargo de nível médio pode ser exigido diploma superior’, ‘Se querem alterar todo o sistema de organização administrativa da Polícia Federal, os agentes têm o mesmo direito que todos nós, cidadãos comuns – o de pleitear a mudança ao Poder Legislativo’, ‘O movimento dos agentes de Polícia Federal, fundamentado em reivindicações de viés ‘igualitário’, na melhor das hipóteses representa enorme dano social, pois quebra seriamente a coesão da corporação’, ‘a histeria igualitária do movimento, produzido sobre bases falsas e ilegítimas’.
Da aventada ilegitimidade da greve
O ilustre articulista ignorou solenemente pareceres como os do TCU, da AGU, do próprio Ministério de Orçamento e Gestão, bem como decisões de primeira instância da Justiça Federal do Ceará, que são favoráveis ao pleito dos policiais federais; preferiu taxar o movimento, com base no seu exclusivo e indiscutível juízo, de ‘um caso raro de conflito em que um dos lados não tem direito nenhum…’.
Penso que essas instituições, consideradas sérias, embasaram-se em fundamentos jurídicos, no mínimo, plausíveis para emitir aqueles julgamentos; já os fundamentos invocados pelo douto autor da matéria em questão trilham, de forma muito contumaz, considerações depreciativas, eminentemente subjetivas, como quando se refere a ‘histeria igualitária’ e ‘bases falsas e ilegítimas’; será que o membro do Ministério Público tornou-se o ‘senhor da verdade’, ou ‘auto-intitulou-se o único e o correto leitor da lei’? (palavras do próprio procurador).
Razão da greve
Faz pouco tempo, o policial federal percebia diárias de nível médio. Após pareceres do TCU – Tribunal de Contas da União, bem como, da AGU – Advocacia Geral da União, sobre a aplicação da Lei 9.266/96, que passou a exigir nível superior para as funções de agentes, escrivães e papiloscopistas, ficou estabelecido categoricamente que as diárias deveriam ser equivalentes ao nível exigido pela lei, qual seja, superior.
O direito à percepção de diárias de nível superior, em razão de ser incontestável, foi reconhecido administrativamente, sem qualquer ressalva por parte do governo federal. Diante disso, pergunta-se: como é possível o mesmo órgão interpretar uma lei que trata do mesmo tema, de forma distinta? Será que a aplicação da lei em questão, verdadeira razão da greve, não está sendo tratada com dois pesos e duas medidas?
‘Quartelada’
Para fins de esclarecimento, a palavra ‘quartel’ vem do francês ‘quartier’, que significa edifício que aloja tropas, caserna. O procurador comete um lamentável equívoco, talvez por resquícios ideológicos ou por carência de informações, ao suscitar dúvidas quanto ao movimento paredista dos policiais federais, chamando-o de ‘quartelada’. A palavra ‘quartelada’ segundo o dicionário Aurélio, significa ‘rebelião ou motim suscitado por militares com o fito de tomar o poder’.
A Polícia Federal, ao menos enquanto estiverem em vigor as disposições constitucionais que a regem, é uma instituição pública, civil, sem fins lucrativos, composta por servidores civis, que ocupam cargos considerados carreiras de Estado, o que nos leva a concluir que as delegacias não são casernas, as superintendências não são quartéis e nem os policiais federais são tropas.
Usar a palavra ‘quartelada’ para se referir ao movimento dos policiais federais demonstra falta de respeito e preconceito para com servidores que são considerados ‘longa manus’ não só do Poder Judiciário, como também do próprio Ministério Público. Compará-los a soldados revoltos, insurretos, que de forma despropositada e delinqüente estariam tentando tomar o poder é, no mínimo, uma irresponsabilidade.
O procurador afirma que ‘os contornos do movimento e sua iminente radicalização representam algum perigo à estabilidade democrática, para o qual as instituições de preservação devem estar vigilantes’. Ora, a Polícia Federal possui hoje aproximadamente sete mil homens e mulheres, número insuficiente, não só para atender à real necessidade do país como, a meu ver, insuficiente para ameaçar os 180 milhões de brasileiros, a democracia e o poder constituído, especialmente sabendo-se que a maior parte do efetivo faz uso de revólveres calibre 38 de cinco tiros, adquiridos, em sua maioria, às custas de sua própria fazenda.
Aliás, a propósito da insuficiência dos quadros da Polícia Federal, a bem da verdade, esta só não realiza a chamada ‘operação-padrão’ de forma sistemática devido à falta crônica de pessoal; entretanto, foi justamente a canalização de contingente maior de pessoal para essa relevante função, por ocasião da greve, que impediu a saída do Sergio Naya do país, bem como possibilitou apreensão de vários quilos de entorpecentes.
Nível superior e nível intermediário
O procurador afirma: ‘O ‘nível superior’ exigido para ingresso em cargo que é por sua natureza de nível médio na hierarquia administrativa…’; ‘Para ingresso em cargo de nível médio pode ser exigido diploma superior…’ É lamentável que todas essas afirmações venham desacompanhadas de subsídios fáticos e jurídicos; afinal, não se pode, de forma alguma, substituir o princípio da legalidade pelos ‘achismos’ de um ou de outro que se julgue entendido do assunto.
São palavras do procurador: ‘Gostem ou não os agentes federais recrutados dentre cidadãos com escolaridade superior, as tarefas de execução de operações policiais são atividades de natureza intermediária (…) que se fundam por natureza na hierarquia de comandante-comandado…’
A palavra ‘intermediária’, que vem de intermediar, significa colocar-se no meio, interpor-se entre pessoas ou coisas. Os policiais federais gostariam de saber em qual lei ou artigo o nobre procurador obteve o conhecimento sobre a natureza intermediária das funções do agente de Polícia Federal, bem como dos escrivães e papiloscopistas, para que a categoria possa, então, posicionar-se quanto a ‘gostar ou não’, conformar-se ou não com a ‘sua’ condição de ‘intermediário’.
O que o nobre membro do Ministério Público entende por ‘operações policiais’? Não se pode buscar definições a respeito em filmes ‘hollywoodianos’ e muito menos em programas populares dos canais abertos de TV. Cabe esclarecer ao ilustre procurador que as ‘operações policiais’ não se resumem em perseguir e prender traficantes nas esquinas ou nas barreiras montadas em estradas.
Hoje o policial federal possui mais atribuições do que muitos dos servidores da administração pública, e não sem razão está enquadrado entre as carreiras de Estado. Se não, vejamos:
São atribuições dos policiais federais:
‘as tarefas de execução de operações policiais’ (Art. 144, § 1º da CF) que consistem em: ‘apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União’; isso sem mencionar que também lhes são atribuídas as atividades de Polícia Judiciária Eleitoral.
O Policial Federal também atua: a) na fiscalização de empresas que trabalham com comércio de produtos químicos; b) na fiscalização as empresas de segurança privada; c) na fiscalização o comércio e registro de armas; d) fiscalização dos portos, e) na fiscalização dos aeroportos; f) na fiscalização das regiões de fronteira; g) na controle de entrada e saída de estrangeiros; h) na elaboração processo de expulsão de estrangeiro; i) na emissão de passaportes; j) na segurança de dignitários; k) na Interpol; l) em questões indígenas; na apuração de: m) crimes fazendários; n) de crimes previdenciários; o) de crimes financeiros; p) de crimes contra o meio ambiente; q) de crimes eleitorais etc.
Salienta-se que, para cumprir todas essa atribuições, há necessidade de estruturas específicas, planejamento, elaboração de vários documentos, compreensão de matérias como: contabilidade, direito, administração, finanças, informática, engenharia, química, mecânica, telefonia, radiocomunicação etc., sendo óbvio que se trata de conhecimentos mínimos, mas necessários. Hoje, no mundo, a bem da verdade, as polícias federais mais eficientes, como a americana (FBI), a inglesa (Scotland Yard), a francesa, a canadense, a alemã etc., são altamente qualificadas e por isso mesmo mundialmente respeitadas.
Por outro lado, em contraponto à visão ideológica ‘militarista’ delineada pelo procurador – que compara os policiais federais a soldados insurretos das Forças Armadas – penso ser de domínio geral que estes treinam visando à defesa do país, à guerra, tendo sempre em mente a morte do inimigo, enquanto o policial federal visa cumprir suas relevantes e inúmeras atribuições constitucionais, expondo-se, cotidianamente, a riscos de morte – o que não sucede, em regra, com outras categorias de servidores públicos; a comparação, portanto, não se justifica, senão numa visão desrespeitosa e amesquinhada da instituição e de seus integrantes.
A prevalecer a visão simplista do douto articulista sobre o que entende ser ‘operação policial’, penso, pois, que seria necessário retirar o pesado fardo depositado nos ombros dos policiais federais e redistribuir as atribuições, criando-se novas instituições, policiais ou não, com novas estruturas para desempenhá-las.
Cabe ainda indagar se o ponto de vista esposado pelo ilustre procurador, segundo o qual a máxima ‘maior responsabilidade, maior qualificação, melhores salários’ não seria aplicável aos policiais federais, reflete o pensamento da maioria de seus pares. Espero sinceramente que não.
Afinal, comparada às demais forças policiais (Civil, Militar, Rodoviária, Ferroviária etc.), a Polícia Federal é inegavelmente excepcional.
Em que pesem as relevantes funções exercidas pelas demais polícias, usar essas instituições como parâmetro de comparação com a Polícia Federal é pretender um nivelamento ‘por baixo’ – isso entendido no tocante às exigências de qualificação para ingresso e correspondentes salários. Seria isso o ideal para a força policial com maior gama de atribuições no País? Creio que não. Aliás, a ‘federalização’ de alguns delitos está justamente a sinalizar o contrário.
Só a título de informação, para demonstrar a desproporção de atribuições, um policial rodoviário federal, cargo de nível médio, com vencimentos de nível médio, ganha tanto quanto o policial federal, sendo que aquele possui atribuições bem específicas e limitadas, quais sejam, fiscalizar as rodovias federais.
Quando olhamos não para o passado militarista, ou para o presente corporativista, mas sim para o futuro, perguntamos se a Polícia Federal estará preparada para acompanhar a evolução do crime, que, sem ilusões, a cada dia torna-se mais complexo e sofisticado e exigirá, para combatê-lo, maior qualificação do quadro policial.
Seguindo a ordem natural das coisas, qual seja, a de evoluir, concluímos que todo policial, tanto civil quanto militar, tem que ser valorizado e qualificado para melhorar a segurança pública; fazer o caminho inverso, diminuindo a qualificação de seus integrantes ou estagnar sua estrutura, não seria a melhor forma de atender as necessidades da sociedade, quer as prementes, quer as futuras.
Hierarquia e disciplina
Com relação à hierarquia e à disciplina, temos que são princípios fundamentais não só no meio policial, mas também em vários segmentos da sociedade organizada. Não poderíamos imaginar qualquer instituição, familiar, escolar, privada ou pública, civil ou militar, desprovida de, ao menos, alguma influência desses valores. Com certeza, dentro do Ministério Público, esses princípios – mesmo que com temperamentos – são aplicados, caso contrário, não teria o respeito que a sociedade lhe deposita.
A Polícia Federal é especialmente organizada sob a égide desses dois princípios; entretanto, não devem servir de pretexto para práticas autoritárias, despóticas, prepotentes e arrogantes, práticas essas que redundam em desrespeito à pessoa do subordinado e em depreciação de sua dignidade e de seus serviços.
Entendo imperioso assinalar que os policiais federais não discutem se gostam ou não da hierarquia e da disciplina; discutem, sim, como esses princípios estão sendo aplicados, se o são de forma democrática e responsável ou de forma autoritária e corporativista e, quando discutem tais temas, estão exercitando – o que chamamos em países considerados livres – a liberdade de expressão e de pensamento.
‘Igualitarismo’
São palavras do procurador: ‘Se querem alterar todo o sistema de organização administrativa da Polícia Federal, os agentes têm o mesmo direito que todos nós, cidadãos comuns – o de pleitear a mudança ao Poder Legislativo’; ‘O movimento dos agentes de Polícia Federal, fundamentado em reivindicações de viés ‘igualitário’, na melhor das hipóteses representa enorme dano social, pois quebra seriamente a coesão da corporação’.
O artigo em referência sugere que os policiais federais estariam suscitando a idéia de alterar a organização administrativa de forma antidemocrática, ou seja, pelo ‘motim’; isso, entretanto, não é verdade, uma vez que a proposta do cargo único – o ‘igualitarismo’, como prefere denominar o procurador – já se encontra em discussão no Congresso Nacional e foi apresentada pelos policiais federais, que nesse particular agem como qualquer cidadão que pretende mudança legislativa.
Discordando da visão do articulista, acredito que o maior ‘dano social’ que o ‘igualitarismo’ pode causar é a ‘quebra’ da vaidade, do feudalismo, da estrutura medieval existente hoje dentro da instituição. O FBI, polícia federal americana, passou por situação semelhante, quando havia sérias divisões internas que só foram solucionadas com o que o douto procurador chama de ‘igualitarismo’ – leia-se: implantação de carreira única – mudança essa que, ao contrário do que afirma o ilustre procurador, aumentou a coesão entre os agentes; são eventos ocorridos num país com princípios democráticos tidos como sólidos.
Já no Brasil, toda lei relacionada aos servidores do Departamento, orgânica ou não, é elaborada e discutida somente por uma determinada classe, de forma antidemocrática e impositiva, com implantação de reservas de cargos e exclusividade de funções, tudo baseado, para uns, na pretensa hierarquia e disciplina; para outros, no corporativismo puro e simples.
Penso que não se pode qualificar o anseio dos policiais federais em reestruturar a Polícia Federal como antidemocrático, muitos menos, criticar, com enfoque subjetivista tal pretensão, como se agentes, escrivães e papiloscopistas não tivessem capacidade de debater, legitimidade para discutir a estrutura da instituição à qual servem.
É lamentável que existam pessoas que não aceitem que o policial exercite sua liberdade de pensamento; que pensem que ele não tem condições de discutir os defeitos, as ineficiências de uma estrutura policial baseada hoje no que muito se assemelha ao invocado ‘militarismo’.
Ao rever a história da humanidade, sempre nos deparamos com o conservadorismo, com visões limitadas e engessadas de algumas pessoas que, para o bem da sociedade, foram confrontadas por visionários progressistas, que ousaram propor o ‘novo’, que lutaram por mudanças de situações que, mesmo cômodas ou aparentemente satisfatórias, não eram as ideais. Não fossem esses inconformados, o Ministério Público, instituição que o douto procurador integra, não existiria com os contornos que tem hoje, e ele, com certeza, estaria desempenhando o papel de advogado da União neste momento.
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Escrivão de Polícia Federal, bacharel em Direito, Campo Grande, MS