Quatro meses depois de publicar um alentado informe especial sobre o jornalismo na internet, o semanário britânico The Economist volta à mídia esta semana com a matéria de capa de três páginas compactas ‘Quem matou o jornal?‘ e um editorial cujo título repete a pergunta da chamada.
A revista deixa claro de saída, portanto, que o jornal morreu. ‘É só uma questão de tempo’, prevê o editorial, para que os diários ‘comecem a fechar em grande número’. Impossível não lembrar de Mark Twain. Quando o escritor americano leu que tinha falecido, comentou que a notícia era ‘ligeiramente exagerada’.
Mas como o papel aceita tudo, vamos em frente. A Economist traz os principais indicadores dos padecimentos da tradicional mídia impressa diária – leitores, receitas publicitárias, jornalistas empregados e matérias exclusivas em queda, preferência esmagadora do público jovem pela internet, interesse crescente dos anunciantes pelas edições online dos periódicos e – o que seria o tiro de misericórdia – a proliferação explosiva de jornais gratuitos para serem lidos nos metrôs e ônibus.
A tiragem somada dos metros, como são chamados, é da ordem de 28 milhões de exemplares, informa a reportagem – o equivalente, na Europa, a 16% de toda a circulação diária. Até o Le Monde vai lançar um. Para fazer um metro para 100 mil leitores bastam em média 20 jornalistas – nove vezes menos do que para fazer um equivalente pago.
Claro: este último não só traz ‘n’ vezes mais notícias, como se trata de notícias que requerem muito mais apuração e informações que lhe dêem contexto.
A revista cita o sueco Pelle Törnberg, que inventou o gênero, em 1995. ‘O maior inimigo dos jornais pagos é o tempo’, diz ele.
É uma verdade superficial – e a matéria da Economist é mais uma a não ir além da superfície no diagnóstico da crise dada como terminal do jornalismo diário.
Audiências em queda
O texto constata o desencontro entre o que a maioria dos leitores quer e aquilo a que os jornais convencionais dão mais importância. O editor do Zero Hora, de Porto Alegre, Marcelo Rech, conta que o jornal pesquisa diariamente a opinião de 120 leitores. O recado é claro. ‘Eles geralmente querem mais suplementos como os que temos sobre culinária e moradia’, diz o editor, ‘e menos Hezbollah e terremotos’.
Isso bate com os resultados de sondagens em muitos países. ‘As pessoas gostam de matérias curtas e notícias que lhes sejam relevantes, como relatos locais, esportes, entretenimento, tempo e tráfego’, nota a Economist. E cada vez mais recebem isso da internet.
A expressão-chave, que abre todo um campo de indagação, inexplorado pela matéria, é ‘notícias que lhes sejam relevantes’.
Por que ‘relatos locais, esportes, entretenimento, tempo e tráfego’ e não, também ou mais ainda, o Hezbollah do exemplo de Marcelo Rech?
Porque, desde a última década, vem aumentando muito o número de assuntos em relação aos quais uma parcela cada vez maior de pessoas – jovens adultos, especialmente – se pergunta: ‘E eu com isso?’
A tendência parece irrefutável. Os motivos é que são elas. Uma hipótese a levar em conta é a de que se vive um período de declínio do interesse pela esfera pública e de aumento intenso de interesse pela vida particular.
Isso pode, ou não, ter relação com o ‘fim da história’ do precipitado Francis Fukuyama. Os conflitos ideológicos que marcaram o século 20 e a Guerra Fria bem ou mal como que obrigavam um número de pessoas proporcionalmente maior do que hoje, nos mesmos países, a se informar sobre o proverbial ‘o que vai pelo mundo’.
Política, governo, relações internacionais, economia – que ainda encabeçam a hierarquia do noticiário e das pensatas do jornalão típico – não eram assim de se dar as costas. Mesmo com o advento da televisão, o jornal tradicional continuou a ser a ponte por excelência entre o grande mundo e o pequeno mundo.
E a mesma hierarquia foi adotada pelos telejornais de começo da noite das grandes redes americanas. E não há de ter sido por razões diferentes daquelas que afetaram o jornalismo diário impresso que a sua audiência caiu acentuadamente. Idem para a queda de audiência da emissora que nasceu para dar notícias 24 horas por dia – a CNN.
A propósito, comparem-se as pautas dos ‘Evening News‘ da ABC, CBS e NBC de 20 anos atrás com as de hoje. É a supremacia do que antigamente se chamava fait-divers, do paroquial e do ‘lado humano’. Mesmo a economia é cada vez menos economia e cada vez mais finanças pessoais.
Expressão ‘grega’
A ‘década do eu’, como os americanos falavam dos anos 1990, caminha para ser duas, ou mais. Ela é veneno para o jornalismo como encarnação do espaço público e do debate público – as províncias naturais do jornal diário.
‘Eu’, o filho que deixou de fazer o que o seu pai e o pai de seu pai faziam religiosamente – ler jornal para saber das coisas do mundo – quer saber, sem muito palavrório, como ganhar mais dinheiro, como se cuidar, como se divertir, como desfrutar. Assim, no intransitivo. ‘As pessoas querem que o seu jornal lhes diga como enriquecer e o que podem fazer esta noite’, resume a Economist, na mosca.
Isso não significa que as gerações que as precederam quisessem ser pobres, doentes, puritanos e frugais. Mas tinham mais tempo – e nisso o sueco do metro citado pela Economist está certo – para se inteirar também, lendo jornal, das questões que transcendiam o seu cotidiano.
Os jornais não teriam se desenvolvido como se desenvolveram, e as suas páginas nobres não se ocupariam do que se ocupam, se os seus leitores jovens adultos de 1906, digamos, fossem os de 2006.
Os primeiros – e isso tem tudo a ver com o encolhimento do espaço público, logo da centralidade do jornalismo diário nos hábitos de zilhões de pessoas – viviam em sociedades e em economias de mercado. Os de hoje vivem em sociedades de mercado que tendem para o absolutismo. Nestas, o dinheiro – não a política – faz a mediação entre o público (apequenado) e o particular (agigantado).
Seria de espantar se nesse ambiente as pessoas se acotovelassem nas bancas para comprar esses mesmos jornais que ainda se consideram, incomparavelmente mais do que prestadores de serviços para o bem-estar dos leitores e do seu círculo familiar e de relações – que é o que estes procuram acima de qualquer outra coisa –, o Quarto Poder.
O significado da própria expressão, pode se apostar, deve ser grego para muitos dos que têm ‘mais a fazer’ do que sujar as mãos com a tinta dos diários.
Ainda vivos
A Economist acredita que a perda relativa de importância do jornal impresso, na sua função essencial de ‘obrigar os governos a responder por seus atos no tribunal da opinião pública’, pode ser compensada pela explosiva expansão dos conteúdos disponíveis na internet – embora admita que ‘os resultados do e-jornalismo sejam reconhecidamente limitados’.
Um dos motivos talvez esteja na própria forma de interação do leitor com a informação na net. ‘As pessoas olham menos páginas online do que na versão impressa’, observa a revista. E, de acordo com Gavin O’Reilly, citado como presidente da Associação Mundial de Jornais, ‘leitores online usam os sites dos jornais de maneira aleatória e fragmentada’.
A saída que a Economist antevê parte da premissa de que ‘alguns jornais que investem no tipo de matérias investigativas que freqüentemente mais beneficiam a sociedade estão em boas condições para sobreviver, desde que os seus donos sejam competentes em ajustá-los às circunstâncias cambiantes’.
Ou seja: alguns dos jornais mortos continuarão vivos.
[Texto fechado às 9h00 de 29/8]