Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rótulos estigmatizam os rotulados

Há certo tempo, os termos politicamente corretos são alvo de debate, com acaloradas discussões. Há quem defenda a revisão dos “termos racistas” da obra de Monteiro Lobato; outros argumentam pela mudança até de músicas do cancioneiro popular. Neste cenário, o cravo não pode mais brigar com a rosa porque estimularia a violência de gênero, ou seja, a violência contra a mulher. Outros defendem que o politicamente correto castra a liberdade de expressão e que o ser humano é livre para usar palavras que julgar adequadas em qualquer contexto.

Exageros à parte dos dois lados, a discussão é importante e necessária. Já abordei esse tema neste Observatório (ver “A linguagem e o politicamente correto“) e defendo uma divisão para o uso do politicamente correto. No dia a dia de pessoas comuns, a dimensão e a repercussão das palavras são diferentes daquelas usadas nos veículos de comunicação. Por isso, a responsabilidade dos comunicadores é muito grande. Afinal eles informam, desinformam, formam e deformam a opinião pública.

Neste contexto, a expressão “crianças especiais” comporta uma série de reflexões. Exemplo pode ser conferido na manchete do jornal Folha de Londrina de 10/08/2011, na capa do caderno “Folha Cidades”: “Crianças especiais precisam de padrinhos”. A reportagem mostra os benefícios da equoterapia para crianças com deficiências motoras e que precisam de ajuda financeira para fazer (ou continuar) o tratamento.

Deficiência dentária

Toda criança – para alguém, por exemplo seus pais, avós, professores – é especial mesmo que não tenha deficiência. O especial aqui pode ser considerado sinônimo de única. Ocorre que as crianças com deficiência lutam pela inclusão, para serem aceitas como qualquer outra criança. O termo especial, neste sentido, a torna ainda mais diferente, portadora de uma situação que foge à “normalidade”. Afinal uma das definições da palavra especial é “fora do comum”. Então, se é fora do comum, para que lutar para ser reconhecida como igual aos outros? O ser humano, por natureza, busca ser fora do comum, mas isso está vinculado às habilidades e competências, e não às características físicas ou intelectuais. Neste ponto, vale outra reflexão. A criança com deficiência metabólica, que necessita de dieta específica e medicamento exclusivo, não é considerada especial. Por que? Porque sua condição não é visível, não solta ao olhar curioso de terceiros (e de jornalistas) que enxergam as diferenças que apenas conseguem ver.

Neste sentido, o ideal é que, em vez de “especial”, o jornalismo use o termo “com deficiência”, uma vez que deficiências todos nós apresentamos em grau maior ou menor. Houve uma época (e ainda há) em que era comum extrair – por causa de um dente ruim – vários outros e instalar uma prótese dentária, termo mais atual e politicamente correto para dentadura, ponte móvel, perereca, entre outros. Hoje, muitos adultos substituíram a tal da prótese por implantes de titânio e, nem por isso, são considerados especiais, mesmo tendo uma deficiência dentária.

Promoção da igualdade

O mesmo não se pode dizer das pessoas que usam pernas ou braços mecânicos. E aqui, mais uma vez, entra a noção da palavra associada ao que as pessoas conseguem ver. A perna mecânica é mais diferente que os dentes mecânicos e ganha ares de excepcionalidade. Isso porque é visível, causa estranheza e ruídos à “normalidade” do ser humano. Em que pesem as particularidades, pernas e dentes “mecânicos” têm o mesmo princípio, um mecanismo de artificialidade que devolve as funções naturais ao ato de andar e comer.

Aliás, o termo “excepcional” foi usado largamente décadas atrás – e ainda hoje (certo, Apaes?) para classificar pessoas com deficiências. A palavra excepcional chega a ser sinônimo de “indivíduos (diz-se mais especialmente de crianças) portadores de algum defeito físico ou enfermidade, como cegueira, surdez, mudez, paralisia, retardamento mental etc.” A definição é do dicionário Michaelis. Se o excepcional é por definição e natureza diferente, como conseguir ser respeitado como “normal”?

Portanto, a palavra que deveria ser usada para incluir acaba excluindo ainda mais. E não se trata de negar as diferenças. Trata-se de reconhecê-las, assumi-las, para assim promover a igualdade entre os diferentes. E a promoção da igualdade passa também pelo uso da palavra porque ajuda a criar uma cultura de respeito. Neste sentido, “especial” e “excepcional” são rótulos que acabam dando uma condição ainda mais extraordinária à criança com deficiência, que continuará estigmatizada, rotulada. E são apenas crianças.

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[Reinaldo César Zanardi é jornalista, professor de Jornalismo e mestrando em Comunicação, Londrina, PR]