Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ruas de presas e de caçadores

Sem uma pesquisa sistemática sobre o assunto, parece, à primeira vista, que os jornais cariocas são mais prolíficos em notícias de crime do que os paulistas. A explicação mais óbvia diria que a criminalidade é provavelmente maior em uma cidade do que na outra. Seria motivo, então, para que os cariocas se tornassem mais inquietos do que já estão com a alarmante escalada da anomia em seu território.

Em menos de uma semana, invadiram-se duas instalações militares para roubar armas, com êxito absoluto. Os tiroteios são cotidianos nas vias de acesso ao centro urbano e mesmo nesse centro, onde quadrilhas organizam ‘bondes’ para tomar de assalto pedestres e motoristas. Nem mesmo membros das famigeradas ‘milícias’ estão inteiramente a salvo: semana passada, roubou-se a moto de um miliciano encarregado de vigiar uma rua num subúrbio. Ou seja, as quadrilhas vitimizam-se mutuamente, do mesmo modo como costuma acontecer com as batalhas pelo controle de pontos de droga.

Ainda assim, essas ocorrências têm intensidade emocional baixa na mídia quando confrontadas com o episódio, largamente explorado, dos assaltantes que empurraram o casal no despenhadeiro da Avenida Niemeyer depois de tê-los despojado de seus pertences. O caso é semelhante a outro acontecido há menos de um mês na Linha Amarela, quando um dos assaltantes de um idoso e sua acompanhante num automóvel retornou, depois de ter-se apropriado do dinheiro, para assassinar a vítima.

‘A morte dos outros dá-nos vida’

A semelhança está na gratuidade do ato, em algo que parece situar-se além da própria violência. De fato, em seu sentido histórico, a violência atende à lógica dos fins, isto é, o abuso da força destina-se a compensar uma falta qualquer ou à apropriação de um bem. É abominável, mas finalística. O excesso violento ou de crueldade carece de finalidade imediatamente visível e (como no terrorismo) fundamenta-se na própria passagem ao ato, desinvestida de motivações compreensíveis.

Pode-se pensar na irreflexão violenta do drogado, mas o que ocorre de fato é a expressão de ódio pelo Outro, impermeável à lógica das causas mais evidentes, recorrente numa ordem social cujo tecido se esgarça de forma cada vez mais convulsiva. Convulsivo ou espasmódico, o excesso da passagem ao ato é também a passagem do Homo Sapiens àquilo que o francês Edgar Morin chama de Homo Demens.

Esse é realmente o campo fértil para quem se dispuser a fazer uma etnografia do medo urbano, senão uma ‘etologia’, entendida como ciência do comportamento animal e humano a partir dos prismas do meio-ambiente natural e cultural. Assim, o etólogo Boris Cyrulnik – que considera a violência uma pulsão humana fundante já que relacionada à sobrevivência da espécie pelo imperativo de obtenção de alimento – vê na vitória sobre a caça uma ‘intensa sensação de existência para o caçador e a sua coletividade’. Mais explicitamente:

‘Tudo se passa como se os primeiros caçadores dissessem: a morte dos outros dá-nos vida. Matar passa, então, a ser um acontecimento, talvez fundador de humanidade.’

Nem pânico, nem omissão

É muito provável que nas patologias do pertencimento social, regidas pelo sentimento de desvinculação, o sujeito da consciência convulsiva, ou o Demente, obtenha o seu sentimento de existência apenas da morte cruel de um Outro, cuja forma de vida lhe pareça inaceitável. Assim como é muito provável que estejamos vivendo, ainda em pleno bicentenário da reinvenção do Rio de Janeiro pela chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, a reinvenção de uma forma de sociabilidade definida pelo avesso do pertencimento à Cidade Humana. Cada um é objeto virtual de caça pelo outro.

Ainda que os tiroteios nas ruas e os ataques às fontes de armamentos possam parecer eventos isolados e desligados da crueldade crescente nos assaltos, é possível esboçar uma espécie de síntese social provisória, explicativa, mesmo se parcialmente, da inquietação e do medo presentes na consciência da cidadania mais avisada. Não cabe à imprensa instilar a fácil emoção do pânico em seu leitorado, nem omitir-se, para simular o melhor dos mundos possíveis. É hora de análises consistentes com vistas a ações públicas menos pontuais e mais abrangentes.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro