Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

São Paulo dixit

O senador Eduardo Suplicy surpreendeu a opinião pública ao anunciar que um advogado paulista pretende obrigar o TSE a estender o plebiscito sobre a criação dos Estados de Carajás e Tapajós a toda a população brasileira. O entendimento não tem fundamento legal. Mas possui objetivos políticos – e geopolíticos.

Quando o senador Eduardo Matarazzo Suplicy vai à tribuna, tudo pode acontecer. Certa vez ele se permitiu cantar uma música completa – e longa – dos Beatles para os seus pares, divertidos por sua performance. No dia 14/7, ele anunciou que outro paulista ilustre, o jurista Dalmo de Abreu Dallari, ingressara na véspera com uma ação inédita no Tribunal Superior Eleitoral.

Dallari, respeitado constitucionalista, reivindica que toda a população brasileira, e não apenas a paraense, seja ouvida no plebiscito sobre a criação dos novos Estados de Carajás e Tapajós, no território do Pará, marcado para o dia 11 de dezembro, um domingo. É iniciativa diametralmente oposta à dos movimentos pela criação das duas novas unidades federativas: eles queriam que apenas as populações do oeste e do sul/sudeste do Pará pudessem votar. O que significava transformar o plebiscito em mera formalidade: em Carajás a adesão da população seria de 90% e no Tapajós, de 60%, segundo pesquisas cujo principal resultado tem sido anunciado, mas não o seu conteúdo e metodologia.

A Constituição Federal de 1988 se limita a estabelecer que deva ser consultada a “população diretamente interessada” na divisão de um Estado. Os emancipacionistas fizeram uma interpretação restritiva desse dispositivo, mas o TSE fixou o entendimento de que são “diretamente interessados” os habitantes do Estado inteiro, que terão seu direito de voto assegurado no plebiscito.

Cláusula pétrea

O senador do PT paulista se apresentou ao debate endossando a posição do advogado Dalmo Dallari: “Para a criação de novas unidades políticas é necessário, jurídico e justo ouvir toda a população interessada. Não há na lei nada que diga que tem de se ouvir apenas a população do Estado. A criação de novos Estados afeta os direitos políticos de todo o povo brasileiro, além de criar um ônus financeiro que também será arcado por todo o povo brasileiro”, arriscou o senador.

Em defesa do argumento da ação, está a alegação de que a mudança afetará a todos. Como ainda não terão renda própria suficiente, os novos Estados teriam que ser mantidos pela União, impondo ao tesouro federal nacional os custos da instalação do aparato administrativo, do poder judiciário e do legislativo, o que representaria “elevado ônus financeiro” ao povo, de acordo com o senador paulista.

A iniciativa é meramente política, sem qualquer fundamento jurídico. A legislação ordinária que regulamentou a norma constitucional (artigo 7º da lei 9709, de 1998), é claríssima:

“Nas consultas plebiscitárias previstas nos arts. 4º e 5º, entende-se por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmembramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popular se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da população consultada”.

Embora ainda esteja pendente de manifestações, tanto do TSE quanto do Supremo Tribunal Federal, nada sugere que a definição estabelecida pelo tribunal eleitoral possa vir a ser modificada, por seu sólido embasamento legal. Por que, então, um jurista com o prestígio que tem Dalmo Dallari assumiu uma causa inconsistente, fazendo-a ecoar pelo Senado através da boca de Eduardo Suplicy?

A iniciativa pode ter dois objetivos. O primeiro é político: antecipar a posição que São Paulo assumirá, caso, com a aprovação do desmembramento em plebiscito, o projeto de criação do Tapajós e de Carajás voltar ao Congresso Nacional para decisão final. Os grandes Estados deverão votar contra, para não perder peso político nem participação econômica na federação brasileira. Deverão ter maioria para a rejeição da proposição.

A ação de Dallari também revela uma face do colonialismo interno. Um Estado amazônico, como, de resto, toda a região, que é fronteira de recursos naturais do país, não pode ter veleidades de autodeterminação, mesmo dentro da organização federativa nacional, cláusula pétrea da Constituição atual (e das anteriores).

Desafio à ordem

É bom não esquecer que o plebiscito de 11 de dezembro será o primeiro a ser realizado no Brasil para a criação de novos Estados. As redivisões anteriores foram feitas de cima para baixo, pelo poder central, ou através de movimento consensual das partes, como a que gerou o Estado do Tocantins a partir do fracionamento do território original de Goiás. Não foi preciso haver consulta popular nesse caso nem discussão sobre interesses conflitantes, já que eles eram convergentes.

Uma resposta majoritária por mais dois Estados brasileiros, que chegariam a 29 (ainda bem abaixo do conjunto dos Estados Unidos), não só modificaria o perfil do Pará, mas poderia exercer uma influência ativadora sobre projetos semelhantes em outros pontos do território nacional. São dois efeitos heréticos para o centro do poder no país e os defensores de um comando centralizado e forte, que sustenta, por baixo do glacê federativo, uma massa de poder unitário.

Na Amazônia, esse poder central possui também as características de uma metrópole colonial, fonte dos modelos e paradigmas que são impostos à colônia, como se ela não tivesse história nem vontade. Ou seja: a negação do passado e a manipulação do presente. Justamente por isso, os projetos de redefinição territorial do vasto Estado do Pará precisariam ter consistência e coerência, que eles não têm.

Se o plebiscito é um dado novo positivo, a contribuir para questionar o poder de mando dos Estados mais ricos, esse meio é desperdiçado por projetos elaborados às pressas e sem profundidade, que não atentam para a própria gravidade do que estão destruindo e criando, do que estão oferecendo e do que podem realmente atender.

Ao invés de representarem uma alternativa válida ao modo colonial de ocupar a Amazônia, imposto de fora para dentro, apenas fracionam o território dessa dominação. Só por ela ser arrogantemente estabelecida é que a iniciativa é entendida como um desafio à ordem estabelecida. Quem manda, não admite conceder nada. Por isso a Amazônia é o que passou a ser.

***

[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]