Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sarkozy, a imprensa e o bonapartismo

Desde o início do seu mandato, em 2007, o presidente francês Nicolas Sarkozy vem sendo criticado por instaurar um governo que os observadores denominaram de ‘hiperpresidência’. Jornalistas políticos como Alain Duhamel e cientistas políticos como Alain Garrigou, professor de Ciência Política na Universidade de Paris X, detectaram um bonapartismo acentuado no atual presidente. O primeiro o compara a Napoleão I, o fundador do império, e o segundo a Napoleão III, ambos Bonaparte. Napoleão III, depois de eleito presidente, restaurou, com o golpe de Estado de 1851, o império fundado por seu tio Napoleão Bonaparte.

A acusação de bonapartismo foi muito usada na França para designar certos regimes militares latino-americanos, mas fazia tempo que não se empregava para um presidente francês.

O golpe de 1851 levou o poeta e escritor Victor Hugo a se exilar e publicar alguns anos depois (1877) o livro Histoire d´un crime-déposition d´un témoin, no qual conta o golpe de Estado de Luis Napoleão Bonaparte, que governou como Napoleão III de 1851 a 1870. O poeta-parlamentar se tornou um dos chefes da oposição ao poder totalitário e escreveu um panfleto publicado em 1852 com o título Napoléon, le Petit (Napoleão, o pequeno). Este ‘pequeno’ na estatura moral, segundo Hugo, não deve ser confundido com outro pequeno na estatura física, Napoleão Bonaparte, que governou como imperador Napoleão I, personagem carismático, fundador do atual Estado francês e inspirador do Código Napoleão, em vigor até hoje. Napoleão I, um personagem histórico complexo que deixou uma marca indelével na história da França, era apreciado e respeitado por Hugo.

Concentração de poderes

Alain Duhamel define o bonapartismo de uma certa direita francesa mais próximo do poder exercido pelo primeiro imperador dos franceses: uma mistura do instinto de ordem e paixão pela ação, voluntarismo intenso e autoritarismo natural, carisma necessário e concentração do poder, senso do teatro e apetite de deixar marcas com audácia, impaciência e ativismo, aliando ao mesmo tempo dirigismo e democracia plebiscitária, onipresença e culto do líder, choque da ruptura e ambição histórica.

Mas, como explica brilhantemente Alain Garrigou em artigo no Le Monde intitulado ‘Le sarkozysme est-il un bonapartisme?’ (‘O sarkozysmo é um bonapartismo?’), comparar Sarkozy a Napoleão I seria lisonjeiro demais para o atual presidente. Essa comparação sugere o dinamismo, a obra de restauração da ordem depois do terror e das derivações da Revolução de 1789 e o modernismo conservador do primeiro imperador. Já a comparação com o sobrinho de Napoleão I, Luís Napoleão Bonaparte, que se tornou Napoleão III, é menos favorável e mais adequada, segundo o professor.

Luís Bonaparte dá seu nome a um regime autoritário imposto pela força e ratificado pelo povo. ‘Bonapartismo’ se tornou sinônimo de tentativa de abolir a democracia parlamentar. Designando um regime político oligárquico apoiado pelo sufrágio universal, o bonapartismo suscita sempre um enigma: como o povo pode se impor a escravidão numa incompreensível servidão voluntária?

O imperador dos franceses Napoleão III deu um apoio incondicional à igreja católica e aos Estados pontificais. ‘Ao discursar diante de Bento 16 e afirmar que `na transmissão de valores, o professor não poderá jamais substituir o cura ou o pastor´, o presidente Sarkozy não o superou?’, perguntava Garrigou no artigo do Le Monde. Segundo ele, nunca a concentração de poderes no Palácio do Eliseu foi tão grande.

‘Ilusionismo e enganação’

Desaparecido do cenário político francês como partido, o bonapartismo designa uma fórmula política de manutenção da ordem social por um chefe autoritário e popular. Sarkozy foi eleito pela maioria dos franceses, mas sua cota de popularidade nas pesquisas está abaixo de 40%. Resta seu autoritarismo.

‘A fórmula de modernização política pela aliança do liberalismo econômico com o autoritarismo político se tornou tão comum que o bonapartismo parece ter-se incorporado à História’, comenta Alain Garrigou. Segundo ele, a oligarquia, em sintonia com seu campeão político, rompe com mais de um século de discrição burguesa que rejeitara o brilho da corte imperial. A cultura do narcisismo se reveste de uma aparente volta ao antigo regime imperial de Napoleão III. É preciso lembrar que Sarkozy fala de ‘direita descomplexada’ e é chamado pela imprensa de ‘presidente bling-bling’ por seu amor ao luxo e aos sinais aparentes de riqueza, como o relógio Rolex, iates de luxo e relações de amizade com milionários donos das maiores empresas francesas.

O historiador conservador René Rémond fez uma genealogia da direita na França dividindo-a em três famílias: o legitimismo, o orleanismo e o bonapartismo. O filósofo marxista Alain Badiou prefere situar o presidente Sarkozy no orleanismo.

Ao comparar Sarkozy a Napoleão III, comentaristas políticos franceses e estrangeiros ressaltam o mesmo desejo de exercer o poder total, o mesmo narcisismo e amor ao fausto. Na revista The Economist de 2 de janeiro deste ano, uma reportagem, na rubrica ‘Business’, critica o ‘dirigismo’ do atual presidente francês. Detalhe: o desenho que ilustra o artigo mostra um Sarkozy vestindo o uniforme de Napoleão I, o general Napoleão Bonaparte, depois imperador, com o famoso chapéu na cabeça e um telefone celular na mão como quem escreve um SMS. Segundo a revista, o presidente tenta dirigir as empresas francesas, públicas ou privadas, com mão de ferro, num dirigismo que deixara de ser marca do governo francês – que privatizou parcialmente na década de 1990 empresas nas quais o Estado era majoritário, como a France Telecom e mesmo a Air France. ‘A crise foi um bom pretexto para Sarkozy se lançar no ringue em defesa das empresas francesas no cenário internacional’, comenta na Economist Alain Minc, influente consultor de empresas e ex-presidente do diretório do Le Monde.

The Guardian foi mais cruel que The Economist. Em julho de 2007, um artigo comparava Sarkozy a Napoleão III: ‘Monsieur Sarkozy lembra mais um outro Napoleão, Napoléon le Petit, como o chamou Victor Hugo (…) A cultura do ilusionismo e enganação, os amigos ricos e poderosos: Sarkozy é o novo Napoleão III’.

O combate pela sátira

Para o ex-primeiro-ministro socialista Laurent Fabius, Sarkozy exerce uma ‘egopresidência’ e não concebe governar sem o controle de todas as mídias, imprensa escrita e audiovisual. Como se sabe, o Estado francês detém uma grande fatia do bolo audiovisual do país e o hiperpresidente tudo faz para manter sob sua influência direta presidentes e diretores da France Télévision e das emissoras públicas de rádio. Sua onipresença na mídia francesa é tal que recentemente foi votada uma lei para que seu tempo de fala (temps de parole) fosse também computado pelo Conselho Superior do Audiovisual quando não se trata de política externa, garantindo o mesmo tempo de rádio e televisão para os políticos dos partidos de oposição (em entrevistas) que as do presidente e seus correligionários (ver, neste Observatório, ‘A onipresença presidencial sob controle‘).

Quando o general De Gaulle instalou, através de plebiscito, a eleição do presidente da República por sufrágio universal direto, em 1962, voltou-se a falar de bonapartismo. François Mitterrand publicou o livro O golpe de Estado permanente e o comunista Jacques Duclos publicou De Napoléon III à de Gaulle. Ao renunciar depois do plebiscito de 1969, De Gaulle calou seus detratores.

Quando assumiu seu mandato em 2007, Sarkozy impôs um estilo que muitos julgaram imperial, autoritário demais, insuportável. Enquanto o presidente inaugurava uma egopresidência, o escritor Patrick Rambaud só viu uma forma de combatê-lo – pela sátira. No mesmo ano, Rambaud começou uma série de livros – já saíram três – chamados Chronique du règne de Nicolas Ier (Crônica do reinado de Nicolas Primeiro). Prêmio Goncourt de 1997, o escritor faz uma paródia dos fatos e atos da ‘corte’ de Sarkozy, num francês castiço que lembra o estilo dos cronistas da corte do rei-sol Luís XIV.

Na defensiva

Na segunda-feira (25/01), o presidente Sarkozy foi o convidado especial do telejornal das 20h do TF1, o canal de maior audiência na França. Depois de uma entrevista ao vivo de 15 minutos com Laurence Ferrari, a loura apresentadora do jornal, o presidente trocou de cenário e entregou-se mais descontraído ao exercício populista de uma entrevista feita por 11 cidadãos franceses representando diversas categorias profissionais e faixas etárias. Não havia, et pour cause, nenhum representante das empresas do CAC40 (as que determinam o índice da Bolsa de Paris), a maioria deles amigos pessoais do presidente. Não ficaria bem fazerem parte do cenário armado para convencer o povo francês de que o presidente vai resolver todos os problemas, inclusive o desemprego, que não pára de crescer.

O programa foi uma oportunidade para o presidente, em situação de boxeur na defensiva, expor suas realizações, mostrar-se preocupado com os problemas do povo e engajado em solucioná-los, protegendo as empresas francesas na crise mundial e tentando promover o crescimento do país por meio de medidas que ele defendeu diante de milhões de telespectadores.

Detalhe: a TF1, privatizada há mais de 20 anos, pertence a um dos melhores amigos de Sarkozy.

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Jornalista