O inédito pedido de desculpas da Folha de S.Paulo no alto da primeira página da edição de sexta-feira (18/6) não representa apenas um rasgo de humildade na nossa grande imprensa. O surpreendente ato de penitência descortina para o leitor os procedimentos, manias e padrões vigentes em nossas redações.
O erro da Folha não está apenas no uso indevido e abusivo da expressão ‘crianças escravizadas’ que os demais jornais tiveram o cuidado de evitar. O erro está no culto à numerologia que este Observatório vem denunciando há anos.
Nossa imprensa (nela compreendidos a maioria dos editores e repórteres) é basicamente indolente e/ou crédula. A ‘fonte’ tem aqui o caráter de oráculo, divindade onisciente diante da qual o jornalista se curva, incapaz de acionar qualquer tipo de ceticismo. E quando a fonte despeja algumas cifras, dados ou estatísticas, num passe de mágica, extingue-se qualquer resistência ao que está sendo veiculado.
Na origem de quase todas as nossas mazelas jornalísticas está presente uma incompreensível incapacidade para duvidar das fontes. A expressão inglesa to take for granted, aceitar como verdadeiro, poderia definir esta nossa inocência nada inocente. Servidão elementar que na última década produziu desastrosos episódios de desinformação.
O culto às cifras é filho do ‘jornalismo declaratório’, irmão da pesquisite (aquele tipo de jornalismo acoplado às sondagens de opinião) e primo do ‘jornalismo fiteiro’ – este, no qual uma gravação clandestina, vídeo secreto ou dossiê confidencial é jogado no colo de um jornalista que apenas os transcreve (e, no caso de gravações, por rotina, submete aos laboratórios da Unicamp para detectar eventuais manipulações de ordem técnica).
Cifras e fatos
Última palavra em matéria de exploração da credulidade, o ‘jornalismo numerológico’ origina-se na perplexidade dos jornalistas diante do que está acontecendo no mundo, na falta de disposição para fazer um jornalismo verdadeiramente investigativo e na descoberta por parte das autoridades de que a informação quantificada é a forma mais eficaz de embromar a opinião pública.
As edições de domingo têm sido as ideais para veicular manchetes estatísticas – já que as redações estão praticamente desativadas no sábado e suas equipes estão exangues depois de adiantar três edições.
O último feriadão (10 a 13 de junho) esvaziou as gavetas das reportagens stand-by e converteu-se num festival de cifras. Em sete dias a Folha disparou cinco manchetes cifreiras ou cifradas: no dia 8/6, ‘Brasil é o 5º país em homicídio de jovens’; no dia 10, ‘Brasileiros pagaram mais tributos no 1º ano de Lula’; no dia 11, o fatídico tropeço no afã dramatizador: ‘Brasil tem meio milhão de crianças escravizadas’; no sábado (12/6), embora sem cifras, a estatística ficou no antetítulo (‘Mortalidade infantil é elevada até entre os mais ricos’); no domingão, mais uma (‘25% dos filhos da elite bebem demais’); e na segunda-feira (14/6), fim da temporada: ‘Investimento na América Latina cai 55%, diz ONU’.
Depois deste bombardeio de cifras nas manchetes, o leitor da Folha cria uma imunização contra elas. De tanto repetir números, estes perdem sua capacidade de impressionar. Isto não significa que os jornalistas devam descartar estatísticas – pelo menos uma destas manchetes é realmente dramática (homicídio entre os jovens). Mas outros jornais trataram as mesmas cifras de forma mais comedida para evitar a intoxicação numerológica.
Outros foram na mesma onda (O Globo, com quatro manchetes cifreiras no mesmo período, pelo menos uma justificada – ‘Mundo gastou US$ 1 trilhão com 19 guerras em 2003’ na edição de 10/6).
Interessante reparar que Valor e Gazeta Mercantil, jornais de economia e negócios, raramente apelam para a titulação numerológica – preferem os fatos atrás das cifras. Justamente para preservar a sua força.
O importante é evitar que a cifra substitua os fatos. Jornalismo é uma forma dinâmica de contar histórias. Se usasse apenas as estatísticas, Scheherazade teria sido decapitada na primeira noite.