Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem amarrar fatos, análises ficam soltas

Fim de semana rico em reflexões e opiniões, parecia até um renascimento do jornalismo semanal. Interpretações e opiniões para todos os gostos, liberdade de expressão concreta e disponível.


Na Veja, a entrevista do filósofo Tariq Ramadan, guru do reformismo muçulmano (páginas amarelas, pp.11-15). Na edição dominical do Estado de S.Paulo o sociólogo polonês Zygmund Bauman vê a civilização contemporânea como um Titanic ameaçado pelos icebergs do terrorismo e da catástrofe ambiental (caderno ‘Cultura, pp.1, 8-9).


No primeiro caderno da Folha de S.Paulo, uma audaciosa ‘Carta aberta às elites religiosas muçulmanas’ onde Contardo Calligaris desafia os imames a anatemizar o ódio e o terror (pág. A 21).


No caderno ‘Mais!’ um autêntico fórum onde o historiador americano Robert Darnton sugere que a violência provocada pela publicação das charges foi acirrada pelas tecnologias da comunicação que dramatizaram o choque dos dois sistemas de valores, o ocidental e o oriental (pág. 4). O filósofo francês Alain Finkielkraut segue na mesma linha ao chamar a atenção para a globalização do ódio e a ‘era dos fanáticos sem fronteiras’. Enquanto o escritor americano Jack Milles reconhece que no seio das principais religiões há um amplo movimento para privilegiar o fundamentalismo.


Dado crucial


Esta riqueza analítica e teórica, produzida pelas melhores cabeças acadêmicas, não encontra respaldo em análises feitas por jornalistas com base nos fatos mais recentes. O episódio serve como exemplo do um duplo preconceito ora em vigor na imprensa brasileira:


1. Só acadêmicos detêm o monopólio da profundidade;


2. Os fatos devem correr soltos, sem a costura interpretativa produzida por aqueles que com eles lidam cotidianamente.


Jornalistas ficam assim relegados à função de ‘fechadores de páginas’ enquanto aos acadêmicos, sobretudo estrangeiros, é oferecido o privilégio quase exclusivo da cogitação.


Enquanto as edições dominicais estavam sendo produzidas e fechadas, uma reportagem do New York Times disponibilizada na edição online na quinta à tarde (e publicada em sua edição de sexta-feira, 10/2) introduzia uma informação que alterava substancialmente as brilhantes reflexões publicadas dias depois.


O repórter Hassan Fatah, baseado no Líbano, revelou que em dezembro realizou-se em Meca uma reunião da Organização das Conferências Islâmicas da qual participaram os 57 países-membros, e onde se examinou a necessidade de reagir à onda antiislâmica na Europa.


O imam dinamarquês Abu Laman participou do encontro e, em seguida, percorreu diversas capitais árabes para encontrar-se com jornalistas e autoridades para mostrar-lhes a coleção das charges publicadas e outras tantas inéditas e apócrifas (informação confirmada pelo Economist de 11/2/2006, pág. 25). Significa que os violentos protestos no mundo islâmico foram orquestrados dois meses antes do seu início e um mês antes da republicação dos desenhos.


A matéria do NYTimes, apesar de introduzir um dado crucial para o entendimento do episódio, só foi reproduzida pelo Globo (sexta, 10/2, pág. 27) e em seguida caiu na vala comum do chamado ‘pescoção’ (o mutirão das redações brasileiras quando se produzem as edições das sextas, sábados e domingos).


Colagem eficiente


Mesmo antes da revelação do NYTimes faltou mostrar que a islamofobia ocidental, embora deplorável, é contestada por duas ações islamofílicas de âmbito multinacional:


** A reação da Comunidade Européia e da Otan aos massacres perpetrados pelos sérvios na ex-Iugoslávia contra bósnios, kosovares e albaneses, todos islâmicos, em meados dos anos 1990.


** As cobranças da União Européia à Turquia para relaxar a repressão à resistência curda. A nação curda é islâmica e tem sido sistematicamente perseguida pelos turcos, sírios, iranianos e iraquianos (durante a ditadura de Saddam Hussein) que não admitem a sua soberania.


Outra avaliação que a pressa não permitiu costurar e escapou aos analistas de origem acadêmica diz respeito ao alegado reacionarismo dos veículos que reproduziram as charges. O tradicional semanário alemão Die Zeit ostenta no seu expediente a figura do social-democrata Helmut Schmidt.


Na França, Le Monde, Liberation e Charlie Hebdo, assumidamente de esquerda, reproduziram alguns cartuns. Por uma questão de princípio. O jornalista Jean Daniel, diretor do progressista Nouvel Observateur, condenou as charges porque eram de mau gosto.


Não podem ser tachados como racistas ou islamofóbos os jornalistas árabes ou muçulmanos presos nos últimos dias por reproduzir as imagens dinamarquesas:


** Os iemenitas do al-Hurrya, Yemen Observer e al-Rai al-Aam


** Os editores de Errisala e Iqraa, da Argélia


** O editor do jornal Peta, da Indonésia


** Os malásios do Sarawak Tribune


** Os jordanianos do al-Mehwar e Shihan; etc., etc.


Para ser devidamente compreendida e desativada, além das grandes elucubrações acadêmicas a ‘Guerra Santa das Charges’ exige antes de tudo uma colagem paciente e eficiente da massa de informações.


Pela primeira vez em décadas as atitudes politicamente corretas podem ser encontradas nos dois campos. Anularam-se. Graças a Deus.


Hora de amarrar os fatos.


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ASPAS


Livro e comediante incitaram jornal da Dinamarca a questionar autocensura


Leda Balbino / copyright O Estado de S.Paulo, 9/2/2006


‘Ao finalizar o livro infantil O Alcorão e a vida do Profeta Maomé, o escritor e jornalista dinamarquês Kare Bluitgen teve dificuldades em encontrar um desenhista que aceitasse ilustrar o livro. A justificativa mais freqüente era o temor de represálias de extremistas islâmicos. Quando finalmente encontrou alguém que aceitasse o trabalho, Bluitgen não incluiu seu nome no livro: o cartunista só aceitou colaborar sob a condição de anonimato.


A experiência de Bluitgen foi um dos motivos que levaram o editor de cultura do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, Flemming Rose, a indagar se havia um sentimento de autocensura em seu país e na Europa. Rose constatou que esse temor estava disseminado, já que o comediante dinamarquês Frank Hvam havia declarado que ousaria urinar sobre a bíblia, mas não sobre o Alcorão. E em toda Europa não se encontravam tradutores para um livro de Ayan Hirsi Ali, roteirista do filme Submission, do cineasta holandês Theo Van Gogh. Em 2004, Van Gogh foi morto em represália pela forma como retratou o tratamento dado às muçulmanas.


Foi por esses motivos que Rose resolveu lançar o desafio de retratar Maomé. Doze desenhistas aceitaram a proposta, e as charges foram publicadas em setembro. Quando eles apareceram em um jornal norueguês este ano, os protestos se espalharam pelo mundo.’