Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

“Sem comunicação não há democracia”

Mais uma vez a professora Marilena Chauí, filósofa e titular da Universidade de São Paulo, é a entrevistada da capa da Caros Amigos. Em 1999 e em 2005, ela proporcionou aos leitores excelentes análises sobre universidade, democracia e eleições. Agora, a renomada professora retoma a análise da última campanha eleitoral e, mais uma vez, critica a atuação da grande imprensa empresarial, que, segundo ela, ignorou ou criminalizou a candidatura de Dilma Rousseff. Vinculada ao PT desde os anos 80, defensora entusiasmada dos governos Lula, Marilena Chauí apresenta a sua visão sobre o atual momento de transição, as questões mais candentes em relação à necessária e urgente democratização da comunicação.


***


Tatiana Merlino – Em 2006, a senhora ficou profundamente descontente com a postura da mídia durante o período eleitoral, e agora a imprensa teve novamente um comportamento bem complicado. A gente queria que a senhora começasse falando sobre a sua avaliação da cobertura da mídia nas eleições presidenciais.


Marilena Chauí – Eu diria que não houve cobertura. Houve a produção midiática da campanha eleitoral e das eleições. Cobertura significaria mostrar o que efetivamente estava se passando no primeiro turno com todos os candidatos e no segundo turno com os dois candidatos que restaram. E não foi isso que aconteceu. A candidata Dilma não teve em instante nenhum a sua campanha coberta pela mídia. Ela teve a sua campanha ou ignorada, ou deformada ou criminalizada. E do lado do candidato Serra, também não houve uma cobertura da campanha dele. Porque se tivesse havido uma cobertura da campanha dele, o que a mídia deveria ter mostrado? Essa coisa extraordinária que eu nunca vi acontecer em lugar nenhum de um candidato se autodestruir. Primeiro, o vice, ele não conseguiu escolher o vice e depois deu uma escolha que não foi feita por ele e insignificante. Em seguida, ele começa a campanha descendo a lenha no governo Lula, o qual, entretanto, numa pesquisa de opinião, tinha tido quase 90% de ótimo e bom, e, provavelmente, as pessoas que acompanhavam o programa do Serra, aquelas que opinam, devem ter dito que não era uma boa, aí ele passou a dizer que ia fazer o que o Lula estava fazendo, mas melhor. Aí, quando ele começou a explicar o que era melhor, começou a fazer propostas completamente alucinadas, foi uma alucinação que ele propôs. Bom, mas quando nós chegamos nesse ponto, você tem a entrada em cena do segundo turno. Ora, na hora que entra em cena o segundo turno, o que é que vem como uma avalanche? O famoso dossiê. O dossiê que foi atribuído ao PT, disseram que a Dilma tinha mandado fazer, que foi o famoso dossiê que o Aécio fez. Foi o dossiê que invadiu todos os planos da vida do Serra, e mais, atingiu diretamente a filha dele, que eles tinham dito que o PT que tinha violado a menina, a Verônica. Foi uma completa produção do Aécio, em Minas. Ora, isto que destruiria qualquer candidatura em qualquer tempo e lugar, o servilismo da mídia foi tal, que isto, ou não apareceu, ou apareceu em pequenas notícias e de uma maneira tão confusa que ninguém sabia do que se tratava. E, depois, quando entrou em cena o aborto, em primeiro lugar a mídia nunca disse que quem introduziu o tema do aborto foi a Marina, que fez um discurso conservador dos evangélicos para os evangélicos, introduziu os temas religiosos e o tema do aborto. Como ela não entra no segundo turno, o Serra se apropria desse tema. Ora, uma imprensa que está defendendo a liberdade de expressão, que está defendendo o espaço público, que está defendendo a opinião pública, está defendendo a liberdade de pensamento, como é que ela pode embarcar na entrada em cena como tema eleitoral de uma questão que pertence ao espaço privado, e é uma questão de religião, que é o aborto? A plena cobertura que foi dada a isso, contradizendo o próprio significado daquilo que a imprensa deveria de entender por coisa pública, espaço público, opinião pública e liberdade de pensamento e de expressão!


Bom, então, depois, no caso da Dilma, é mais interessante do que a não cobertura da campanha do Serra, porque no caso da Dilma, tentou-se primeiro a guerrilheira. É a guerrilheira, a guerrilheira… E eu tinha dito a uns amigos, este é um caminho perigoso. É um caminho perigoso, porque, em termos de história pessoal, é muito paralela à história do próprio Serra. Se você pega o comício dos cem mil, no Rio [de Janeiro], em 1961, o discurso mais radical do comício não foi o do Jango, não foi o do Brizola, não foi o do Julião, foi o do Serra como presidente da UNE. Ele fez o discurso afirmando… o núcleo do discurso do Serra em 1961 foi revolução armada. Então, eu dizia [é] um perigo, porque se eles enveredarem pela figura da Dilma guerrilheira, eles vão ter que dizer que o Serra pregou em 1961 para cem mil brasileiros a revolução armada.


Tatiana Merlino – A senhora acha que foi diferente essa cobertura da cobertura de 2006 e da cobertura de 1989? O que há de diferente?


M.C. – Eu acho que a diferença não é de natureza, a diferença é de grau. Eu diria que, desta vez, tudo aquilo que se realizou num grau um pouco menor, um pouco mais prudente, desta vez, o véu caiu de uma vez só e atingiu o grau máximo de procedimento. Então, eu diria, não é diferente se eu considerar o modo de proceder, mas é diferente se eu considerar o grau em que isto foi feito.


Gabriela Moncau – Você levantou alguns elementos que usaram para difamar a campanha dela. E aí você colocou que um, que durou inclusive até o final, foi que parecia que ela estava à sombra do Lula o tempo inteiro. Você acha que qualquer candidato teria isso ou você acha que foi por ela ser mulher?


M.C. – Ah, qualquer candidato teria. Teria sido isso, pelo seguinte, porque a gente não tem analisado muito o que aconteceu com a figura do Lula, já quase no final do segundo turno. Quando se percebeu que a possibilidade de vitória da Dilma era grande, e havia as pesquisas de opinião sobre o governo e sobre o próprio Lula, a mídia, e quem começou isso foi a própria Globo com uma clareza…


Ela começou a produzir a figura mítica do Lula. E é através da mitificação da figura do Lula que se vai, agora, falar da Dilma. Então, eu diria que é preciso fazer operar juntos o tratamento dado à Dilma com a mudança no tratamento dado ao Lula: ‘Isso é o Lula, isso é o mito do Lula, ele a não vai poder, porque isso é o Lula que é capaz.’ Isso é o analfabeto beberrão. Durante oito anos era o analfabeto beberrão, que agora é o mito político inigualável que ninguém é capaz de alcançar. Mas, ao lado disso, você tem o que? Durante oito anos, nós tivemos que aguentar que era um problema o Lula aparecer nos lugares os mais diferentes e improvisar. Tinha mania de improvisar os discursos e aí dizia muita bobagem. Quanta bobagem ele disse por causa de improvisar.


Então, Dilma ganha e vai à televisão, leva um discurso e lê. O que você vê nos comentadores da televisão, nos comentadores do rádio e no dia seguinte nos jornais? ‘Ah, não tem a capacidade de improviso do Lula, ela precisa ler, coitada, tudo dela é preparado… Você vê, ela teve que vir preparada, ela não é capaz de improvisar.’ Eu tinha vontade de atravessar os fios eletrônicos e bater nas pessoas, porque chegou num grau de perversidade, num sentido psicanalítico do termo. No nível do discurso, não dá mais, porque quando você vira na direção da perversão, a primeira característica da perversão é a de que ela é impermeável ao discurso. O grande problema da terapia psicanalítica na hora em que ela é impermeável ao discurso, porque a psicanálise opera no nível da linguagem. E você tem um evento que está ou aquém ou além do discurso. Então, a perversidade e a perversão dos comentários sobre o fato de ela ter o discurso escrito foi tal que eu falei: Já temos aqui o que serão os próximos quatro anos. Os próximos quatro anos vão ser um inferno como foram os oito do Lula, e sobretudo os quatro primeiro anos do Lula. Vai ser um inferno e não tem jeito.


Lúcia Rodrigues – Como é que a senhora explica que o PT tenha ido mais para a direita, ele fez alianças com partidos de direita, com o Sarney, com Maluf, com Renan Calheiros, com Jader Barbalho?


M.C. – Não, eu acho que é uma coisa interessantíssima que é… E isso é um elemento curioso da origem sindical do Lula e dos seus próximos. E que foi muito criticada: ‘Sindicalista nunca é radical, sindicalista gosta de negociar, é um negociador, faz concessão…’ É verdade. A peculiaridade, entretanto, do sindicalista negociador é que ele negocia com duas características: ele negocia, mas deixa uma ponta sem negociar para a ação seguinte que ele vai realizar. Ele não negocia por completo, ele deixa outra por negociar para exigir mais. O segundo traço, ele não negocia sem o aval da classe.


Bom, então, vamos pegar o governo de um sindicalista. A primeira coisa é: fez todas essas alianças. Por que? Desde 2005, desde a maldição do mensalão (eu não aguento mais bater nessa tecla), já falei muito isto: se você não fizer uma reforma política, se você não mudar o sistema político-partidário do Brasil, essas alianças permanecerão para sempre, porque o sistema partidário está montado de tal maneira que quem tem a maioria no poder executivo nunca terá a maioria no poder legislativo.


Lúcia Rodrigues – Por quê?


M.C. – Por causa do sistema da representação. Você tem super-representação, você tem a sub-representação. Você tem a proliferação de siglas de aluguel, você tem a desigualdade regional. E uma série de outros pequenos mecanismos no interior do sistema partidário. Eu não me conformo, porque foi um sistema deixado pelo Golbery [do Couto e Silva], quando percebeu que a ARENA corria o risco de perder para o PMDB. Ele deixou um sistema que, primeiro, fazia algum sentido ao bipartidarismo, mas que não faz nenhum sentido no pluripartidarismo. E que, além disso, tem uma série de traços deixados pela ditadura que tornam inviável você operar, efetivamente, com a representação que tem um alicerce no seu respectivo partido. Isso pegou todos os presidentes da República: Tancredo, Sarney, Collor, Fernando Henrique e Lula. Eu diria que é um elemento de distorção institucional e de freio na democracia, sem falar nas práticas republicanas que são postas em jogo. Porque, o núcleo da democracia que o Executivo e o Legislativo negociem: eu faço x e você faz y. É constitutivo de uma democracia que haja essa negociação contínua. Mas, no nosso caso, você vai da negociação para a negociata, porque o sistema é tal que há um hiato entre o Executivo e o Legislativo. Tem que fazer a reforma política. Eu estou muito contente, porque eu estou ouvindo a Dilma dizer que vai fazer.


Vamos examinar as realizações do governo Lula e ver se o sistema político que forçou essas alianças impediu as coisas essenciais do governo Lula. Não impediu. Você tem 18 milhões que saíram da linha da miséria, 32 milhões que saíram da linha da pobreza, 40 milhões de empregos novos com elevação salarial. Você tem 73 Conferências Nacionais com 70 mil pessoas participando para decidir sobre todos…


Lúcia Rodrigues – Mas, no caso da Comunicação, as 672 propostas não saíram do papel até agora…


M.C. – Nós vamos chegar lá, nós vamos chegar lá, espera um pouquinho. Você pega o modo como a economia foi concebida, de demanda interna, de crescimento interno, de impedir o processo de desindustrialização que tinha sido iniciado, de controlar o poder financeiro e de investir pesadamente no conjunto das políticas sociais que produzem a inclusão econômica.


Você pega os programas sociais e a tendência é ver um por um e considerar que eles são uma coisa meio dispersa. Eles formam um sistema institucional. Você tem o Bolsa Família que só funciona, porque você tem, através do PAC, o Luz para Todos, o Minha Casa Minha Vida, os quais só funcionam porque tem o PRONAF, a agricultura familiar, a qual só funciona, porque tem um atendimento para as crianças através do FUNDEP, o qual só funciona porque há um vínculo entre todas essas políticas e a economia solidária, isto é, a constituição da economia através das cooperativas, e, portanto da recusa da propriedade privada do meio social de produção. É uma coisa gigantesca, é uma coisa gigantesca!


Quando você vê cada programa social articulado no outro e o vínculo disso com o trabalho do Paul Singer, através do sistema de cooperativas, e, portanto, da propriedade coletiva dos meios sociais de produção.


Tatiana Merlino – A senhora acha que isto representa uma mudança estrutural?


M.C. – Menina! Absolutamente incalculável, incalculável, não tem volta. E vou dar um exemplo do que acontece com o bolsa família. Eu tenho uma colega, socióloga, que viajou pelo Brasil inteiro fazendo a pesquisa em torno do bolsa família. O bolsa família produziu uma desestruturação da família, porque ele produziu a perda de lugar masculino e a presença forte e determinante da figura feminina.


Isso mudou as relações de poder no interior da família, isso mudou o lugar da mulher nas pequenas comunidade e pequenas sociedades. E isso produziu o seguinte efeito: todas as mulheres do bolsa família foram capazes de usar o recurso, de tal maneira que sempre houve uma sobra, e todas elas se reuniam, e foi aí que as cooperativas foram importantes, elas formaram cooperativas, com estas sobras elas investiram, foram fazer artesanato, foram fazer costura. Há mil e uma atividades que as mulheres estão fazendo no Brasil inteirinho e isso mudou a relação com os filhos, porque, para fazer isso, elas compreenderam com clareza o significado do FUNDEB e a ida da criança para a escola. E o FUNDEB, através do PRONAF, criou o sistema nacional de merenda. A comunidade produz a merenda e a criança come, essa despesa, a mãe não tem. É uma revolução.


Lúcia Rodrigues – E no caso das Comunicações?


M.C. – E aí vem uma coisa que não foi bem sucedida. E eu diria que não foi uma coisa bem sucedida, porque isso é um problema atávico no PT. Desde 1981, não passa um, em encontros, congressos, colóquios, a comunicação. A incapacidade do PT para lidar com a questão da comunicação. O PT foi incapaz de criar um jornal. Muitos de nós ficaram desesperados, porque não foi capaz de criar jornal, de criar rádio, de ter um canal de televisão, de criar formas ágeis de comunicação.


Isso faz parte da história e da estrutura do PT. Se você me perguntar por que, eu vou te dizer que eu não sei. Porque qualquer partido de esquerda, no mundo, a primeira coisa que ele faz é criar um jornal. Muita gente é capaz de te explicar porquê: Marco Aurélio, Bucci, Pompeu tem uma ideia… Eu não sei.


Renato Pompeu – Isso gerou apoio dos setores dominantes para a Dilma. A outra questão: a alternativa para esse jogo de alianças, a senhora apresentou como sendo a reforma política. Mas, em não havendo a reforma política, esse jogo de alianças é inevitável ou há algo melhor a ser feito?


M.C. – Eu acho que ele é inevitável. Ele é inevitável e vai ser sempre, ter que andar na corda bamba, até o fim. Então, haverá áreas governamentais que realizarão da melhor maneira projetos e programas: a secretaria da participação popular, o ministério da cultura, da educação, todos os programas sociais…


Eu acho que há certo setores do governo que realizarão os seus programas e os seus projetos, apesar da aliança. E outros serão bloqueados pela aliança. Mas, é inevitável. Sem aliança política, você não governa. Eu venho de uma experiência em que eu vi isto e em cores no governo Erundina. Quando a Erundina saiu havia 365 projetos de lei na gaveta dos vereadores, fora tudo o que fizemos. Então, tudo o que nós fizemos no governo Erundina era tudo o que o Executivo, tudo o que dependeu da presença do Legislativo, nós não conseguimos fazer. Foi uma coisa sinistra, sinistra.


Renato Pompeu – E quanto ao capital financeiro?


M.C. – Quando nós atravessamos a crise do jeito que atravessou, eu disse: os banqueiros vão muito bem, obrigado, a gente sabe, mas por que a crise praticamente não nos tocou, nos tocou mais tarde que os outros e foi embora mais cedo que os outros? É porque a ênfase foi dado no capital produtivo, na reindustrialização do país, e da infraestrutura. O PAC é isso que vai ser o ponto forte do governo da Dilma, é um investimento forte de infraestrutura. Então, é uma nuvem de fumaça que nós temos de que é o capital financeiro. Ele vai muito bem, obrigado. Mas, ele não é o núcleo duro do projeto econômico e eu acho que a proposta de reestruturar o Estado, recuperar as empresas estatais, marcar a intervenção direta do Estado na produção econômica, orientar isso, prioritariamente, de um lado para o mercado interno, e , do outro lado, do hemisfério sul. Por isso, a recusa de entrar na Alca. Então, eu acho que esses dados são muito importantes para que a gente conserve a ideia de que é um projeto econômico igual do Fernando Henrique ou do PSDB, porque não é. Quando o Serra diz que forças poderosas o impediram de fazer a campanha que ele queria, é que o Serra tem uma história desenvolvimentista e a relação dele com o capital financeiro é complicada e ele não podia dizer. Então, eu acho que isso é uma marca que o aproxima do política petista, mais do que o distancia. Acho que a tristeza do Serra foi toda essa: as coisas que ele gostaria de dizer o colocavam no campo do PT e as que ele não queria dizer ele foi forçado a dizer. Isso deixa qualquer um esquizofrênico.


Hamilton Octávio de Souza – Professora, eu queria insistir na comunicação, por que a comunicação faz parte da democracia…


M.C. – Sem isto não há democracia. Sem comunicação não há democracia. Por isso eu só escrevo sobre a mídia, a mídia, a mídia.


Hamilton Octávio de Souza – Então, a senhora agora tem um compromisso de a cada cinco anos dar entrevista para a Caros Amigos


M.C. – E falar sobre a mídia… (Risos)


Hamilton Octávio de Souza – E falar sobre a mídia. Antes que a gente chegue em 2015 e a gente vai dizer que na última campanha aconteceu tudo…


M.C. – E a gente dizer: Ah, na comunicação a gente não tem nada…


Hamilton Octávio de Souza – O que é possível? O Lula ficou oito anos, ele não fez o enfrentamento que poderia ter feito com o sistema de comunicação.


M.C. – É claro.


Hamilton Octávio de Souza – O que pode ser feito nesse quadro? Porque nós sabemos que se nós não avançarmos no sistema de comunicação…


M.C. – Nós estamos perdidos…


Hamilton Octávio de Souza – … nós vamos repetir em 2012, 2014, 2016, 2018… o mesmo aparato que está aí, está montado. O aparato da burguesia está montado. Nós não temos um aparato que democratiza o sistema de comunicação. Qual o caminho?


M.C. – Eu não sei, Hamilton.


Hamilton Octávio de Souza- Como você vê isso?


M.C. – Eu não sei, eu não sei, eu não sei.


Renato Pompeu – A senhora acha que o caminho seria uma regulação estatal da mídia ou seria a esquerda ter as suas publicações?


M.C. – Eu acho que são essas duas coisas e mais outras. Eu acho a regulação indispensável. Todo mundo tem regulação. Eu vou fazer um parênteses: é que nem o caso do aborto. O aborto é legalizado em dois dos países católicos da península: Espanha, Portugal…


Wagner Nabuco – E na Itália.


M.C. – E na Itália. Os países católicos da península legalizaram o aborto. E não aconteceu nada… ou melhorou muito a condição feminina. Então, eu diria que a regulamentação da mídia é indispensável. É claro que a cabeça deles é a cabeça [dos que estão] na Venezuela, que é a cabeça do monopólio; no máximo, um oligopoliozinho, mas se puder ser um monopólio da comunicação, melhor ainda… Então, você tem que quebrar isso. E a única maneira de quebrar é através da regulamentação. E o Estado tem que fazer. E essa regulamentação não é ação do poder executivo. O poder executivo apresenta o projeto, o legislativo, que representa a sociedade tem que discutir, e todos os movimentos ligados à área de comunicação e de informação, e mais toda a coisarada da internet, tem que discutir e participar. É um processo longo, mas em que a sociedade inteira tem que participar da discussão. Mas, a iniciativa de propor tem que vir do executivo, porque o legislativo não terá essa iniciativa.


Wagner Nabuco – Eu gostaria de ouvir a sua opinião sobre a questão do Monteiro Lobato.


M.C. – A questão do Lobato é igual à de Mark Twain, nos Estados Unidos. Mark Twain tem lá o lugar que o Lobato tem aqui e tem o racismo na obra de Mark Twain. Bom, eu entendo que os movimentos negros tenham decidido de uma vez por todas dizer que não dá para suportar paternalismo e racismo, seja lá onde for. Eu compreendo isso, mas não pode censurar o livro. Não pode. Você tem que ter a formação de professores, tal, que o professor se ele dá o livro para os alunos possa discutir com os alunos o racismo, mas censurar o livro, não. Então, eu entendo que o movimento negro faça isso e ele tem o direito e obrigação de fazer isso, mas nós temos que contrabalançar, porque não pode censurar.


Débora Prado – Eu gostaria de mudar um pouco de assunto. A senhora falou das demandas do governo lidando com as demandas dos movimentos. Eu queria que a senhora avaliasse um pouco o processo histórico brasileiro: por que algumas maneiras históricas dos movimentos que são essenciais para uma transformação, que são até implementadas em democracias liberais, aqui são assuntos proibidos?


M.C. – Quais?


Débora Prado – Como encarar de frente a legalização do aborto, como a reforma agrária, como a regulamentação da mídia visando a democratização. Por que aqui no Brasil essas pautas, bandeiras antigas, históricas, não são propostas revolucionárias…


Cecília Luedemann – … abrir os arquivos da ditadura, julgar os responsáveis pela tortura e morte de brasileiros durante a ditadura…


Débora Prado – E que nos países da América Latina e países da Europa acontecem. Por que aqui é tão difícil alguém encarar isso de frente?


M.C. – Eu quero fazer uma proposta. A minha proposta é: vocês precisam fazer uma entrevista exclusiva com o Paulo Sérgio Pinheiro. Ele é o homem que trata sobre tudo isso. Ele acabou de escrever um artigo magnífico sobre o que está acontecendo no Rio [de Janeiro]. Ele é o homem que apóia o Vanucchi sobre todos os pontos de vista e não se conforma com as limitações que são impostas ao Vanucchi.


Tatiana Merlino – Professora, a senhora disse que nós tivemos mudanças estruturais no país. A senhora acha que é possível fazer uma mudança estrutural sem fazer uma reforma agrária efetiva?


M.C. – Não, mas você tem bolsões de mudança, bolsões de mudança. Veja a educação. São mudanças importantes. A gente não pode ter um mecanicismo economicista, de dizer: a base da economia é a terra, se não mexe na terra não mexe na indústria, se não mexe na indústria não mexe na finança, se não mexe na finança, não mexe na escola. Não é verdade.


Tatiana Merlino – Mas resolver a questão agrária sem a reforma agrária é possível?


M.C. – É possível, é possível. Foram feitas coisas inacreditáveis! Foram feitas. É que você tem que pensar a sociedade não como um sistema de ordens hierárquicas. Você tem que pensar a sociedade como uma rede, com nós, e foram tocados alguns nós da estrutura da sociedade e outros, não. Eu acho que o fato da Dilma ter uma proposta que é a questão da infra-estrutura ela vai mudar nisso. Eu não sei o que vai dar, porque a fala dela, o discurso dela, ela enfatiza a questão da infraestrutura, do PAC. Na infra-estrutura, o nó é a propriedade da terra. Então, vamos ver o que vai acontecer. Então, você tem que pensar nos diferentes nós, alguns que foram desatados, outros que foram reatados de outra maneira, outros que foram desfeitos, que no caso, eu acho que o governo que vai enfatizar a infra-estrutura vai ter que enfrentar isso de uma outra maneira.


Hamilton Octavio de Souza – O nome da senhora tem sido citado para o Ministério da Cultura.


M.C. – Ah, não. Deixa eu responder primeiro a pergunta dele…


Otávio Nagoya – A senhora acha que a questão da reforma agrária, a própria comunicação, houve, de fato, uma vontade política do governo Lula de levar isso a frente ou ele abriu mão para conseguir outra coisa?


M.C. – Isso eu não sei. Eu não sei se foi um ponto negociado ou se foi um ponto que foi proposto e encontrou um limite, objetivamente. Eu tive, por exemplo, várias conversas com o Marco Aurélio Garcia e ele dizia: na semana que vem ele vai me mandar tal coisa, assim, assim e assim.


Otávio Nagoya – É a pressão?


M.C. – Mas, tem coisa que não foi, sequer, enviada.


Débora Prado – Então, nesse cenário que você colocou, o papel dos movimentos históricos é colocar na pauta, é fazer pressão?


M.C. – Sim, eu acho que precisa de reforma política e pressão clara dos movimentos, porque agora tem tudo agora para fazer, porque agora tem os Conselhos, os Conselhos Nacionais. Do ponto de vista institucional, está tudo montado, tem que usar a institucionalidade para fazer isso.


Lúcia Rodrigues – Quando a senhora coloca, o governo logicamente apresenta ao congresso e o congresso aprova, mas o governo construiu, a duras penas, uma maioria no congresso. Ele poderia aprovar, sim, aborto, reforma agrária, a democratização da comunicação. Esses temas, para o governo, não acabam caindo no ralo como temas secundários.


M.C. – Olha, eu não sei, não sei se… a reforma agrária não pode ser considerada secundária, mesmo para o governo, de jeito nenhum, num país como este, de jeito nenhum. Mas, o aborto, talvez, seja considerada uma questão secundária. A mídia é uma incompetência histórica nossa para lidar com essa questão, ora por não achar importante, ora fazendo tudo errado. Então, não, nem que considerou secundário, não sabe mexer com isso, é incompetência nossa. O aborto não é uma questão prioritária e a reforma agrária encontra uma barreira do agronegócio. Então, são coisas diferentes. São prioridades diferentes, percepções diferentes, capacidades direrentes.


Lúcia Rodrigues – Mas, aí, não entra aquela questão da aliança à direita, a aliança com o agronegócio? O Lula enaltece o agronegócio, o Lula fala bem do agronegócio, como ele vai combater e propor a reforma agrária se ele está aliado no congresso…


M.C. – É isso, é uma contradição. Tem que fazer uma reforma política, se você não mudar esse sistema de alianças, a atuação é muito limitada, em certas coisas fundamentais, como o caso da reforma agrária. Eu acho que a comunicação vai passar, viu? Precisa de arranjar umas pessoas que entendam do assunto e fazer passar. E aborto passa, aborto vai passar… Porque as mulheres vão botar a boca no trombone.


Wagner Nabuco – A questão do Hamilton nos interessa: fala-se que a senhora será indicada como ministra da Cultura…


M.C. – Ah… isso é invenção da mídia. Isso não vai acontecer de jeito nenhum.


Wagner Nabuco – Mas, a senhora não gostaria ou a senhora poderia?


M.C. – Não, nenhuma coisa nem outra. É uma conversa que não está no horizonte.


Hamilton Octavio de Souza – Eu gostaria de saber a sua opinião sobre o que está acontecendo no Rio de Janeiro. A senhora apóia essa ação policial que cerca e ocupa os morros?


M.C. – Eu apoio, mas vou discutir as limitações de tudo isso. Eu acho que a intervenção é uma intervenção necessária, porque o Estado tem que estar presente em todo o território e o Estado está ausente no território das favelas, está ausente no território do crime organizado e o Estado tem que estar presente, porque a população desses territórios é refém do crime organizado. Então, a intervenção é, ao mesmo, tempo uma repressão, uma interrupção do tráfico, mas é também uma liberação da população. Por isso, eu sou favorável. Dito isso… Quais são as limitações desse processo? Primeira limitação: o Estado só poderia estar presente e ser senhor do território se não estivesse presente sob a forma militarizada, com educação, saúde, abastecimento, saneamento e cultura. Essa é a maneira pela qual o Estado tem que estar presente. Então, o Estado se faz presente, nesse momento, através da ação repressiva, porque ele precisa liberar essa população. Não é essa a maneira pela qual o Estado tem que estar presente no território, através das instituições afirmativas. Segunda limitação, as UPPs que são pouquíssimas, são 13 para 2 mil favelas, mal equipadas, e com um pessoal não preparado para o serviço que é pedido a eles, que tenderá, portanto, ou à prática da violência ou à conivência com a transgressão. Mas, sobretudo, a limitação maior, e que não se trata de uma ação visando efetivamente a ocupação estatal de territórios que estavam nas mãos do crime organizado. Primeiro, porque você não alcança o crime organizado, você não pega o núcleo dos cartéis, você pega os lambaris. Você não alcança efetivamente o objetivo. Esse é o primeiro ponto. Chamem o Paulo Sergio Pinheiro para explicar: para alcançar esse objetivo tem que controlar as fronteiras por terra. E que tal a Marinha tomar conta da baía da Guanabara, onde tudo isso entra? Isso é a ação visando o crime organizado, efetivamente, seu núcleo de poder. Então, além de todas essas limitações, desta ação, há duas outras que são importantes. O governador do Estado quer que o Exército fique por tempo indeterminado e a resposta do ministro da defesa é muito sugestiva, depois de corrigir. A correção foi: o Exército não fica, porque o Exército não tem função de polícia. Mas, a primeira resposta dele não foi essa. Ele disse não pode ficar por tempo indeterminado, porque o Exército vai ser contaminado.


Então, isso diz tudo. Isso é uma característica da sociedade brasileira o fato de que é uma sociedade na qual é impossível você estabelecer de uma maneira clara e precisa a distinção entre a polícia e o crime. É uma convivência institucional. E, finalmente, a grande limitação é, você se encontra em um momento: por que ocupar o território nesse momento agora? Está sendo feito agora por causa por causa da Copa de 2014, por causa das Olimpíadas de 2016, e onde está sendo feito é o lugar onde vai haver investimento privado de construções para o turismo do período da Copa e das Olimpíadas. Então, eu sou a favor, porque os depoimentos da população aterrorizada me impressionaram muito.


Muito. Então, o Estado tem a obrigação de livrar a população desse controle do crime. Mas, eu só vejo limitações. Limitação dos modos de ação, limitação da época, limitação dos procedimentos, tudo, tudo, tudo… Aqui, eu não tenho otimismo nenhum.


Gabriela Moncau – O que a senhora acha da legalização das drogas?


M.C. – Tem que ter, é o único jeito, não há outra solução. Se você não legalizar as drogas, você não acaba com o crime organizado.


Baby Siqueira Abraão – Mas, os cartéis não permitem…


M.C. – Eu sei que eles não permitem. Os cartéis não permitem a legalização, aí é papo num outro nível. Eles não permitem isso, eles operam na esfera dos poderes globais, não é nem aqui, nem na Venezuela, nem na Bolívia, nem no Paraguai, é lá mesmo onde eles mandam, mandam mesmo no planeta. Sobretudo, porque, está articulado ao tráfico de armas. E o grande poder nem é o das drogas, é o das armas. Então, se você não acaba com o tráfico de armas, você também não acaba com o tráfico de drogas. Mas, eu não vejo outra saída. Se você não legalizar, você não acaba com isso nunca.


Wagner Nabuco – E o lado da demanda?


M.C. – Então, se você legalizar, a demanda vai cair lá embaixo. Pega a lei seca, nos Estados Unidos, na hora que ela acabou, a demanda foi lá para baixo.


Débora Prado – É um bom argumento.


M.C. – Se você pegar a lei seca, todo crime que se organizou nos Estados Unidos, em particular em Chicago, está ligada à lei seca, quando ela acaba, tudo isso desmorona.