Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem lugar para jornalismo
na tragédia da Venezuela





Tragédias são filhas da cegueira. Entregues às paixões, aferrados às suas razões os personagens de uma tragédia esquecem que naquele mesmo momento outras paixões empurram os demais protagonistas em direção contrária. Na Venezuela, está sendo armado um confronto cujas conseqüências podem ser trágicas.

Como testemunhamos no primeiro programa desta série, foram destruídas todas as possibilidades de diálogo ou negociação. E o pior é que as pessoas que relatam esta situação são extremamente


lógicas, racionais. Conformam-se com a ruptura como se fosse a coisa mais natural do mundo.Estão enganadas: a coisa mais natural do mundo são as aproximações.

O perdão não se decreta, afirmou a socióloga Mariclen Steeling, mas tréguas podem ser pactuadas e anistias fazem parte do arsenal jurídico dos modernos sistemas políticos. O tremendo erro da mídia venezuelana ao abrigar o golpe anti-Chávez em 2002 não pode servir eternamente de pretexto para a guerra midiática. Isto aconteceu há sete anos. O castigo eterno é próprio das mentalidades fundamentalistas.


Está ficando claro que o problema da Venezuela começa com uma democracia falaciosa onde a inexistência de partidos empurrou a mídia para ocupar o lugar das câmaras legislativas. E assim, para acabar com uma hegemonia tenta-se substituí-la por outra hegemonia.


Intoxicados pelo ressentimento os protagonistas do embate venezuelano esquecem que o problema está exatamente na busca irracional de hegemonias. O equilíbrio entre os poderes é a base do sistema representativo. O regime verdadeiramente justo é aquele que resulta da pluralidade. Sem ela, tudo se transforma em slogan e grito de guerra.


A tragédia venezuelana é que já não há lugar para o jornalismo. Todas as partes se transformaram em propagandistas. Lamentamos.


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A guerra diária da imprensa venezuelana


Lilia Diniz


O Observatório da Imprensa apresentado terça-feira (24/11) pela TV Brasil exibiu a segunda e última parte da série especial sobre a mídia venezuelana. O programa ofereceu um panorama dos meios de comunicação privados e governamentais e discutiu os constantes confrontos entre a mídia independente e o presidente Hugo Rafael Chávez Frias. Excepcionalmente gravado, o programa contou com a participação do jornalista Claudio Bojunga no estúdio do Rio de Janeiro, ao lado de Alberto Dines, para comentar as reportagens gravadas em Caracas, capital da Venezuela.


No editorial que precede o debate ao vivo no estúdio, Dines relembrou que no programa anterior (17/11) os entrevistados relataram, conformados, que na Venezuela foram destruídas todas as possibilidades de diálogo e negociação. Não há tentativas de aproximação entre governo e oposição. ‘O perdão não se decreta, afirmou a socióloga Mariclen Steeling [do Observatorio Global de Medios], mas tréguas podem ser pactuadas e anistias fazem parte do arsenal jurídico dos modernos sistemas políticos. O tremendo erro da mídia venezuelana ao abrigar o golpe anti-Chávez em 2002 não pode servir eternamente de pretexto para a guerra midiática’, avaliou.


Acusação no lugar do diálogo


A reportagem mostrou que na Venezuela o governo e os meios de comunicação oposicionistas não dialogam: trocam acusações. Golpismo, mitomania e manipulação são as mais freqüentes. Para o presidente Hugo Chávez, a ‘ditadura midiática’ é o inimigo público número 1 do país. O termo empregado por Chávez foi cunhado pelo sociólogo e jornalista Ignácio Ramonet para definir o grande poder da mídia alcançado pela concentração das empresas em poucas mãos e através do uso das novas tecnologias. Na visão do presidente venezuelano, a solução seria criar uma ‘hegemonia comunicativa’ controlada pelo Estado e dirigida aos excluídos.


Para Blanca Eekhout, ministra do Poder Popular para a Comunicação e a Informação, o golpe de 2002 – no qual o presidente Chávez foi deposto por um grupo de oficiais que colocou em seu lugar o empresário Pedro Carmona – é um exemplo para o mundo do que pode ser o papel da mídia. Desde o processo constituinte, em 1999, buscava-se uma ‘comunicação transformadora’ com os diversos segmentos da mídia e, desta forma, a Constituição deveria ser feita ‘para todos’.


‘No entanto, ainda que isto esteja na lei, as transformações são muito lentas porque o poder midiático é enorme’, disse Blanca. As mudanças começam com o ‘enorme ataque golpista’, no qual militares, empresários, igreja e partidos de oposição estavam ‘totalmente dirigidos’ pelos meios de comunicação. Era o ‘circo midiático’, na avaliação da ministra.


Protestar é crime?


Nos últimos anos, na opinião de André Cañizalles, integrante do Centro de Investigación da Comunicación, a crítica e o protesto têm sido criminalizados na Venezuela. ‘O governo tem pouca tolerância com a crítica pública’, avaliou. Hugo Chávez deseja evitar a crítica e ter um ‘jornalismo oficial complacente’. Para Cañizalles, os meios de comunicação controlados pelo Estado têm uma atitude servil e bajulatória em relação ao poder. Quando há entrevistas coletivas com os ministros, por exemplo, o governo não convoca toda a imprensa, mas somente a oficial, porque esta não fará ‘perguntas difíceis’. Cañizalles explicou que uma forma de prejudicar a imprensa escrita é por meio do controle da publicidade oficial. Jornais oposicionistas, mesmo os que são amplamente reconhecidos no mercado, não recebem anúncios do governo.


‘Nenhum proprietário de veículo privado maneja tão discriminatoriamente como Hugo Chávez administra os veículos do Estado’, criticou Teodoro Petkoff, que foi ministro do governo Rafael Caldera (1994-1998) e atualmente dirige o jornal oposicionista Tal Cual. A República Bolivariana hoje controla seis canais de TV, duas cadeias de rádio nacionais, cerca de 70 emissoras de rádio espalhadas pelo país e em torno de 300 emissoras comunitárias que foram concedidas a partidários do governo.


Além deste aparato, há um constante assédio sobre a mídia privada. Petkoff listou os exemplos mais significativos: a não renovação da concessão do canal de televisão RCTV; a permanente hostilidade à emissora Globovisión; a cooptação do canal Venevisión através de um acordo entre Hugo Chávez e o proprietário do grupo, Gustavo Cisneros, e a pressão sobre as rádios que culminou com o fechamento de 34 emissoras.


Legal vs. legítimo


Maryclen Steeling disse que as medidas tomadas pelo governo estão sustentadas pela lei, mas que a forma como o governo as implementa deslegitima as ações. ‘Uma medida pode ser legal, mas se o presidente da República diz: `decidi não renovar a concessão da RCTV porque é um canal golpista´ – e ele faz isto em um contexto militar, com boina de pára-quedista – está deslegitimando uma medida que é absolutamente legal’, afirmou. O discurso usado para fechar as emissoras não é legítimo porque amedronta e é coercitivo. Na opinião da socióloga, o presidente da Venezuela se comporta como se estivesse ‘em sua casa’.


No início do debate no estúdio, Dines comentou com Bojunga que a ministra Blanca Eekhout assume a lógica de ‘comissária do povo que não está ali para tentar resolver, mas para agravar’. Por outro lado, Dines observou que a socióloga Maryclen Steeling, mesmo sendo identificada com a ideologia chavista, estabelece a diferença entre o que é legal e o que é legítimo. Bojunga disse que não se pode cultivar infinitamente o trauma do golpe de 2002 e criar uma imprensa ‘chapa branca’.


No segundo bloco do Observatório, a reportagem feita por Bojunga mostrou que a partir de 2005 Chávez anunciou o ‘socialismo século 21’. Os mártires e heróis da independência do continente – Simon Bolívar, San Martin, José Martí, General Artigas, Tiradentes – viraram precursores de Fidel Castro e Chávez na luta contra o ‘Império’. O regime adotou a ‘democracia participativa’ em oposição à ‘representativa’. Mediante eleições e plebiscitos, Chávez procurou a adesão popular ao projeto de se perpetuar no poder e enfraquecer as instituições e os controles políticos. Passou a pressionar a mídia e a reduzir o espaço do pluralismo.


O canal agitador


Um dos símbolos da resistência contra o governo venezuelano é o canal all news Globovisión. Para Chávez, a emissora incita o ódio e estimula a violência urbana. Já a oposição o considera como o último canal independente da Venezuela. Alberto Federico Ravell, diretor da emissora, destacou que ainda faltam cinco anos para a concessão expirar e até lá o governo não poderá atacá-la. Para Ravell, um canal de notícias 24 horas sempre incomoda governos autoritários.


A ministra Blanca Eekhout disse que o canal tem um papel específico: o de agitador. ‘Mantém a sua audiência em uma espécie de paranóia esquizofrênica. Foi fundamental em todo o processo de golpe de Estado’, criticou. Orquestrou a ‘campanha de ódio’ entre os setores da sociedade durante a greve petroleira e é um provocador constante, na visão da ministra. Alberto Ravell argumentou que o presidente queria ditar a linha editorial do canal. Ofereceu acesso às informações oficiais e publicidade. O canal não aceitou e, em represália, sofreu inúmeros processos. Seus jornalistas são constantemente agredidos nas ruas de Caracas.


No início de agosto de 2009, a sede da emissora foi invadida por um grupo armado que agrediu os seguranças do local. A ministra Blanca Eekhout negou que o ataque tenha sido incitado pelo presidente. ‘O que aconteceu na Globovisión foi uma ação de provocação, uma escaramuça que eles apresentaram mil vezes na TV. É um grupo que não responde de forma alguma a nenhuma direção. Nem do governo, nem do partido, nem do povo venezuelano’, garantiu.


O perigo da autocensura


Para Ravell, Hugo Chávez conseguiu o que nenhum outro governo alcançou: a autocensura dos meios de comunicação. A reportagem destacou que Ewald Sharfenberg, diretor do Instituto Prensa y Sociedad (IPS), denuncia a ‘censura sutil’, apoiada em leis de imprensa ambíguas. Desta forma, jornalistas ficam sem saber o limite entre o permitido e o proibido e evitam cobrir assuntos polêmicos.


Sharfenberg denomina este mecanismo de ‘crime perfeito’, pois é cometido pela própria vítima, em nome de terceiros, sem deixar vestígios. A censura aberta é ‘barulhenta’ e sempre é percebida pela sociedade. Quando o jornalista decide não cobrir uma informação – ou a direção de um meio de comunicação decide não divulgá-la – há um duplo prejuízo para a sociedade. Além de ser privada da notícia em si, a população acaba sem saber que houve a autocensura. É, na opinião de Sharfenberg, o sonho de todo governo autoritário: a vítima castigar a si mesma.


A mídia que troca de lado


Outro mecanismo da ‘domesticação’ explicitado por Bojunga é a cooptação. Um exemplo é a transformação do grupo Venevisión. Em 2002, o empresário Gustavo Cisneros foi um dos principais articuladores do golpe contra o presidente Hugo Chávez. Petkoff disse que, com a volta de Chávez ao poder, o dono da emissora pediu uma audiência com o chefe do governo para desculpar-se e fez um acordo que mudou a linha editorial do grupo de comunicação. ‘Da noite para o dia se transformou em um `midiocrata´ a serviço do governo’, avaliou.


Petkoff explicou que sempre condenou o golpe, mas que se opõe ao regime chavista. Há dez anos o diretor do jornal TalCual vive uma ‘queda de braço’ com o governo. O fato de o governo chavista não avançar contra o jornal de forma mais incisiva é decorrente do fato de que metade da população está na oposição. Petkoff destacou que a Venezuela não é uma ditadura, como Cuba. Existe a arquitetura do Estado Democrático, embora, na prática, o funcionamento das instituições seja duvidoso.


Bojunga explicou, no debate no estúdio, que os empresários achavam que Hugo Chávez seria um fenômeno passageiro, por isso toleraram sua eleição. Mas, após as primeiras medidas do presidente, passaram a temer o chefe do governo – e a atacá-lo. Quando Cisneros percebeu que Chávez tinha a intenção de permanecer um longo tempo no poder, ‘virou a casaca de um dia para o outro por interesses puramente financeiros’.


Liberdade de expressão na América


No terceiro e último bloco do programa, a reportagem explicou que a tentativa de eliminar a alternância do poder se espalha pelo continente e vem acompanhada de crescente hostilidade à imprensa independente por governos de países que integram a Alternativa Bolivariana (ALBA) – Equador, Bolívia, Nicarágua –, e agora pela Argentina da presidente Cristina Kirchner.


Ewald Sharfenberg disse que há ameaças à integridade física dos profissionais de imprensa no México, na Colômbia e na Guatemala, por grupos terroristas, narcotraficantes e guerrilheiros. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua e, agora, na Argentina há intimidação e pressão estatal. O jornalismo independente é atacado sistematicamente. Eleazar Díaz Rangel, diretor do jornal Ultimas Noticias, disse que muitos órgãos importantes não estão cumprindo a missão de transmitir a verdade dos fatos. Em vez disso, colocam seu grande poder – tanto jornais, como as rádios e tevês – a serviço de posições políticas. Rangel acredita que a opinião deve ser livre nos editoriais e artigos assinados, mas as notícias devem se pautar pela busca da verdade dos acontecimentos.