Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sentido político do acesso aos arquivos da repressão

A importância do novo manifesto em que se pede a abertura dos arquivos da repressão, encabeçado por Audálio Dantas e outros jornalistas (ver remissão para a lista de signatários), é política – logo, cívica. Reação a uma nota do Comando do Exército que defendia intimidação, tortura, assassinato, censura e demais instrumentos usados pela ditadura contra oposicionistas de diferentes matizes sob a guarda do Estado.

Essa nota, dados seu teor de insubordinação e as idéias que defendia, foi uma aberta ação antidemocrática. A democracia não sobrevive sem legalidade.

O coronel reformado Geraldo Cavagnari, fundador e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp, diz que ainda é muito forte dentro das Forças Armadas o núcleo, numericamente bem pequeno, de remanescentes dos grupos que participaram da conspiração que levou ao golpe de 1964, serviram durante o regime militar e participaram da repressão e da tortura.

‘Mas só do posto de tenente-coronel para cima’, explica. ‘Até o posto de major, com certeza a oficialidade não tem compromisso com esses episódios e acha que é preciso abrir os arquivos’, afirma. Os oficiais das novas gerações, segundo o pesquisador da Unicamp, não têm por que assumir a responsabilidade por fatos que se revestem de significado histórico, mas não institucional.

Entretanto, como existe solidariedade corporativa, exacerbada no caso dos militares, o país ainda está sujeito a ‘recaídas’ como a expressada, na opinião de Cavagnari, pela nota do Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex) divulgada em 17 de outubro, juntamente com supostas fotografias do jornalista Vladimir Herzog.

O pesquisador está convencido de que só daqui a algum tempo se conhecerá melhor o que aconteceu no episódio que precipitou a queda do ministro da Defesa, José Viegas.

‘O único que não se pode culpar é o general chefe do Ccomsex (Antônio Gabriel Esper)’, sustenta Cavagnari. ‘Ele jamais tomaria por conta própria a iniciativa de divulgar aquela nota. Nem mesmo o comandante do Exército (general Francisco Albuquerque) o faria. É uma questão de disciplina’.

Juiz fez boa política

A Justiça foi o primeiro dos três poderes da República a se mexer contra a ‘caixa-preta’ militar, quando o juiz Paulo Alberto Jorge, da 1ª Vara Federal de Guaratinguetá, acolhendo solicitação do procurador da República em Taubaté, João Gilberto Gonçalves Júnior, mandou recolher a um quartel do Exército em Lorena os documentos classificados relativos ao período 1964-1985 em poder das três Forças.

O Estado de S. Paulo tem razão quando afirma em editorial (18 de novembro) que a decisão do juiz é tecnicamente inócua. Examinar os arquivos é tarefa complexa que requer extremo cuidado. As fichas da repressão política contêm imprecisões, denúncias forjadas para prejudicar desafetos, e certamente não muita coisa sobre violências cometidas sob a chancela do Estado brasileiro – embora várias fontes importantes insistam em afirmar que o Exército tem relatos sigilosos sobre as operações contra a guerrilha do Araguaia; o próprio ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse em entrevista ao Estadão (21 de novembro) que ainda há documentos a examinar.

A iniciativa do promotor e a decisão do juiz tiveram importância política.

A revelação mais chocante

Nos últimos anos, nenhuma revelação sobre o período da ditadura foi tão contundente quanto a feita por Elio Gaspari, no livro A Ditadura Derrotada, sobre a posição do presidente Ernesto Geisel diante da tortura e da eliminação física de oponentes. Geisel as considerava instrumentos válidos de poder.

‘Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser’ (Geisel conversa com o general Dale Coutinho, pág. 324).

‘É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa’ (Geisel conversa com o tenente-coronel Germano Pedrozo, pág. 388).

Na página seguinte, Gaspari afirma:

‘Clandestinidade, no caso, não significava paralelismo, autonomia ou descontrole. Os assassinatos eram praticados pela máquina do Estado, com o beneplácito da hierarquia. Eram clandestinos porque, dentro dela, ocultavam-se’.

Gaspari trabalhou com arquivos pessoais de Geisel, de Golbery do Couto e Silva e de Heitor de Aquino Ferreira, entre outros. Seu trabalho é mais uma prova de que destruir ou ocultar arquivos oficiais não sepultará o passado.