Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Serenidade em gotas

Os oito anos de governo do presidente Lula foram marcados por uma interrogação constante sobre a cabeça de uma parcela da população. Ou algo mais do que um ponto de interrogação porque não se trata apenas de uma dúvida, mas também de um incômodo. Refiro-me ao sentimento daqueles que de alguma forma se indignam com o monopólio dos meios de comunicação no Brasil e com a completa falta de compromisso com o dever de informar o leitor por parte de muitos dos grandes veículos de imprensa do país.

Nos dois mandatos de Lula surpreendeu e incomodou a maneira como pouco ou quase nada foi feito no que diz respeito às questões que envolvem os meios de comunicação, mais especificamente a imprensa. Ao menor sinal de início de diálogo sobre formas de conter os despautérios midiáticos ou debater o monopólio, as páginas de opinião bradavam seu velho discurso retórico de ameaça à liberdade de imprensa e o governo recuava. Foi assim, por exemplo, com o Conselho de Jornalismo. Recuou-se também todas as vezes que vergonhosas mentiras tomaram as capas dos jornais. A que me ocorre primeiro é a da tal ficha falsa da Dilma, que foi capa da Folha de S.Paulo. Para não falar dos ataques quase diários, baseados nos mais diversos temas: dos hábitos pessoais do presidente à sua forma de falar; do notável despreparo na cobertura do Planalto até histórias esdrúxulas de quando ele estava preso.

Não acho que o presidente foi vítima da imprensa nos últimos oito anos, mas tenho clareza que ela o atacou de maneira desleal e de certa forma o governo que ele representa optou por recuar. Não sei bem como pretendia funcionar essa estratégia, nem pretendo avaliar se ela foi bem sucedida. Mas a imprensa deitou e rolou, não apenas porque abundam péssimos jornalistas e por interesses políticos, mas também porque o silêncio e a inércia da outra parte foram uma constante.

O assunto que domina as manchetes

Como já afirmei, esse contexto sempre incomodou bastante àqueles que, no lugar de credibilidade, devotam à imprensa nacional um olhar crítico. Por isso, estas pessoas não veem com tanto entusiasmo ou não dão tanta atenção às recentes investidas do presidente contra o que ele mesmo chamou de ‘partido da mídia’. Ora, a batalha é antiga, já está rolando, principalmente na internet, há anos. Assim, ainda que a fala dele contenha muito do que pensa uma parcela da população, ela, de certa forma, parece tardia.

Este não parece ter sido o entendimento dos grandes veículos de comunicação. Após o discurso de Lula em Campinas no último dia 18, o que se viu foram reações, no mínimo, ensandecidas – para usar uma expressão de Alberto Dines, ao analisar a edição do Estadão do dia 22. Sem qualquer explicação coerente, vociferou-se em defesa da democracia, pois ela estaria ameaçada. As comparações com a Venezuela – outra vítima da desinformação na imprensa nativa – surgiram rapidamente. E dá-lhe matérias com conhecidos jargões: ‘ataque à liberdade de imprensa’, ‘ameaça à democracia’, ‘ditadura do lulismo’ etc. Não surpreende a reação da mídia grande, mas a coragem para fazer análises absolutamente desconectadas da realidade assusta.

Mas de tudo que li, o que mais me chamou a atenção foi um texto de Eugenio Bucci, publicado no Estadão (23/9) sob o título ‘Um pingo de serenidade’. Bucci comenta as reações de Lula, em perfeita conformidade com o que o jornal faz há dias. Este é o assunto que domina as manchetes do Estadão, impresso e online. No site, das dez matérias mais comentadas no dia 23, seis diziam respeito ao tema, uma ao Corinthians e mais três sobre pesquisas eleitorais, Dilma e caso Erenice. Este parece ser mesmo o assunto mais relevante no momento.

Convivendo com ‘coisas inventadas’

A questão é que Bucci é um bom jornalista. Ele não podia fazer coro aos que compararam Lula a Mussolini – estava em manchete do Estadão que em ato público esta comparação foi feita. Pode-se dizer que a análise dele é mais refinada. O argumento central é baseado no fato de que o presidente jamais poderia ter se manifestado contra a imprensa. Primeiro porque não há motivos, o governo tem ótimos índices de aprovação. ‘Por que, então, todo esse ressentimento?’, questionará ele. Segundo, porque as denúncias feitas pela imprensa procedem. Nesse caso, Bucci usa o caso Erenice de exemplo: ‘Se a demissão procede, por que tanta raiva?’

Mais adiante, o jornalista dirá que compreende as mágoas das autoridades em relação ao noticiário, mas que isso não cabe ao presidente: ‘O estadista, por dever de ofício, não pode permitir que sua dor pessoal conduza suas atitudes como chefe de Estado.’ O que ele desconsidera é que não se trata de dor pessoal, seria um reducionismo entender assim. Muitos dos ataques da imprensa são direcionados ao executivo, ao governo em si, e não pessoalmente a Lula. Por outro lado, o que se viu na cobertura dos últimos oito anos foi uma imensa salada onde não raro hábitos e atitudes pessoais do presidente serviram à análise política e econômica. Foi a própria imprensa que há bastante tempo apagou a fronteira entre o universo pessoal e o do estadista.

Os argumentos de Bucci são frágeis porque ao utilizar a suposta procedência de certas denúncias e o notável sucesso do governo (nos índices, pelo menos), ele encobre as reais razões do que foi dito por Lula. E daí, que os índices econômicos estejam excelentes? Isso nunca foi noticiado na imprensa como resultado do trabalho deste governo, e sim, da política traçada por FHC – que, recentemente, em um momento de lucidez, declarou em entrevista ao Estadão que o sucesso na economia é obra de Lula. O que o presidente reclamou – tardiamente, é verdade, mas com absoluta coerência – foi daquilo que já listei acima: invenção de fatos, manchetes falaciosas, uso da sua vida pessoal etc. É contra isso que ele bradava quando afirmou que ‘liberdade de imprensa não significa que você possa inventar coisas o dia inteiro’, pelo simples fato de que ele governou do começo ao fim de seu mandato convivendo com ‘coisas inventadas’.

Uma constatação, não uma crítica

A conclusão de Bucci será que os atos do presidente levam a um engano acerca do entendimento do que seria ‘liberdade de imprensa’. Lula disse que liberdade de imprensa significa ter ‘liberdade de informar corretamente a opinião pública’. Ele não teve tempo, infelizmente, para no palanque discorrer longamente sobre o que seria ‘corretamente’ e aprofundar seu conceito de liberdade de imprensa. Mas Bucci o faz, baseado apenas nessa fala. Dirá o jornalista:

‘Não é bem assim. A liberdade de imprensa inclui a liberdade de que veículos impressos – que não são radiodifusão e, portanto, não dependem de concessão pública – assumam uma linha editorial abertamente partidária. Qualquer órgão impresso (ou na internet) pode, se quiser, fazer oposição sistemática. A liberdade não foi conquistada apenas para os que `informam corretamente´, mas também para os que, na opinião desse ou daquele presidente da República, não informam tão corretamente assim.’

Ora, mas em que momento foi dito pelo presidente que informar corretamente é nunca ‘fazer oposição sistemática’? Pelo contrário, ele afirma exatamente isso, que diversos veículos fazem oposição clara a seu governo. É uma constatação, não necessariamente uma crítica. A crítica advém do fato que estes veículos se colocam como imparciais, vitrines dos fatos e da realidade. Ao noticiar este ou aquele acontecimento, eles não deixam claro para o leitor que se trata de um ponto de vista, ou mesmo de uma ‘oposição sistemática’. Nunca.

Liberdade de expressão é inquestionável

Bucci é professor universitário e conhece bem as noções de credibilidade e verdade. É contra elas que o presidente se coloca. E mais: se coloca contra também a vergonhosa forma de se fazer jornalismo que tem cada vez mais lugar no Brasil. Ou seja, é um engano misturar a ideia de oposição com a noção de que pode-se dizer o que for, mesmo que os fatos não tenham ocorrido, as falas não existam ou o feito nunca tenha sido registrado. A tal ficha da Dilma que nunca existiu e a fala do historiador recentemente inventada por Veja são bons exemplos.

Todo o texto de Eugenio Bucci é construído, a meu ver, sob argumentos equivocados. No entanto, ele chega ao final com algo que parece um lapso de consciência. Depois de retificar boa parte dos que vem sendo dito pelos grandes meios, Bucci pondera que isso não ameaça a ordem democrática. ‘Não exageremos’, diz. ‘Temos ampla liberdade de expressão no Brasil’, completa.

Em meio a atos ensandecidos, tão corriqueiros na imprensa nativa, Bucci, finalmente, jogou um pingo de serenidade. A definição é precisa para que desconsideremos o alvoroço descabido: temos ampla liberdade de expressão no Brasil. Isso é inquestionável – até Bucci e o Estadão sabem.

Links

O artigo de Eugenio Bucci

A entrevista de FHC

O texto de Alberto Dines

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Jornalista