Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Seriedade no Congresso, pilhéria na mídia

Quarenta e nove anos separam duas madrugadas históricas do Congresso Nacional. Na primeira, em 2 de abril de 1964, senadores e deputados capitularam de forma vergonhosa ao golpe militar da véspera, dando o pretexto legislativo para que o senador Auro de Moura Andrade, de forma leviana, decretasse a vacância do cargo de presidente da República, na mentirosa suposição de que João Goulart estivesse fora do Brasil. Na realidade, Jango estava em Porto Alegre, justamente avaliando as possibilidades de resistência ao golpe desfechado horas antes, com as tropas movimentadas em Juiz de Fora (MG) pelo general Olympio Mourão Filho.

A bancada leal ao governo tentou barrar a manobra parlamentar que daria fachada legal ao golpe. Um ofício urgente do chefe da Casa Civil de Jango, Darcy Ribeiro, foi entregue naquele momento ao presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade. Ali, tudo estava claro:

“O Sr. Presidente da República incumbiu-me de comunicar a V.Excia que, em virtude dos acontecimentos nacionais das últimas horas, para preservar do esbulho criminoso o mandato que o povo lhe concedeu e investido na [posição de] chefe do Poder Executivo, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul, onde se encontra à frente das tropas militares legalistas, no pleno exercício do poder constitucional de seu ministério”.

Jango não estava no exterior, não era fugitivo, não fizera nenhuma desfeita ao Congresso. Diante do desprezo dedicado por Auro ao ofício da Casa Civil, o deputado Tancredo Neves foi ao microfone e apelou, aos gritos: “Telefone para Porto Alegre, nos dê três horas e o presidente João Goulart estará aqui”. Auro se fez de surdo e, contrariando os fatos e a Constituição, declarou vaga a Presidência, dando o pretexto formal que os golpistas necessitavam para legalizar a deposição de Jango. Neste momento, impotente para evitar a manobra, Tancredo, conhecido por sua moderação e bom senso, não se conteve e berrou ao microfone: “Canalha! Canalha!”. Um desabafo que não consta das notas taquigráficas, mas resume o sentimento de quem não compactuava com aquela patifaria.

Na manhã de 2 de abril, o embuste ficou eternizado na manchete daquele dia de O Globo, que sem qualquer mea culpa desinformava seus leitores: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”. No mesmo dia o Jornal do Brasil desmentia o concorrente, contando a verdade que O Globo falseava: “Goulart resiste no sul e o Congresso empossa Mazzilli”. Com essa farsa coordenada, os golpistas ganharam naquele momento decisivo a chancela do Parlamento para violar a Constituição.

Primeiro ato

Com a subalterna cumplicidade da eventual maioria golpista do Congresso naquela tensa madrugada, Jango foi apresentado ao país como um reles fugitivo. A realidade da história, escamoteada por aquela decisão ilegal, é que Jango foi, de fato, deposto de uma maneira imoral, inconstitucional, indecente e covarde, como disse o senador Simon. Esta é a verdade.

Agora, 49 anos depois daquela triste sessão, o Congresso volta a se reunir, em outra madrugada, em 21 de novembro de 2013, para corrigir seu erro histórico e corrigir um deslize que transformava o Parlamento em parceiro ilegítimo de um golpe militar que acabaria fechando o Parlamento por três vezes, ao longo de uma ditadura de duas décadas. Uma resolução proposta pelo senador Pedro Simon (PDMB-RS) e por mim [senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP)] anulou aquela sessão do passado que declarou vaga a Presidência legalmente ocupada por João Goulart.

Estamos agora fazendo a nossa parte e restabelecendo a verdade na história do país. Num texto enxuto, de um único artigo de três linhas e 38 palavras, o Congresso reescreve aquela página mentirosa, afirmando:

“Declarar nula a declaração de vacância da Presidência da República exarada pelo Presidente do Congresso Nacional, senador Auro de Moura Andrade, na segunda sessão conjunta, da quinta legislatura do Congresso Nacional, realizada em 2 de abril de 1964”.

Assim, de forma expedita, o Parlamento corrige o seu mau passo de então, decretando que Jango não é mais um fugitivo, mas um presidente deposto. Tecnicamente, o general Humberto Castelo Branco deixa, assim, de ser um presidente legalmente empossado 13 dias após a farsa da madrugada para se converter no primeiro dos cinco generais-presidentes do ciclo autoritário que prescindia de voto, de povo e, portanto, de Parlamento.

Não é uma declaração meramente formal, uma simples filigrana burocrática. É uma resolução altiva do Congresso que devolve Jango ao patamar de dignidade que a história lhe garante, e que os brasileiros não podem sonegar. Como bem lembrou o deputado Vieira da Cunha (PDT-RS), Jango ganhou por três vezes o apoio do povo brasileiro na sua missão presidencial. Duas vezes, sucessivamente, eleito vice-presidente da República em 1955, com Juscelino Kubitschek, e em 1960, com Jânio Quadros. Na primeira eleição, teve ainda mais votos do que o presidente JK. Em 1963, teve seus poderes reafirmados de forma esmagadora, no plebiscito que devolveu o país ao sistema presidencialista graças aos 9 milhões de votos contra os 2 milhões que apoiavam a manutenção do parlamentarismo.

Não é uma declaração que ignora os eventos militares que levaram aos tristes desdobramentos que hoje fazem parte desse período obscuro de nossa História. Como destaquei naquela noite memorável:

“Estamos falando de um ato civil, de um ato do Congresso Nacional que deu legitimidade, que deu ar de legalidade a um ato ilegal, a um golpe de Estado. E não se constrói um país democrático se a Casa que é guardiã da democracia não reparar as arbitrariedades e as manchas que foram produzidas no passado. Não se trata de votar contra nada e contra ninguém. Trata-se de votar a favor: a favor da História, a favor da democracia, a favor do Brasil”.

Os dois senadores que patrocinam esta resolução são exemplos singulares no corpo do Congresso. Um pela qualificação, outro pelo testemunho, ambos pela idade. Ele, Pedro Simon, é um dos mais antigos parlamentares da Casa, com 83 anos e quatro mandatos sucessivos no Senado, o que lhe dá a condição de testemunha ocular da História, inclusive dos eventos que levaram à deposição de Jango. Eu, Randolfe Rodrigues, sou o mais jovem senador da República, nascido oito anos após o golpe de 1964, com uma qualificação profissional raríssima no Parlamento: sou historiador, o único do Senado, com a companhia de apenas dois dos 513 deputados da Câmara.

A testemunha e o historiador juntaram esforços, assim, para desmascarar um ato leviano do Congresso que depôs um presidente, colocando no seu lugar o presidente da Câmara. Uma semana depois ele nomearia três novos ministros militares que ajudaram a fazer um ato institucional, ainda sem número, que transformou o Congresso às pressas em colégio eleitoral para sagrar o general Castelo Branco como o primeiro presidente da ditadura que se instalava. Tudo isso fica claro, agora, com o gesto altivo do Congresso, que votou para restabelecer a verdade na história do Brasil.

Direito e dever

A decisão do Congresso pode ter surpreendido muitos que, por boas razões, descreem do Parlamento. Mas, nada me espantou mais do que a incompreensão de parte da imprensa, que tratou a digna resolução do Congresso em tom de pilhéria, galhofa ou piada sem graça. A revista Veja, o mais importante semanário do país (tiragem de um milhão de exemplares) e a segunda maior revista de informações do mundo (atrás apenas da americana Time), abriu espaço para a exumação dos restos de Jango em São Borja, numa abordagem jornalística de tom jocoso que não combina com a seriedade histórica do evento. Numa reportagem de três páginas, sob um título pouco feliz (“Sepulturas sem sossego”), Veja mistura aleatoriamente Lênin, Hugo Chávez e Evita Perón para reclamar que Jango foi transformado “na bola da vez pelos praticantes da política dos mortos”, vítima dos que, segundo a revista, “vivem à procura de pretextos para algum acerto de contas com o passado que permita reescrever a história com a mão esquerda” (ver aqui, Veja nº 2348, páginas 72-74).

Infelizmente, Veja esquece que ninguém precisa de pretextos para fazer o acerto de contas com o passado quando ele é escorado em mentiras, já que a História exige ser escrita não com a mão esquerda ou direita, mas com a mão certa e certeira da verdade. O blogueiro mais importante e mais polêmico da revista, Reinaldo Azevedo, que chega a ter 300 mil acessos num único dia no seu portal no sítio da Veja.com, foi ainda mais debochado (ver aqui). Carimbou a resolução do Congresso de “ridícula” e “patética”, coroando o texto com este título: “Chamem o Super-Homem para inverter o movimento da Terra e salvar o mandato de João Goulart!”

E desfiou um raciocínio que não resiste ao bom senso de ninguém: “Só falta declarar sem efeito todos os atos tomados pelos sucessivos presidentes do regime militar”. Se isso fosse possível, nossa segunda resolução seria anular os atos de força que impuseram a censura a Veja, violentada três meses após sua fundação, em setembro de 1968, pelos superpoderes do AI-5, o filho mais dileto do golpe que derrubou Jango. Nem foi preciso chamar o Super-Homem para acabar com a farsa do Congresso. Bastou uma resolução.

Um dos sites mais importantes do país, o Diário do Poder, do jornalista Cláudio Humberto, chegou a noticiar duas vezes o gesto reparador do Congresso, em tons distintos. No espaço de menos de onze horas, evoluiu do deboche para a sobriedade. Às 8h31 da edição de 21 de novembro, num texto assinado por Myrcia Hessen – uma jovem e promissora repórter de 24 anos, nascida no ano em que o país voltou a eleger presidente pelo voto direto depois do golpe que derrubou Jango –, o site escancarou: “Demagogia – O Congresso anula o golpe, agora só falta ressuscitar Jango” (ver aqui). A legenda da foto dizia o óbvio (“Decisão não altera a história”) e começava o texto com uma paulada exemplar: “O Congresso Nacional aprovou, durante a madrugada, um projeto de resolução que é um primor de demagogia, oportunismo e inutilidade”.

Menos de onze horas depois, no mesmo dia, o site publicou outro texto, às 19h09, desta vez assinado pela repórter Lane Barreto, certamente mais experiente: “Congresso Nacional – Pedro Simon lembrou dia em que João Goulart foi afastado” (ver aqui). Uma foto expressiva do senador Simon dominava uma legenda precisa e informativa. O texto, ao contrário do anterior, tinha um tom sóbrio, sem adjetivos, relatando com objetividade a sessão histórica do Congresso.

No mesmo portal da Veja.com, havia um exemplo dessa vez eloquente de precisão jornalística. O blog do jornalista Ricardo Setti, sem qualquer concessão à inutilidade ou arroubos demagógicos, tratou de cumprir uma missão essencial do bom jornalismo: informar melhor o seu leitor com dados novos que facilitam a compreensão da história. Setti resgatou o áudio da sessão vergonhosa do Congresso de 1964, documento sonoro essencial para quem precisa avaliar a história com a isenção dos fatos indesmentíveis. Título do post: “Áudio histórico imperdível: a tumultuada sessão do Congresso que declarou vaga a Presidência depois do golpe de 1964”.

É um pedaço de áudio de 3’18”, mas está lá a voz grave do senador Auro de Moura Andrade, anunciando a presença de 152 deputados e 26 senadores. Ninguém imaginava que era apenas o início de uma farsa que acabaria em tragédia (ver aqui). Setti avisa aos seus leitores: “É a história contemporânea do país pulsando, num áudio emocionante, de arrepiar, que vocês poderão ouvir a seguir”.

Até a Zero Hora, de Porto Alegre, com tiragem de 184 mil exemplares, derrapou na avaliação dos atos de exumação de Jango (ver aqui), publicando um editorial veemente já no título infeliz: “Revisionismo pirotécnico”. O maior e mais importante jornal do Rio Grande do Sul, terra natal de Jango, capitulava à farsa de 1964 (“O Congresso da época chancelou tudo: não dá para apagar esta parte triste”) e sonegava aos políticos o direito e o dever de corrigir seus próprios erros: “Os historiadores e biógrafos têm melhores condições do que os políticos de definir um perfil menos idealizado dessa e de outras figuras públicas do país”. O senador Simon respondeu ao editorial com um artigo, uma semana depois, que se justificava no título: “Jango e a exumação da verdade” (ver aqui).

Compromisso eterno

A melhor percepção do processo de resgate histórico de Jango, na imprensa, coube a um jornalista que não tenho o prazer de conhecer e que tinha apenas dois anos quando aconteceu o golpe de 1964. Juremir Machado da Silva, gaúcho de Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, é mais do que um colunista importante do segundo maior jornal do Rio Grande do Sul, o Correio do Povo (tiragem de 149 mil exemplares), âncora de sucesso na rádio Guaíba e blogueiro de texto forte e elegante na internet. Juremir, formado em História e Jornalismo e doutorado em Sociologia pela Sorbonne, é também um pesquisador dedicado aos temas recentes da história brasileira, especialmente os produzidos a partir do golpe militar de meio século atrás. Publicou já 27 livros. O mais recente, Jango, a vida e a morte no exílio (Editora L&PM), representa um mergulho em dez mil páginas de documentos e três anos de pesquisa para tentar elucidar os mistérios que os peritos, agora, procuram decifrar na exumação de Jango. Lançado há apenas cinco meses, o livro já está na sua quarta edição.

Numa coluna que destoa com veemência de seus colegas já no título (“Bravos, senadores”), Juremir resume com argúcia, na edição de sábado (23/11), do jornal:

“A anulação da sessão do Congresso Nacional que guilhotinou Jango é mais do que simbólica: coloca de vez, como se fosse preciso, a ditadura na ilegalidade. A aparência de legalidade produzida por um senador capacho escorre, definitivamente, pelo ralo da história” (ver aqui).

Eu sempre me surpreendo quando os jornalistas, sempre tão argutos, mostram dificuldade para fazer a leitura precisa dos fatos históricos. A altiva decisão do Congresso, agora, anulando a fraude que nivelava parlamentares e golpistas, deve ser entendida pelo que ela é, sem apelar para gracejos ou impossibilidades que não estão no espectro do projeto proposto por Simon e por mim e sancionado pelo Congresso, que se prepara para promulgar a decisão reparadora em sessão solene.

A anulação daquela farsa não tem efeitos práticos sobre os males praticados pela ditadura, ao longo de intermináveis 21 anos. O que a resolução traz é o forte simbolismo de um resgate histórico. Ao contrário do que alguns pensam, a humanidade se move pelos símbolos que nos unem ou dividem. Por alguma razão, todos os anos, como lembra o jornalista Ricardo Setti, milhões de britânicos fazem um minuto de silêncio às 11 horas de todo dia 11 de novembro, homenagem sentida aos 886 mil soldados do Reino Unido que tombaram na I Guerra Mundial (1914-1918). Da mesma forma, às 8h15 de cada 6 de agosto, milhões de japoneses se calam durante 60 segundos na hora exata em que a primeira bomba atômica da história pulverizou mais de 100 mil pessoas em Hiroshima, na penúltima tragédia da II Guerra Mundial (1939-1945). Uma segunda bomba caiu 72 horas depois em Nagasaki e o Japão capitulou um mês depois.

Por emoções igualmente fortes, como lembrou o senador Simon em seu artigo em Zero Hora, os oito milhões de habitantes de Israel cessam tudo e saem de carros e ônibus nas ruas, às 11h de cada 27 de janeiro. É a data da liberação, em 1945, de Auschwitz, o maior campo de concentração nazista, onde sucumbiram cerca de 1,3 milhão de pessoas, 90% delas judeus. O silêncio de dois minutos, no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, é uma sentida homenagem aos seis milhões de judeus mortos pela máquina de morte do III Reich.

Não existe nestes gestos, nestas manifestações, nenhuma intenção demagógica, nenhuma atitude pirotécnica, nenhuma inutilidade prática, como poderia imaginar algum jornalista apressado como o senador Auro de Moura Andrade. Nenhum britânico, japonês ou judeu será ressuscitado, nenhuma dor será apagada. Mas, ficará fortalecido na memória de todos os povos, atingidos ou não pela barbárie, o sentimento do que é certo e do que é errado.

Erra quem imagina que os símbolos são perda de tempo, ou mero oportunismo político. Acerta quem acredita que, pelos símbolos corretos, se orienta e se eleva a consciência do mundo.

Exumar a verdade não é política dos mortos. É um compromisso perene dos que defendem, em todas as épocas, a vida e a liberdade. 

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Randolfe Rodrigues é senador da República (PSOL-AP).