Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Show diário de gritos e agressividade

A relação entre a Casa Branca e a imprensa é, por natureza, rodeada de tensões constantes. Muitos dizem que esta relação vem se deteriorando desde a guerra do Vietnã e do escândalo Watergate, na década de 1970, quando repórteres tinham razão para duvidar de tudo o que era dito pelo governo e passaram a implantar o sufixo ‘gate’ em qualquer denúncia de desonestidade à vista.

Hoje, os dois lados parecem concordar, esta relação está ainda pior. Se em parte a deterioração se deve, muito provavelmente, à atitude reservada do governo Bush com relação aos veículos de comunicação, os informes oficiais à imprensa também têm sua parcela de culpa.

Mudança de comportamento

Transmitidos ao vivo e diariamente pela televisão, eles transformam jornalistas em ‘bárbaros’, como afirma Ari Fleisher, que precedeu o atual secretário de imprensa Scott McClellan no cargo. Segundo ele, as câmeras alteram a atmosfera de trabalho, e muitos repórteres estabelecem relações construtivas com funcionários governamentais quando estão longe delas. ‘Repórteres podem ser perfeitamente gentis e fazerem boas e duras questões’ em particular, e minutos depois, na coletiva de imprensa, apresentarem comportamento agressivo.

Segundo Donald A. Ritchie, autor do livro Reporting From Washington: The History of the Washington Press Corps, a imagem de jornalistas gritando com o secretário de imprensa da Casa Branca e ordenando respostas repetidamente não cai bem para eles. O comportamento televisionado dos profissionais de imprensa durante os informes passaria uma imagem negativa deles, o que, por outro lado, contaria pontos a favor do governo – já que os jornalistas, e não o assunto que eles levantaram, tornam-se a notícia. Já os correspondentes da Casa Branca alegam que muitas vezes são levados a um comportamento agressivo pela falta de colaboração do governo na liberação de informações.

Expostos, os repórteres que cobrem a Casa Branca ficaram sujeitos a duas caricaturas. Comentaristas de esquerda dizem que eles são manipulados e falham em questionar duramente o governo desde os atentados terroristas de setembro de 2001; os de direita, por outro lado, afirmam que eles são triviais, irrelevantes e politicamente parciais – em detrimento do presidente, é claro. ‘Nós somos reprovados pelo que fazemos e pelo que não fazemos’, brinca Ken Herman, correspondente do Cox Newspapers.

‘Eu não gosto que eles [o público] vejam meu trabalho; quero que eles vejam o resultado final’, completa o jornalista. ‘É perfeitamente possível ser detestável e briguento [durante o informe] e produzir uma história impressa objetiva’, defende-se, ressaltando que isso se torna pequeno ao lado do poder da imagem televisiva – que revela o comportamento agressivo para os telespectadores.

Teatro do absurdo

Mas se são tão criticados, por que os informes oficiais da secretaria de imprensa da sede do governo federal continuam a ser transmitidos ao vivo? Segundo artigo de Katharine Q. Seelye [The New York Times, 27/2/06], eles têm sua função – e servem a um propósito para os dois lados. As sessões dão à Casa Branca uma entrada diária no ciclo de notícias e permitem que funcionários do governo falem diretamente ao público. Por outro lado, elas também dão aos jornalistas a chance de questionar estes funcionários diretamente, responsabilizando-os por suas respostas on the record.

Ainda assim, cada dia é um novo show de gritos, desconfianças e discussões. Mike McCurry, que foi secretário de imprensa do presidente Bill Clinton há uma década, arrepende-se até hoje por ter permitido que os informes começassem a ser transmitidos ao vivo. ‘Foi um grande erro da minha parte’, comentou há algumas semanas ao assistir à sessão dominada pelo acidente de caça do vice-presidente, Dick Cheney – que atirou em um advogado –, e pela demora da Casa Branca em divulgar a informação.

McCurry conta que a febre pelas transmissões dos informes teve início durante o escândalo Monica Lewinsky. ‘[Na ocasião] eu disse à CNN que não havia razão para televisionarmos a sessão. Mas eles disseram: ‘nós conseguimos mais 100 mil aparelhos de TV quando você está no ar’’, lembra. ‘Isso virou um teatro do absurdo’, conclui.