Miriam Leitão, a repórter da TV Globo e do jornal O Globo que maior influência exerce no noticiário econômico nacional, oráculo do capital especulativo global que domina a cena mundial, resolveu jogar pesado contra as intenções geopolíticas dos governos dos países da América do Sul em sua intenção de agirem favoravelmente à criação do oligopólio do petróleo no continente sul-americano. Analista econômica que vê o movimento da realidade capitalista do ponto de vista do consumidor, parcial, mecanicista, cindido, e não do ponto de vista das forças produtivas e das relações sociais da produção, dual, dialético, interativo, considerou exótica a idéia de criação da Petrosul, união dos países produtores de petróleo da região, Venezuela, Brasil e Argentina, que poderiam, ainda, atrair outro grande produtor na América Latina, México. Tal oligopólio se transformaria, sem dúvida, em braço cooperativo da Opep, que determina, atualmente, o volume de produção da matéria-prima que movimenta o capitalismo. Washington irritou-se. Miriam, também.
Como destacou Schumpeter, a falta de informação histórica e sociológica é a maior praga dos economistas e dos jornalistas que escrevem as suas verdades. Os monopólios e os oligopólios são as expressões mais genuínas do desenvolvimento capitalista a partir da grande crise de 1873-1893. Ela decretou o fim do movimento liberal, clássico, que deu cor fulgurante ao sistema capitalista no século 19, cuja expansão sempre sinalizou deflação, no rastro da construção dos excedentes, caminho natural do capital em sua eterna caminhada à sobreacumulação, detonadora, por sua vez, de crônica insuficiência relativa de demanda global, como comprovou Marx, em O capital. A expansão dos monopólios e dos oligopólios, assim como o processo de acumulação, representa a busca do capital pela maximização do lucro ao fugir da concorrência, que reduz a taxa de lucro em relação à taxa de juro. Na medida em que, graças à crônica insuficiência de consumo, decorrente da sobreacumulação de capital, a taxa de lucro cai, o sistema deixou de acreditar na ideologia utilitarista, inglesa, do século 19, apoiada no ponto de vista do consumidor, visto que deixara de ser útil. ‘Tudo que é útil é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade’ (Keynes).
As contradições explodem
Os neoclássicos, diante dos problemas de insuficiência de demanda, gerados pela acumulação capitalista acelerada, a partir de 1840, perceberam, claramente, que era necessário sair fora do ponto de vista que orientava os clássicos, adeptos da lei do valor trabalho, sustentada na evolução natural das forças produtivas e das relações sociais da produção. A realidade dual, positivo-negativo, singular-plural, feio-bonito, amor-ódio etc., dialética, tornara-se problemática para o capital, no espaço vulnerável da economia do livre mercado. Virara o seu azimute terrível. Na manifestação do positivo, encontra-se, implicitamente, o negativo. Ambos se desenvolvem em processo de negação, de modo que se analisado apenas um lado da realidade, esta jamais é vista em sua totalidade em movimento. Tal totalidade mostra o capitalismo em seu movimento integral, contraditório. Tais contradições afastavam a hipótese de firmar eventual face social, includente, do capital. A própria organicidade dialético-capitalista tornara-se algo a ser necessariamente obscurecido. O mundo da essência deveria dar lugar ao da aparência.
Nascia, então, entre os neoclássicos o ponto de vista que passou a orientar a ideologia capitalista: aquele que vê o mundo a partir do movimento do consumo e não da produção. Para tanto, criaram o chamado consumidor autonomizado, autoproduzido, apartado da realidade, obediente a uma lógica construída na exterioridade do real-concreto. A matemática adentrava-se à economia, apesar de Hegel já ter dito que ela era uma ciência que se desenvolve no exterior da própria realidade, sendo, portanto, incapaz de explicá-la em sua totalidade. Os neoclássicos colocaram dinheiro no bolso desse consumidor autonomizado e, a priori, organizaram suas receitas e despesas, de tal forma que, equilibradamente, satisfariam sua taxa de prazer ao seu bel-querer. No mundo imaginário, o equilíbrio seria alcançado. Tornara-se, possível, então dar razão a Jean Baptiste Say, segundo o qual toda oferta gera demanda correspondente. Marx ironizara Say, dizendo que ele teria razão se as mercadorias que vão ao mercado fossem vendidas sem lucro pelo preço de custo. Gastou 100, vende por 100.
Qual a graça para o capitalista? A mágica de Say poderia ser tudo, menos capitalismo. Hipoteticamente, apenas, hipoteticamente, na fabricação da mercadoria, como discorre, magistralmente, Jack London, em Tacão de ferro, no capítulo ‘A matemática do sonho’, interpretação literária de Marx, numa mercadoria que vale 100, o capital entra com 50 e o trabalho com 50, para formar sua totalidade. Mas, enquanto o trabalho consome 100%, ou seja, os 50 que representa sua parte na produção da mercadoria, o capital não vai a tanto. Se consumisse tudo, como haveria a reprodução, os investimentos? Além do mais o capital é disponível para poucos, enquanto o trabalho é dever de todos. Se o capital não gasta os seus 50, mas, suponha-se, 30, sobrarão 20. São esses 20 que deixarão de ser consumidos e que jogam a teoria de Baptiste Say no chão. O excedente capitalista se universaliza. Leva, portanto, historicamente, o sistema à insuficiência relativa de demanda global. Onde jogar o excedente? A saída é a exportação. Se todos produzem excedentes, todos buscam a exportação. As contradições explodem na universalização do mercado mundial e sua resolução, como destacou Marx, dá-se na guerra. Os neoclássicos e os neoliberais até hoje, como ressalta Lauro Campos, em A crise completa – a economia política do não (Boitempo, 2002), não entenderam que a guerra está no centro da macroeconomia capitalista, especialmente, depois da crise de 1929. Buscam, desesperadamente, isolá-la, como se não fosse fato econômico objetivo.
Mudança de forma
A crise neoliberal de 1873-1893 fez explodir o padrão-ouro, em 1929, conseqüentemente, introduzir a moeda inconversível, para evitar que o salário zero ou negativo fosse o resultado pratico da destruição dos salários em sua expressão matemática do termo, como Marx destacara. Seria a débâcle do capitalismo, abrindo espaço ao socialismo. No limite da insuficiência relativa de demanda, sob o padrão-ouro, rompido o fictício equilibrismo macroeconômico, artificialmente construído, todas as moedas capitalistas entrariam em colapso, como previu Lênin.
Keynes concordou com a mente sutil do líder soviético e deu banana aos seus antigos mestres neoclássicos, equilibristas, como Alfred Marshall. Deixou de lado a deflação crônica e partiu para o seu oposto, a inflação, segundo ele, ‘a unidade das soluções’. Com uma mão, ensina pedagogicamente Lauro Campos, em A crise da ideologia keynesiana (Campus, 1980), o governo joga dinheiro na circulação, para puxar a demanda global. Busca criar consumidor que gaste sem que haja aumento de produção de bens duráveis, que havia entrado em colapso em 1929. Tal consumidor, agora, é outro, mais poderoso: o governo e sua moeda fictícia. A mercadoria que consome é, na verdade, uma não-mercadoria – obras públicas, produtos bélicos e espaciais. Com a outra mão, porém, o governo joga títulos da dívida pública, para enxugar parte da oferta monetária, a fim de evitar a explosão inflacionária. A dívida pública interna, como demonstra originalmente Lauro, passa a crescer no lugar da inflação. Ela é efeito reflexo da inflação.
Eis a economia de guerra, expressão maior do remédio keynesiano. Malthus já dizia, em 1830, que o problema do capitalismo é ser eficiente demais. A eficiência, traduzida em lucros ascendentes, desequilibra o sistema, porque, em seu oposto, gera a insuficiência. Seria preciso, segundo ele, criar um consumidor autônomo, para superar tal insuficiência de consumo, que levaria o capitalismo à inevitável deflação. Afetada pelas crises deflacionárias, a produção de bens duráveis e semiduráveis, sob padrão-ouro, deixara de ser o centro dinâmico da reprodução do capital. Substituía-a a produção das não-mercadorias, impulsionada pela moeda estatal inconversível. O capitalismo muda de forma, mas não de conteúdo.
Preço elevado
O novo rearranjo capitalista pós-1929 configura estrutura produtiva e ocupacional para evitar que o capitalismo desse lugar à expansão comunista na Europa e nos Estados Unidos, depois da Primeira Guerra Mundial. A inflação, desse modo, não é, como imaginam os neoliberais – e os repórteres que acompanham a cabeça deles – fenômeno meramente, monetário, mas, como demonstrou Lauro, seguindo os passos de Marx, instrumento efetivo de controle social. E em sua base estão as expansões dos monopólios e dos oligopólios. Diante dos lucros cadentes em decorrência da deflação, eles somente poderiam ser reativados, mediante novos investimentos, se houvesse o fenômeno reverso: a inflação. A única variável econômica capitalista realmente independente, segundo Keynes, em A teoria do juro e da moeda, torna-se a quantidade da oferta de moeda na economia. Ela, diz, produz as quatro condições indispensáveis que faz renascer os investimentos e proporciona aos empresários vislumbrarem a eficiência marginal do capital, ou seja, o lucro. São elas: 1) aumenta os preços; 2) diminui salários; 3) reduz a taxa de juros; e 4) perdoa a dívida do capitalista na compra de equipamentos a prazo.
Emerge o falso dilema: inflação ou deflação? Eterna dúvida. Diante da inexistência do equilíbrio, visto que o sistema marcha para o eterno desequilíbrio, dialético, natural, a inflação aleija, mas a deflação mata. Escolha de Sofia. Impulsionada pela moeda inconversível, enquanto a dívida pública segurava, dialeticamente, a inflação, a demanda capitalista foi sustentada, keynesianamente, até fim dos anos de 1970. Com ela ampliaram-se os oligopólios e os monopólios. Fortalece e impulsiona os monopólios e os oligopólios a crescente e crônica insuficiência relativa de demanda. As indústrias de bens duráveis e semiduráveis, que se desenvolveram, no cenário global, depois da crise de 1929, o fizeram em obediência às determinações dos monopólios e dos oligopólios, enquanto as grandes indústrias de guerra, beneficiárias maiores da moeda estatal, igualmente, se ampliaram, oligopolisticamente.
Num caso e outro, o fenômeno foi o mesmo com diferenciações qualitativas. Enquanto os monopólios e oligopólios que comandam os setores da produção de mercadorias se formam para minimizar os prejuízos da concorrência que leva à deflação, os monopólios e oligopólios que sustentam a produção de ‘não-mercadorias’, bancada pela dívida pública, impõem seu preço, necessariamente, elevado, como ressaltou Richard Nixon, visto que tal produção destina-se à destruição, envolvendo riscos crescentes.
A armadilha da dívida
Mais uma vez consumara-se a previsão de Marx, de que o capitalismo desenvolveria ao máximo as forças produtivas, entraria em senilidade, e passaria a desenvolver as forças destrutivas, na guerra. Keynes percebeu a mesma coisa quando disse: ‘Duvido que tenhamos conhecido um auge duradouro capaz de levar ao pleno emprego, exceto durante a guerra (ele se referia à grande guerra de 1914). Se os Estados Unidos se insensibilizarem com a grande dissipação decorrente da preparação das armas (aqui, ele sugere a Roosevelt que repita o exemplo de 1914, o que foi feito, a partir de 1936), aprenderão a conhecer sua força. Nem a vitória nem a derrota do New Deal, nada significará diante dessa experiência bélica de preparação da guerra’ (Crise, dívida, terror e medo no mundo do capital, Lauro Campos, Senado, 2002). Só os ingênuos ou os canalhas acreditam no artificial equilibrismo macroeconômico e no equilíbrio orçamentário, que, na prática, revelou-se, historicamente, incompatível com o desenvolvimento do próprio capitalismo.
Miriam Leitão e seus colegas repórteres de economia, salvo honrosas exceções, não leram, ou não entenderam, o que Marx disse no segundo tomo de O capital, quando discorre sobre o processo de produção do capital. Se tivessem estudado a obra, perceberiam que os problemas da reprodução do capital começam no centro, e não na periferia capitalista. Os problemas de sobreacumulação, que resultam em crônica insuficiência relativa de demanda global, cujo resultado impede o que os neoclássicos-neoliberais buscam esquizofrenicamente, ou seja, o equilibrismo econômico imaginário, irreal, anti-natural, mecanicista, são transferidos todos para a periferia. Nesse sentido, a dívida externa, como destacou Marx, é instrumento de dominação internacional. No século 19, a Inglaterra financiou os países periféricos para ampliarem sua malha ferroviária à custa de empréstimos. No século 20, os Estados Unidos e países europeus fizeram o mesmo, para expandir, na periferia capitalista, a indústria de bens duráveis – automóveis, geladeiras, eletroeletrônicos, eletrodomésticos etc. – depois que ela entrou em crise em 1929.
A ideologia do desenvolvimento tem por trás de si os empréstimos bancados pelos países capitalistas cêntricos, a fim de transplantarem, para a periferia, a estrutura produtiva e ocupacional que entrara em crise no centro. Num primeiro momento, a dívida dinamiza a produção. Como concentra renda, num segundo momento, produz insuficiência relativa de consumo global. Novos empréstimos somente fazem piorar a situação que se eterniza. A Cepal, que abrigou a ideologia keynesiana, na América Latina, pelas mãos de Raul Prebisch, conquistando falsos socialistas, como FHC, foi instrumento ideológico segundo o qual o desenvolvimentismo seria possível mediante empréstimos externos que tirariam a América Latina da condição de subdesenvolvimento. Caíram na armadilha da dívida.
Escravidão ideológica
A brincadeira keynesiana, impulsionando a economia de guerra, no centro, e o fenômeno do falso desenvolvimentismo, na periferia, durou até final dos anos de 1970. O estouro das finanças públicas levou o capitalismo sobreacumulado, de novo, à ideologia equilibrista do século 19, em que os economistas e os jornalistas que repetem seus erros, carentes de ensinamento histórico, como destaca Schumpeter, tentam voltar ao útero materno na condição de cadáveres insepultos. Talvez nem Freud explique. Enquanto isso, os monopólios e os oligopólios avançam inexoravelmente com seu tacão de ferro sobre as economias periféricas, endividadas. Quando buscam – como fazem, agora, os países sul-americanos – tirar vantagens de suas condições objetivas, no caso da construção do oligopólio do petróleo na América do Sul, vem doutora Miriam Leitão, com sua sabedoria ideológica invertida, dizer que isso é exótico. Enquanto isso, o avanço dos oligopólios e monopólios, que atuam em escala global, é, naturalmente, considerado, por ela, movimento saudável do capital investidor.
O problema central da realidade, segundo Karl Mannheim, em Ideologia e utupia (Ed. Guanabara, 1960), é a relação entre sujeito e objeto. No capitalismo, no mundo das mercadorias, atrás das quais se encontra o trabalho humano, a alienação impera. O mundo dos objetos ganha colorido fetichista. O homem passa a ser dominado pelo mundo das coisas. Transforma-se em objeto substantivado. Não percebe que o objeto é exterior ao sujeito e a determinação do sujeito somente se realiza na posse do objeto, quando então o sujeito torna-se objeto e o objeto, sujeito. Ver o mundo do ponto de vista do consumidor autonomizado, que se desenvolve fora da realidade, em vez de percebê-lo em sua totalidade, como o real-concreto em movimento, traz embutida a negação do sujeito e a afirmação do objeto, como se fossem realidades distintas. Os países sul-americanos, em busca dos seus objetivos geopolíticos estratégicos, conforme ficou evidenciado na Cúpula América do Sul-Países Árabes, tentam exercer o papel de sujeito. Como objeto, e não como sujeito, que enxerga a realidade de acordo com o movimento do real-concreto, a repórter da Globo e de O Globo vê aberração na realidade, pois a percebe de cabeça para baixo, enquanto condena quem se mantém de cabeça para cima.
Eis o preço que se paga por não possuir visão sociológica do desenvolvimento do capital em seu processo de evolução: a escravidão ideológica, esta, sim, exótica, que o capitalismo inventa, para deixar seus analistas pisando em nuvens, quando pensam estar com os pés no chão.
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Repórter do Jornal da Comunidade, Brasília (DF)