Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Simulacros do jornalismo ‘bolinha de papel’

As eleições de 2010 ratificaram a consolidação de um jornalismo de mediação em detrimento do compromisso da narrativa e dissertação de fatos, nas quais a aplicação responsável de significados e significantes deveria ser, por princípio, estrutura de sustentação de acontecimentos noticiosos na defesa do interesse público. Parte da grande mídia brasileira ancorou uma candidatura com toda destreza para a defesa de seus interesses arcaicos com apropriação do que deveria ser jornalismo, para produzir ficção em substituição à lacuna de um projeto político da oposição.

Este setor da mídia atirou-se de cabeça na fabricação do arremedo eleitoral até seu discurso final de querer atribuir ao percentual alcançado pela oposição uma robustez ilusória, que por mais que conte e reconte estes votos, jamais poderá creditar meramente à oposição méritos incontestáveis pela conquista de milhões de eleitores. Uma enorme parcela foi adicionada à candidatura Serra por obra do comprometimento em estabelecer no imaginário popular uma postura anticandidatura Dilma Rousseff e ao governo Lula. Não foi o voto pelo convencimento programático em contraposição às ações realizadas e às proposituras da candidatura Dilma, mas pelo estabelecimento de um esquema semio-discursivo sinuoso de produzir sujeito e anti-sujeito.

Mesmo não sendo possível quantificar os votos a reboque à oposição, uma grande parcela foi em consequência de simulacros produzidos pela mídia, cuja representação expoente são a TV Globo, Veja, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo, com ações interligadas e reverberadas por propriedades cruzadas e verticalizadas no sistema monopolizado de comunicação existente hoje no Brasil. Foi mais uma face do comportamento de veículos de comunicação como partido político oposicionista ao atual governo, que vem há anos, com escassos momentos de lucidez jornalística.

A simbiose entre mídia e oposição deve-se em parte à tentativa de recuperar a perda contínua da imponência de ser um dos poderes no Estado democrático e de suprema formadora de opinião – a diversificação de novas plataformas de interação já cuida disto. Também pelo descrédito que incorporou pelo reverso patronal em não preservar a pluralidade nas redações e pelo constante e falso grito contra o ‘atentado’ à liberdade de expressão e a qualquer debate em defesa da democracia na comunicação.

Credibilidade inconsistente

Há ainda a ausência de uma oposição robusta, organizada e, no mínimo responsável, com discurso e projeto de interesse nacional. Uma oposição que quer apenas atender de maneira restrita desejos de setores da elite mesquinha, sem compromisso em corrigir mazelas sociais num país que se desenvolve e se insere no contexto internacional das potências emergentes. Ninguém será grande com exclusão de uma maioria e com concentração de poder e riqueza à minoria.

A mídia não mediu esforços e consequências para formular este jornalismo de ficção, com edições, montagem e uma linguagem discursiva de valores morais e religiosos, em contraposição à diversidade e ao estado laico. Introduziu no debate, novamente, o medo, preconceito, discriminação e ataques para desqualificação da candidatura vencedora, usando como porta-vozes seus colunistas neocons. Escondeu fatos e distorceu outros com evidente objetivo de proteger e promover a candidatura preferencial. Tomou para si o discurso que deveria ser da oposição numa clara ação articulada entre veículos de comunicação. Engavetou a pauta da realidade que se transforma nos vários setores sociais, nos meios de produção e na retomada de investimentos à infraestrutura nacional, gerando postos de trabalho e renda.

Os votos da oposição, por mais que sejam contados, recontados, analisados e justificados como conquista de uma candidatura, trazem a marca d´água, quase invisível, dos simulacros de propósitos pessoais de parte desta mídia. São adesões de um antagonismo produzido no imaginário coletivo, permeado pelo conservadorismo, a calunia e a difamação. Signos, símbolos e ícones representativos no lugar de alguma coisa falseada para um estado da mente.

A síntese do jornalismo bolinha de papel e dos simulacros de uma candidatura foi a edição do Jornal Nacional a partir de uma provável farsa de campanha. A bolinha de papel atirada no candidato Serra foi tomada como significado, reinterpretado e ficionado para ganhar interpretação de verídico com o suporte das mais avançadas tecnologias digitais. A ratificação do meta-discurso tirou, novamente do armário, os chamados especialista, usados frequentemente por este jornalismo, na tentativa de emprestar uma inconsistente credibilidade, que nem da qual a mídia desfruta mais.

Significante e significado

Recorreu-se a declarações, previamente combinadas, como de um perito e um médico, e de políticos da oposição para dar valor tensivo e sentimental à peça teatral. A narratividade televisiva da farsa produzida pela TV Globo associou falas para induzir o telespectador que o país se enveredava para o caminho de um Estado fascista. Outra contundência linguística sem imanência entre significado e significante.

O aporte de figuras obscuras e emblemáticas no processo eleitoral e no jogo de papéis semio-narrativos foi dosada por esta imprensa. Aqui cabe uma passagem rápida pelos estudos Da opinião pública ao corpo político, de Gianfranco Marrone, que apresenta o universo político na semiótica como um sistema entre os vários componentes em jogo. ‘A ação na esfera política é uma condição eminentemente estrutural, pela qual sujeitos que dela fazem parte constroem, desconstroem e reconstroem a própria identidade em função de outros sujeitos, com os quais entram, ora em uma relação contratual de acordo, ora em uma relação polêmica de confronto, ou seja, em relações narrativas.’

Este universo semiótico de Gianfranco Marrone, aplicado às eleições de 2010 no Brasil, foi ocupado por Serra, setores da imprensa e por lideranças, como bispos, pastores, agentes públicos, figuras históricas da sociedade civil e até um lobista de passado jurídico tortuoso. Apropriadas com o sentido de polifonia jornalística, estas figuras foram movimentadas em favor do candidato. De acordo com Marrone, neste sistema político estão dois planos: um plano significante, no qual se fazem (se aceitam, se dizem, acontecem) determinadas coisas, e um plano significado, no qual estas coisas manifestam ou adquirem determinados valores ideais e práticos, seja por intermédio daqueles que os colocam em ação (os políticos), seja por meio de quem se encontra a observá-los relativamente de fora (o povo, os eleitores, a opinião pública).

Símbolos e espetacularização

Os estudos de política e semiótica reforçam uma característica de nossa imprensa e dos sistemas considerados democráticos, sendo, segundo Marrone, ‘de modo que a relação entre políticos e eleitores é filtrada pelo fenômeno semiótico da credibilidade e da crença, do obter fidúcia (confiança) de alguém, mas, sobretudo, do repor fidúcia em alguém a quem se delega, ao final de uma ação, a satisfação das próprias necessidades’. Parcela de eleitores, leitores ou telespectadores fragilizados para o debate contextualizado acabam nestas garras linguísticas.

Acrescenta que ‘os processos da comunicação política, neste sentido, não tem somente o escopo cognitivo de difundir certas mensagens, ou seja, determinadas formas de saber, mas também o objetivo pragmático passional de estipular pactos de fidúcia entre políticos e povo’. Assim, a candidatura da oposição terceirizou a campanha a setores da imprensa, obteve o acolhimento de segmentos religiosos e difundiu uma gama de informações superficiais para desqualificar a adversária num jogo de sujeito e anti-sujeito.

Estes setores da imprensa brasileira aproveitaram-se de um conjunto de narrativas e subjetividades que se interagiram numa continua sobreposição de fatos. Em determinados momentos do processo eleitoral, houve clara e estampada articulação em favor da candidatura Serra. E, em outros, de forma sutil uma ação de simulação de objetividade, mas com técnicas de linguagem não verbais, como enquadramento de câmeras, ângulos de fotos, ambientes e simbolismos retóricos em imagens e títulos. Exemplo: a Folha de S.Paulo, em sua primeira página, com a foto de Serra beijando uma santa e ao lado a manchete com a ‘provável’ declaração do papa contra o aborto, às vésperas da eleição para tentar decolar a estacionada candidatura preferencial.

A parte engajada da imprensa atuou em proteção à candidatura Serra com a interdição do debate político e programático para o país. Sonegou informação que prejudicasse a candidatura e turbinou a difusão de valores que ainda sensibilizam parcela do eleitorado. ‘Instituições religiosas tradicionais (…) ou contemporâneas (…) põem em circulação e testam a força de seu arsenal simbólico em busca de mobilizar e sensibilizar fiéis’, diz em artigo Sérgio Basbaum, professor doutor em Comunicação e Semiótica. Esta mídia optou pela força de símbolos e pela espetacularização de denúncias, transformando fatos corriqueiros em escândalos contra a candidatura Dilma. Sabia da dificuldade em reverter o jogo eleitoral com uma cobertura sóbria e equilibrada em favor do próprio simulacro que fabricou.

As inúmeras realizações presentes e latentes

Em determinado momento do processo, optou por fatos e concedeu espaços que fizessem votos migrarem para a terceira via, a candidata Marina Silva, para adiar o desfecho da peleja. Esta mídia conseguiu o feito no primeiro turno das eleições; e no segundo, ampliou o percentual de votação do candidato preferencial pela virtualização e reinterpretação de fatos. Construiu narrativas em processos de manipulação de linguagem intrínsecos aos veículos, porém distantes da realidade e dos fundamentos comunicativos racionais, nos quais busca-se, mesmo considerando as limitações entre objetividade e subjetividade, a máxima aproximação entre significado e significante.

O que se distancia desta prática narrativa básica, contrapõe-se ao que consideramos jornalismo de interesse social. Muitos jornais, rádios e TVs se auto-atribuem em simulação um ‘jornalismo com credibilidade’, mas escorregam para a produção do marketing, da propaganda e publicidade e de ações panfletárias desvairadas que podem, ou não, inflar artificialmente qualquer político. As estruturas de comunicação pactuadas e aplicadas pela mídia à candidatura Serra descortinaram a osmose do simulacro de uma eleição e do jornalismo bolinha de papel.

Nos fundamentos semióticos e linguísticos, sujeito e anti-sujeito podem operar em situações concretas, simultâneas e alternadas, em conjunção com um objeto de valor. Assim, a derrota de parte da mídia, dos setores conservadores e da candidatura Serra pode ser analisada sob um derradeiro simulacro discursivo dos oponentes a Dilma e ao governo Lula.

Quando está presente um conflito entre dois programas subjetivos de ação (neste caso no processo eleitoral de 2010), de uma parte há um sujeito que visa estar em conjunção com um objeto de valor no qual se propõe a encontrar determinados valores; de outro, há um anti-sujeito, que, por sua vez, almeja ficar conjunto com o mesmo ou com outro objeto sobre base de valores diametralmente opostos’, de acordo estudos semióticos de Marrone. A tentativa da mídia de inverter os papéis e discursos não encontrou ressonância na maioria da população.

O confronto entre as candidaturas, pela análise da narratividade, entre um querer e dever-fazer, entre um poder e saber-fazer e, finalmente, a conjunção com o objeto de valor, levou Dilma ao Planalto. E por traz de todo o embate e suas narrativas, havia ainda uma situação discursiva concreta do governo Lula, que esta mídia ignora todo o tempo: as inúmeras realizações presentes e latentes na vida e no imaginário coletivo da população, mesmo com toda a adversidade linguística imposta pelo jornalismo bolinha de papel.

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Jornalista, Guarulhos, SP