Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Sobre as teses que se publicam

Terminei o livro. Aquele ensaio que eu havia anos dizia que vinha rascunhando, sobre a escrita científica, o contraste. Contraste enorme entre produzir ciência e ter de redigir uma tese como requisito estrutural da pós-graduação ou do concurso; contraste entre tentar contribuir para o avanço da sociedade e ter de demonstrar erudição para ganhar nota; contraste entre partir de preocupações pessoais para inspirar e animar a escrita e ter de enunciar a tese com uma falsa impessoalidade que pode colocar a perder tudo o que um pretenso raciocínio tenha de original.

E outros paradoxos, pois o mundo está cheio deles, graças a Deus, porque somente as contradições estimulam alguém à escrita. Por exemplo, é um paradoxo dizer “Terminei o livro” acerca de uma obra que afirma veementemente que um livro jamais se considera acabado, ou quando sei que ao dizê-lo apenas estou encostando o manuscrito final (o manuscrito que acho que é final) por uns meses na gaveta, para depois lê-lo outra vez, encontrar vários defeitos e cortar um monte de coisa. Nesse ritmo de lê-e-recorta, cheguei a ter mais de duzentas e sessenta páginas prontas e já consegui abreviar para noventa ou cem. Acho.

Desprezo à origem histórica

Mas por que contei isso? Deve ter sido para emendar a consideração de que recentemente concluí que estou aos poucos conseguindo colocar em prática algo que notei faz tempo: que a grande arte do texto é reduzi-lo, em respeito ao leitor. Saber dosar cada frase, cada palavra, na medida certa entre o suficiente para que ele possa acompanhar o raciocínio do autor (isso demanda um ritmo) e, aí o segredo, não o cansar com informações que ele já conhece. Isso, digo, em escrita científica mesmo: há de se retirar do texto científico aquilo que lhe é premissa, pela simples razão de que lhe é premissa.

Fui claro? Provavelmente não, mas são assim as coisas: ao enunciar a tese, deve-se pensar que está dirigida a alguém que sabe muito daquilo que se está discutindo, caso contrário não falamos de uma tese, mas de um manual ou algo que o valha. Então, as premissas, as informações e as citações fermentadas devem-se alijar nos amplos corredores das entrelinhas, senão o texto se faz cansativo e perde sua força porque dilui em muitas páginas o pouco que tinha a dizer.

Ao final desse livro que digo que terminei, notei que talvez eu escreva com uma capacidade de expressão muito-muito medíocre, mas invoco para mim uma qualidade a que não renuncio: sou um leitor apaixonado e criterioso. Ou seja, sou um bom leitor, isso sim. Leio teses publicadas porque gosto, porque busco nelas algo que faz parte de minha profissão e de minha vida – e desta vez não estou sendo irônico. Sou criterioso e exigente só porque desejo que quem ousou colocar um texto a público tenha respeito pelo meu tempo reduzido e pelo meu déficit de concentração, que a cada dia se agrava. Posso me distrair facilmente se o assunto não me interessar e, além disso, durante qualquer leitura sempre me repassa no cérebro a lembrança de que vou morrer antes de ler 10% do que gostaria, por isso nunca é tarde para migrar a um livro mais interessante.

Daí eu ficar tão chateado quando tenho de aturar toda uma introdução de História do Direito mal-pesquisada, que fala do Direito Romano, de Hamurábi e de alguma ordenação (a partir de fontes tão indiretas quanto não confiáveis), como um roteiro-padrão daqueles sambas-enredo da Sapucaí. Aqueles enredos que, qualquer que seja seu tema, sempre percorrem o mesmo: antigo Egito, Roma, Portugal, cruzar os Sete Mares (?), Princesa Isabel assinando a lei e por aí vai. Sempre igual, para chegar a um tema contemporâneo com total desprezo à origem histórica delineada, como nas teses universitárias que se alastram em nosso meio.

A repetição mata a obra de arte

Não sei se estou isolado nessa minha opinião, mas emburro quando leio textos preenchidos com anomalias enormes que se querem dizer científicos, por isso acho que os editores deveriam fazer notar aos autores que o texto publicado é endereçado a pessoas que não desejam adquirir volumes para sua estante e que não são compromissados com as origens primeiras da publicação. Se o autor de um livro jurídico precisava de uma introdução longa para ganhar corpo em uma dissertação, se quis abrir três ou quatro capítulos de explicações paralelas para fazer o futuro volume ficar ereto diante de uma banca examinadora, sinceramente, eu não tenho nada com isso. É um problema de insegurança que ele deve resolver com seu orientador que, se exige mesmo volume, também teria de meditar um pouquinho.

Aborto a leitura da publicação sem o menor constrangimento, convencido de que quase nunca estou disposto a uma longa brincadeira de “onde está Wally”, lendo milhares de linhas em busca de uma única ideia original. Que pode ser maravilhosa, genial, mas que se perdeu porque seu autor não teve segurança suficiente para publicar algo enxuto, que tratasse a mim como alguém a quem ele não precisa provar nada, apenas dizer a que veio.

Escrevi um livro curto que tomou anos do meu esforço, mas que respeita o tempo do leitor. Pode ser um livro ruim porque nunca garanto a qualidade do que produzo, mas pode também ser que tenha algum mérito. Penso que decantei, retirei excessos e concentrei em poucas linhas o que queria dizer, a fim de que meu raciocínio, exposto, se tornasse direto e intenso como um amor de verão, e não longo e rotineiro como um casamento. A repetição assassina qualquer obra de arte.