A propósito do amplo espaço concedido pela mídia ao julgamento dos Nardoni em São Paulo, vale a pena chamar a atenção para um aspecto particular da cobertura: a ausência de escuta das vozes favoráveis ao casal de acusados. É claro que a defesa dos réus fará valer todos os recursos jurídicos nesse sentido, além daqueles de que já lançou mão para procrastinar o julgamento. Mas não se trata aqui do fato legal, e sim, do jornalístico.
Um estudo em vias de realização pela professora Raquel Paiva no Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC/UFRJ) aponta para o descompasso entre o estilo de cobertura praticado na mídia norte-americana e a brasileira, em casos semelhantes. Em programas televisivos como o de Oprah Winfrey e outros do mesmo gênero, é comum entrevistar os envolvidos em episódios escabrosos, mesmo diante da evidência de culpa dos acusados. Semanas atrás, por exemplo, Oprah entrevistava, diante de um auditório, um grupo de pedófilos e estupradores, que tentavam redimir-se publicamente. Ao espectador não escapava a inquietação facial da apresentadora, a ponto de se temer que, a qualquer instante, ela pudesse avançar agressivamente sobre eles. Não parecia encenação, Oprah estava decididamente transtornada. Apesar disso, porém, a cada um dos freaks era franqueada a oportunidade de falar.
É claro que, diante das evidências de culpa do casal Nardoni, tudo o que parece desejar o grande público é ver cumprir-se a justiça reivindicada pela família da criança assassinada. Humanamente, é impossível não se ficar mobilizado com esse episódio ou deixar de se comover com as lágrimas da mãe e da avó de Isabella.
A irrupção das sombras
Mídia não é, porém, tribunal do júri. Cabe-lhe expor os fatos e as diligências em curso, mas sem julgar, a despeito do que possa parecer evidente aos olhos de todos. Seria, adequadamente jornalístico que se ouvissem as falas de membros das famílias dos acusados, como pai, irmão etc. Daí poderá surgir algo capaz de jogar alguma luz socialmente útil ao conhecimento das distorções perversas da consciência, daquilo que, no português quinhentista, se chamava de maleza.
Não é uma preocupação ocasional. Richard Rorty, conhecido como ‘o filósofo da democracia’ ou como o pensador que recolocou a filosofia norte-americana no cenário contemporâneo do pensamento, era de opinião que contar ‘histórias tristes sobre padecimentos concretos’ poderia ser mais transformador do comportamento das pessoas do que a citação de regras universais. Rorty era filósofo pragmatista e entusiasta quanto à função formativa do jornalismo enquanto recurso narrativo.
Justamente, há algum tempo, esse pensador – um homem preocupado em pleno século 21, até a sua morte, com uma ‘teoria da alma’ – especulava sobre a conveniência de se dar escuta às vezes do ‘outro lado’, isto é, das regiões de onde provêm os fatos que obscurecem a razão humana. Não se trata toscamente de ‘dar razão a quem não tem’, e sim, de atentar para tudo aquilo de racional que pode acompanhar a irrupção das sombras.
Jornalismo e poesia
Relatos dessa natureza podem revelar-se surpreendentes. Pessoalmente, recordo o que me contou certa vez um roteirista e cineasta, depois de ter entrevistado a mãe de um marginal paulista. Não apenas sobre o filho, mas também sobre os sobrinhos, era singular o juízo comovido da mulher. Contava ela que, no aniversário do filho, o primo aparecera com um automóvel de presente. Um automóvel, veja só, para o parente querido. Não parecia nada significativo à matriarca que o presente tivesse sido furtado do legítimo proprietário. E ela acentuava o ‘furto’, deixando entender que não se tratara de ‘roubo’, isto é, de ato perpetrado à mão armada, o que agravaria o delito.
Ainda há um quê de pitoresco nessa pequena história, o que não acontece com as outras em que o padecimento é cotejado com as manifestações de violência, perversidade ou todo o espectro das ações que a consciência ética conhece como a maldade dos homens, a velha maleza. Mas para que essa mesma consciência possa conhecer sem a atenuação das meias-palavras ou dos clichês, é preciso dar livre curso às narrativas, como sugeria Rorty. É preciso, como verseja essa extraordinária portuguesa chamada Sophia de Mello Breyner, que cada coisa seja ‘trazida à luz/ trazida à liberdade da luz/ trazida ao espanto da luz’.
Jornalismo e poesia podem ser antitéticos, mas podem também convergir diante do espanto.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro